Ainda não sei porquê, mas porventura por uma associação de contrários, ao ler a Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal de Costa Silva, lembrei-me do Padre António Vieira e do seu Sermão do Espírito Santo, uma peça notável da literatura portuguesa.
«Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar…”.
É que aquele documento, que o Governo chama de Plano de Recuperação da Economia, tem tanta semelhança com um Plano como a pedra tosca, bruta, dura, informe com a estátua de um santo que se pode pôr no altar.
Um Plano define objectivos específicos, mensuráveis, definidos no tempo, coerentes e hierarquizáveis e indica os recursos necessários, sua origem e montante. E particulariza acções para os atingir e o custo de cada um, comprova a sua coerência interna, indica a sua execução no tempo, determina qual a hierarquização face à sua valia interna e aos recursos sempre escassos.
Um Plano, por mais flexível que seja, e deve sê-lo, longe de nós a desgraça dos rígidos Planos Quinquenais, deve atender a estes requisitos, o que a dita Visão, rapidamente transformada em Plano, manifestamente não faz, assemelhando-se mais a um catálogo de possíveis realizações.
Seguindo Vieira, trata-se de uma pedra em bruto, e obrigatório seria que o Governo, em vez de insistir em colocá-la de imediato no altar dos seus troféus, tomasse de imediato o maço e o cinzel para lhe desbastar o grosso e modelá-la objectivo a objectivo, recurso a recurso, acção a acção, até ao pormenor, de forma a obter um Plano bem esculpido, aberto ao presente e ao futuro, atento aos interesses do povo e não dos lóbis institucionalizados, com cabeça, tronco e membros bem lançados para suportar reveses, sopesar equilíbrios e indicar firmemente o caminho.
Um Plano capaz de rentabilizar o enorme volume de cerca de 69 mil milhões de euros fundos europeus disponíveis até 2030, que quase dobra a média anual de que o país beneficiou desde a adesão, e assim potenciar o aumento da riqueza. Em contraste com o que aconteceu desde 1995, em que o acréscimo do PIB se limitou a igualar o valor recebido, não multiplicando o produto, e o PIB per capita em paridade de poder de compra veio sucessivamente a regredir.
Contudo, Governo e Ministros parecem apenas preocupados em gerir o dia-a-dia e a provar a sua existência nos telejornais, servindo-se de pretextos ou de decisões rotineiras que não trazem dignidade à função, antes diariamente a desprestigiam. Ou então proclamando projectos grandiosos, como o do hidrogénio, sem valia intrínseca demonstrada, um atentado à competitividade das empresas, ou políticas a que chamam de nova geração ou agendas para a inovação, muita pompa e circunstância, mas em que o aparato dos nomes não substitui a parca substância.
É esta política ociosa, este engano de vida que conduz o Governo, que erigiu a Visão Estratégica a Plano de Reestruturação Económica e já o colocou, para veneração dos crentes, no altar das celebrações governamentais. Esquecendo que, parafraseando Vieira, só aplicando o cinzel, com esforço e perseverança, é possível transformar uma pedra bruta e informe santo que se pode pôr no altar. É que, sem cinzel e trabalho, uma Pedra não faz um Santo, nem uma Visão faz um Plano…
(meu artigo na edição do i de 18 de Setembro de 2020)
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