28 de setembro de 2008






Uma palavra sobre a tarde

Começas a dobrar os calções, a camisa.
As sandálias guardam,
como um cão, as sombras.
A água jorra da fonte e o clarão da manhã cai
sobre as cadeiras da varanda.
Os frutos, na relva húmida, são as dispersas maçãs
dos teus gestos.
Os barcos ainda não partiram.
Nem o oiro dos teus cabelos se agita
com a brisa triste de setembro.
Há ainda uma guitarra e uma festa
quando cantas.
O sol, essa lâmina agora cega,
rasga-te as vestes,
o linho e a seda da loucura.
Partir é um regresso
à noite outonal,
ao cair lento das folhas,
ao olhar que se dobra
com o alto trigo da tarde
até ao imenso crepúsculo
das últimas palavras.


Eduardo Bettencourt Pinto

15 de setembro de 2008





Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!

Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até regia a mão do fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe é vedado,
Depois com ferros vis se vê cingido:

Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo da existência à morte!

Travam-se gosto e dor; sossego e lida;
É lei da natureza, é lei da sorte,
Que seja o mal e o bem matiz da vida.


Manuel Maria Barbosa du Bocage
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13 de setembro de 2008




Quero escrever-te um poema que
tenha um sentido claro como o
que os teus olhos me disseram.


Poderia ser um poema de amor,
tão breve como o instante em
que me deixaste ver os teus olhos.


Mas o que os olhos dizem não cabe
num poema, nem eu sei como se diz
o amor que só os olhos conhecem.



Nuno Júdice


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7 de setembro de 2008






Floriram por engano as rosas bravas
No inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
¿Quem as esparze - quanta flor! -, do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?



Camilo Pessanha


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4 de setembro de 2008






E o amor transformou-se noutra coisa com o mesmo nome.

Era disto que falavam as mães quando davam conselhos

às filhas e diziam: o amor vem depois. Era isto o depois.

Uma ternura simples, quase dolorosa, muitos silêncios,

todas as horas do dia e um poema que se dissolve dentro

de mim e que, devagar, sem rosto, desaparece.


(Helsínquia, Maio de 2007)




José Luís Peixoto, Gaveta de Papéis






1 de setembro de 2008




................................ porque se alguma coisa os
anos me ensinaram foi a desconfiar das emoções grandiosas, dos sentimentos grandiosos, das palavras grandiosas, culpabilidade, generosidade, arrependimento, honra, orgulho, coragem, sacrifício, que ocultam pequeninos interesses viscosos como egoísmo, medo, inveja, estupidez, preguiça, eu para a Raquel
.................................— Tretas
a rever o Álvaro a fugir-lhe,a sacudir os beijos, a não falar com ela, a erguer as sobrancelhas ao céu, a fitar-lhe com desgosto as farripas, os bibelots, os vestidos, o Álvaro que queria o divórcio por ter arranjado uma mulher a dias mais competente e uma enfermeira melhor num apartamento sem máscaras nem litografias sem palhaços, o Álvaro que nem se devia recordar do filho porque os homens não suportam o sofrimento ou o passado, os homens, felizmente para eles, esquecem, e somos nós que não esquecemos, que conservamos tudo na memória, que nos recordamos como eu recordo a romãzeira, a estrada do Cacuaco e o quintal de Luanda, como eu recordo o meu pai no sofá de Campolide, debaixo do quadro dos cavalos, sem se queixar das dores, e a Raquel à procura dos cigarros, distraída da chuva
................................— Meteu-se-lhe na cabeça
que Carlos Gardel está vivo em Santo António dos Cavaleiros, meteu-se-lhe na cabeça despedir-se da agência e morar com ele para lhe promover a carreira (...).





António Lobo Antunes, A Morte de Carlos Gardel



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