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segunda-feira, 15 de junho de 2020

Feminismo e liberdade

"Minhas roupas não são meu consentimento"

O feminismo é uma luta árdua contra o machismo estrutural da sociedade. Mas uma coisa que contribuir para a dificuldade dessa luta é a educação machista recebida por homens e mulheres, especialmente no que diz respeito ao comportamento sexual. Aos homens é dada uma liberdade sexual quase ilimitada, desde que seja heterossexual, claro. Sua iniciação sexual é cobrada ou, no mínimo, tolerada por quase todos, desde que seja heterossexual, claro. Estimula-se que o número de parceiras sexuais seja o maior possível. Se um homem conseguir transar com duas mulheres na mesma noite, ele é um herói. Se ele transar com duas mulheres ao mesmo tempo, então ergue-se uma estátua para ele. Os homens não são estimulados a serem discretos sobre suas aventuras sexuais. Vangloriarem-se de suas conquistas é, no mínimo, tolerado, mas, frequentemente, aplaudido, principalmente por outros homens. Homens podem andar sem camisa na rua, mostrado seus mamilos. Isso pode ser considerado de mau gosto, mas nunca imoral, muito menos em uma praia.

Tudo é o contrário quando se trata do comportamento sexual das mulheres. As mulheres, segundo a educação machista, nem devem ter comportamento sexual antes do casamento. Elas devem se preservar para o futuro marido, porque a maior parte dos homens prefere uma mulher virgem. Essa exigência já exclui a possibilidade de as mulheres terem vários parceiros sexuais e, muito mais, de transarem com mais de um homem ao mesmo tempo, o que exclui a possibilidade de um relacionamento aberto ou de poliamor. Uma mulheres "decente" nunca faria isso. A discrição sobre a sua vida sexual é cobrada da mulher apenas quando ela começa sua vida sexual no casamento. A mulher é estimulada a ser passiva, a não tomar a iniciativa, porque senão pode revelar alguma tendência a um comportamento sexual considerado impróprio para as mulheres "decentes". As mulheres não apenas não podem sair de peito nu na rua, nem na praia, como devem usar sutiã de bojo, para que seus mamilos entumecidos não sejam perceptíveis por debaixo da roupa. Mulheres que se vestem de forma ousada, com roupas justas, mostrando boa parte do corpo e sem sutiã são consideradas como mulheres que estão "provocando" os homens, passando a clara mensagem de que estão procurando sexo. Se forem estupradas usando essas roupas, muitos homens dirão que a culpa é da vítima, por estar vestida daquele jeito "indecente", como "vadia" ou "puta".[1] Aquelas mulheres que se rebelam contra a educação machista  e adotam padrões de comportamento considerados indecentes, de vadia ou putas, são aquelas que servem justamente para que os homens percam sua virgindade e para que eles possam aumentar o seu número de aventuras sexuais. São mulheres "para se divertir", por oposição às mulheres que aderem à educação machista, que são "para casar".[2] Isso está relacionado a outro aspecto da educação machista: ela ensina a mulher a não dissociar sexo de amor, incutindo a idéia de que sexo casual, por puro prazer físico, é uma coisa moralmente condenável, que nenhuma mulher decente faria. Os homens, pelo contrário, podem se divertir com as "vadias" ou "putas" e são estimulados a não criarem vínculos afetivos com elas.

Essa educação machista não tem outro objetivo que não seja controlar o comportamento sexual das mulheres, enquanto concede liberdade quase ilimitada aos homens. Para esse tipo de educação, o prazer sexual do homem é prioritário, na melhor das hipóteses, e o único que merece consideração, na pior. Essa educação machista não possui nenhum fundamento moral justificado. Os homens não possuem nenhum privilégio moral para terem direito a comportamentos sexuais que as mulheres não tenham. Por isso, algumas feministas defendem que a liberação sexual das mulheres é uma forma de libertar-se dessa injustificável educação machista e empoderar as mulheres. Lutar pela liberação sexual das mulheres seria lutar para que a sociedade reconheça que as mulheres têm liberdade para agir sexualmente do modo que elas quiserem, desde que não firam regras morais justificáveis. Isso não significa que uma mulher sexualmente liberada é obrigada a transar com todos os homens que encontra, ou que ela não possa abster-se temporariamente ou permanentemente de sexo. Ela pode, desde que isso não seja porque ainda está presa, inconscientemente, à educação machista. A libertação da educação machista também desobriga a mulher a fazer sexo apenas quando ela ama seu parceiro sexual.

Todavia, há controvérsia entre as feministas. Algumas delas argumentam que a liberação sexual das mulheres não deve ser incentivada, porque beneficia principalmente os homens que, dessas forma, terão sexo mais facilmente. Algumas chegam ao extremo de defender que mulheres heterossexuais deveriam cultivar abstinência sexual, porque dar prazer sexual aos homens seria moralmente errado e porque o lesbianismo seria a "consequência lógica" do feminismo.[3] Esse tipo de feminismo tem embasado críticas a artistas mulheres que usam a sua própria sensualidade para promover a liberação sexual das mulheres, exibindo, no seu trabalho, um comportamento condenado pela educação machista por ser "vulgar", "promíscuo", "indecente". Essas críticas se resumem a afirmar que o trabalho dessas artistas contribui para a exploração das mulheres a partir de sua excessiva sexualização, na medida em que a indústria cultural, predominantemente machista, lucra com essa exploração. A estratégia dessa forma de argumentação é fazer uma analogia, implícita ou explícita, entre o trabalho dessas artistas e o das prostitutas ou atrizes pornô. A prostituição e a indústria pornográfica exploram sexualmente as mulheres de forma análoga a que a indústria cultural explora aquelas artistas.

Creio que esse feminismo que condena a promoção da liberação sexual das mulheres é completamente infundado e que seus argumentos são falaciosos. Creio que esse tipo de feminismo, embora bem intencionado, provavelmente é uma forma de permanecer inconscientemente preso à educação machista por meio de uma racionalização.

Para começar, é falso que os principais beneficiados com a liberação sexual das mulheres seriam os homens. É claro que com mais mulheres dispostas a transar com homens, suas chances de transar com mais frequência aumentam. Mas as mais beneficiadas com essa liberação são, por três razões principais, as próprias mulheres. A primeira razão é que, se se tornarem sexualmente liberadas, elas conquistam um bem muito mais precioso que o sexo adicional que os homens conseguirão: a liberdade. A segunda razão é que as mulheres gozarão (sem trocadilhos) dos benefícios físicos e psicológicos de uma vida sexual ativa.[4] A terceira razão pode ser didaticamente explicada por meio de um experimento de pensamento. Imagine que todas as mulheres, ou a grande maioria delas se tornem sexualmente liberadas. Essa situação teria uma consequência importante: haveria uma normalização do comportamento sexual liberal da mulher, o que seria um grande benefício para as mulheres. Isso aconteceria porque os homens não poderiam mais dividir as mulheres entre aquelas que são "para se divertir" e aquelas que são "para casar", se não quiserem ficar sem casamento. No caso de quererem criar uma relação amorosa com mulheres, eles teriam de fazê-lo com mulheres sexualmente liberadas. Mulheres sexualmente liberadas seriam o novo normal.

Quanto à analogia entre exploração das artistas pela indústria cultural e a exploração sexual das mulheres pela prostituição e pela indústria pornográfica, trata-se de uma falsa analogia. Em primeiro lugar, o capitalismo explora qualquer coisa cuja venda gere lucro, independentemente de ideologia. Um exemplo bem didático são as empresas que vendem carne e, não obstante, também oferecem produtos veganos. Portanto, a exploração da sensualidade feminina na indústria cultural é apenas mais um caso de exploração dentro do sistema capitalista. Isso não justifica essa exploração, claro. O ponto é que não há nada de especial nesse caso de exploração. Mas trata-se exploração da sensualidade dessas mulheres, alguém poderia dizer. Sim, a indústria cultural lucra com isso. Mas estas artistas e as mulheres em geral também se beneficiam com esse uso da sensualidade, e, mais importante, não apenas financeiramente, justamente por estarem engajadas em uma causa anti-machista. Se a mensagem do seu trabalho for bem entendida e causar o efeito desejado, a saber, a liberação sexual das mulheres, então essas artistas e as mulheres em geral obtêm um ganho moral por meio do sistema capitalista. Isso não é um elogio do capitalismo. O ponto é que pode-se usar o sistema, a indústria cultural predominantemente machista, contra ele mesmo. Essa é a diferença entre o caso dessas artistas e o caso das atrizes pornô e das prostitutas: essas últimas não usam seu trabalho para promover uma causa anti-machista. Seja como for, não consigo ver nenhum erro moral em se usar a própria sensualidade para ganhar dinheiro. Isso acontece todo tempo no cinema, por exemplo. Personagens sensuais são interpretados por atores e atrizes sensuais, que ganham dinheiro para isso. O trabalho daquelas artistas engajadas está muito mais próximo de um trabalho dramatúrgico do que do trabalho de prostitutas e atrizes pornô.

Durante muito tempo, racistas e homofóbicos usaram as palavras para insultar negros ("crioulo") e homossexuais ("bicha", "veado"). Mas negros e homossexuais encontraram uma maneira engenhosa de afirmação da sua identidade social: eles se apropriaram dessas palavras, usando-as para referirem-se uns aos outros, mas com uma conotação positiva. Essas palavras, depois de ressignificadas, passaram a expressar o orgulho de ser aquilo que os insultadores viam como motivo de vergonha.[5] Creio que está mais do que na hora de as mulheres se apropriarem de palavras que são usadas para insultá-las, tal como "puta", e ressignificá-las para expressar o orgulho de serem sexualmente livres.

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[1] Para quem não sabe, a Marcha das Vadias foi um movimento que surgiu em 2011, no Canadá, em protesto contra o comentário de um policial canadense sobre casos de estupro na Universidade de Toronto. Ele disse que as mulheres evitariam esses estupros de não se vestissem como vadias (sluts, em inglês). Na marcha, as mulheres se vestem de forma ousada, com roupas íntimas ou com os peitos nus.

[2] Há um ditado machista muito difundido entre os homens: "Enquanto não encontro a mulher certa, eu me divirto com as erradas".

[3] Ver o artigo da Wikipédia Lesbian Feminism.

[4] Há vários artigos confiáveis que mostram isso. Eis aqui uma lista de exemplos.

[5] Ver este artigo da Wikipédia, para o exemplo da palavra "queer", do inglês.


quarta-feira, 10 de junho de 2020

Meritocracia e desiguladade

George Floyd e seu algoz ajoelhado sobre seu pescoço

As instituições públicas preenchem vagas de emprego por meio de concursos públicos. Elas fazem isso para selecionar o melhor profissional que se interessar pela vaga. Os critérios, nesse caso, para se determinar qual é o melhor profissional são o currículo do candidato (que mostra a formação e trabalho desenvolvido pelo candidato) e seu desempenho nas provas e entrevista do concurso. Parece razoável dizer que, se o concurso não possui nenhum vício, aquele que tem melhor currículo e o melhor desempenho é o que merece a vaga, pois é o melhor profissional entre os candidatos de acordo com os critérios de seleção. Quem merece algo é aquele quem tem mérito. Mérito ou merecimento é algo que admite graus. Isso significa que embora os candidatos em um concurso que não tiveram o melhor currículo e o melhor desempenho não tenham o mesmo mérito do melhor candidato, alguns deles algumas vezes têm mérito, só que menor que o mérito do melhor. Esses outros candidatos também têm um bom currículo e um bom desempenho no concurso, só que pior que o do melhor. O mérito de uma pessoa geralmente inclui sua inteligência, sua formação, seu desempenho e, em alguns casos, sua capacidade de relacionar bem com as pessoas, sua capacidade de liderar, de estimular os colegas, de resolver problemas, etc. A tese segundo a qual os cargos públicos e privados, bem como vagas limitadas em instituições de ensino públicos e privados, devem ser ocupados por quem tem mais mérito chama-se meritocracia.

Todavia, a tese da meritocracia é geralmente acompanhada de uma outra de cunho socioeconômico: um indivíduo tem mérito apenas se não tiver nenhuma ajuda da família ou amigos e, principalmente, do estado. Um pai que emprega um filho apenas porque ele é filho, por exemplo, e não porque ele é o mais capacitado para exercer o cargo que ele conhece, não estaria agindo de acordo com a tese da meritocracia. Um agente público que emprega uma pessoa em uma instituição pública apenas porque ela é sua amiga, por exemplo, e não porque ela seja a mais capacitada para exercer o cargo que ele conhece, tampouco estaria agindo de acordo com a tese da meritocracia. Esses dois exemplos não parecem consequências problemáticas da tese da meritocracia. Todavia, há consequências bastante problemáticas dessa tese. Uma delas é a sua total incompatibilidade com qualquer política de cotas e leis que beneficiem classes sociais desfavorecidas por desigualdades sociais. As costas são mecanismos criados pelo estado com o objetivo de diminuir as desigualdades sociais. Por exemplo: as cotas raciais em universidades públicas do Brasil são criadas com o objetivo de compensar o racismo estrutural na sociedade brasileira que vem prejudicando as pessoas negras desde o início da escravidão até hoje. O racismo é a crença (infundada) que as pessoas negras são intelectual e moralmente inferiores às pessoas não-negras, principalmente às brancas. O racismo pode ser velado ou explícito, consciente ou inconsciente.[1] O racismo é estrutural, o que significa que eles está entranhado nas instituições da nossa sociedade, públicas e privadas. O racismo dificulta enormemente a ascensão social das pessoas negras, isto é, sua subida para uma classe social superior. Pessoas brancas não sofre racismo e, por isso, não enfrentam essa dificuldade e, por isso, possuem a vida facilitada nesse aspecto.

Essa diferença entre negros e não-negros é um exemplo do que se costuma chamar de desigualdade social. Mas ela não é a única. Há desigualdade entre homens e mulheres, entre heterossexuais e não-heterossexuais, entre pobres e ricos, etc. A desigualdade entre homens e mulheres ocorre por causa do machismo, a crença (infundada) de que os homens têm privilégios morais e sociais em relação às mulheres, tal como, por exemplo, ter um comportamento sexual que é negado às mulheres, ou como ter um salário maior que o das mulheres, mesmo realizando a mesma função e a com a mesma competência. A desigualdade entre heterossexuais e não-heterossexuais ocorre por causa da LGBTfobia. A LGBTfobia é a aversão (infundada) a qualquer comportamento sexual que não seja o heterossexual, que seria o único moralmente correto. A desigualdade social entre pobres e ricos tem várias causas: a exploração do trabalho dos pobres, a dificuldade dos pobres, justamente por causa da pobreza, de investir em uma boa formação e a crença (infundada) de que os pobres são pobres apenas porque não se esforçam o suficiente para sairem da condição de pobreza.

Essas desigualdades dificultam a ascensão social de negros, mulheres, LGBTs e pobres. Imagine as dificuldades que enfrenta uma mulher negra lésbica e pobre que um homem branco e heterossexual e rico não enfrenta. Isso suscita as seguintes questões: na suposição de que uma mulher negra lésbica e pobre tenha tido o mesmo desempenho em um concurso e o mesmo currículo que um homem branco rico e heterossexual, ambos possuem o mesmo mérito? Não parece contra-intuitivo dizer ambos têm o mesmo mérito, dado que a mulher enfrentou muito mais dificuldades e, por isso, realizou um esforço muito maior para conseguir ter o mesmo currículo e o mesmo desempenho no concurso que o homem? Se o esforço da mulher foi maior, não é provável que ela teria um currículo melhor e um desempenho melhor que o do homem se tivesse a vida facilitada que ele tem?

A consideração das desigualdades sociais nos força a reconsiderar nossos critérios de merecimento, de mérito, na disputa por vagas de emprego e de estudo. O mérito não pode ser medido apenas pelo currículo e desempenho em provas e entrevistas, salvo se não houver abissais desigualdades sociais. As desigualdades sociais colocam classes sociais em grande desvantagem na disputa por vagas de emprego e estudo e isso não é justo. Não é justo que uma pessoa tenha essas desvantagens devido a algo que ela não escolheu, a saber, o seu fenótipo (negro), seu sexo (mulher), sua orientação sexual (não-heterossexual) e seus pais (pobres). Por isso, as instituições da sociedade, tanto públicas quanto privadas, deveriam criar meios para diminuir a desigualdade social. Somente com essa diminuição da desigualdade social é que as seleções para o preenchimento de vagas de empregos e estudos baseadas no mérito serão socialmente justas. Essas considerações sobre a justiça social mostram que a tese da meritocracia implica injustiça social, pois os meios para se tentar diminuir as desigualdades sociais são uma espécie de ajuda que se dá às classes sociais prejudicadas por essas desigualdades, o que é incompatível com a tese da meritocracia. Mas essa ajuda não deveria ser vista como um privilégio, pois ela visa justamente contrabalançar os privilégios que as classes favorecidas pela desigualdade possuem e, assim, diminuir a diferença de oportunidades na sociedade para promover a justiça social.

As instituições privadas geralmente, embora não necessariamente, defendem a tese da meritocracia que, como acabamos de ver, implica injustiça social. Por isso, a melhor maneira de garantir uma política sistemática e contínua de combate às desigualdades sociais é por meio de ações públicas do estado. Essas ações incluem cotas (raciais, sociais, para deficientes, etc.), tanto de empregos quanto de estudos, programas sociais (de distribuição de renda, de transporte, de moradia), a oferta de serviços gratuitos, tal como educação e saúde, a concessão de direitos, tal como salário mínimo, licença maternidade, férias remuneradas e auxílios e a criação de leis que punam ações motivadas pelas crenças infundadas que geram as desigualdades sociais. Essas ações do estado, é claro, possuem um custo, que deve ser coberto, em parte, pelo dinheiro dos impostos e, em parte, pelo capital privado.


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[1] Há estudos que mostram que até mesmo pessoas negras podem ser inconscientemente racistas. Veja aqui.




quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Falácia normativista e as lutas sociais


O termo "falácia naturalista" algumas vezes é usado para se referir ao que também é chamado de problema do "deve" e do "é", embora também designe uma falácia analisada por Edward Moore, que consiste na tentativa de reduzir os conceitos morais a conceitos naturais. Aqui uso o termo no primeiro sentido. A falácia naturalista consiste em inferir afirmações sobre como as coisas devem ser, afirmações normativas, de afirmações sobre como as coisas são. Por exemplo:
Há diferenças biológicas entre homens e mulheres além das diferenças sexuais.
Logo, homens e mulheres devem ter direitos civis distintos.
Não quero discutir se há ou não exceções em que podemos fazer uma inferência válida desse tipo. Mas o exemplo acima é um claro caso de inferência inválida. Ela é geralmente cometida por quem defende o que se costuma chamar de darwinismo moral.

Há um outro tipo de falácia que é uma versão contrária à falácia naturalista. Eu a chamo de falácia normativista. Ela consiste em inferir afirmações sobre como as coisas são de afirmações sobre como as coisas devem ser. Por exemplo:
Homens e mulheres devem ter os mesmos direitos civis.
Logo, não há diferenças biológicas entre homens e mulheres além das diferenças sexuais.
Mas quem comete esse tipo de falácia? Infelizmente ela tem sido cometida com cada vez mais frequência por alguns daqueles que lutam causas sociais justas, como a luta contra o machismo, a luta contra o racismo, a luta contra a homofobia, e outras. O que motiva essa falácia, entre outras coisas, é o compromisso com uma certa agenda ético-política, um conjunto de afirmações normativas, sobre como o mundo social deve ser, a partir da qual o ativista julga como o mundo é, seja o mundo social, seja o natural (mais sobre a diferença entre social e natural a seguir). Mas o mundo natural está pouco se lixando para nossas agendas ético-políticas. Isso não deveria causar nenhum alvoroço, pois a lição que a falácia naturalista deveria nos ensinar é que nossas regras morais e políticas não podem ser nem justificadas apenas a partir dos fatos da natureza, nem revogadas com base neles, salvo, é claro, se parte do conteúdo ou uma suposição dessas regras for uma afirmação falsa sobre o mundo natural. Para continuar no exemplo das falácias acima, diferenças biológicas não implicam, por si só, diferenças ético-políticas.

A falácia normativista é cometida com mais frequência quando se trata de discutir se certas diferenças e padrões sociais têm ou não têm uma origem biológica. Parte do estudo para decidir essa questão consiste num estudo histórico-sociológico dessas diferenças e padrões. Mas é um erro pensar que isso é suficiente. Uma das causas desse erro é o desejo de mostrar que as referidas diferenças são elimináveis e os referidos padrões de comportamento mutáveis porque são puras "construções sociais", tese que seria justificada apenas por uma investigação histórico-sociológica. Mas aqui há duas suposições problemáticas. Uma delas é achar que o fato de uma coisa ser uma construção social implica que essa coisa não tem uma origem biológica. A segunda suposição é uma versão generalizada da primeira: pensar que a sociedade não faz parte do mundo natural, que ela não tem uma história natural. Nenhuma dessas suposições é óbvia. E para decidirmos se são verdadeiras, precisamos estudar também biologia, o que inclui a biologia evolutiva. Alguns temem os resultados desses estudos porque temem que isso tenha implicações ético-políticas, como se o conhecimento da gênese biológica de nosso comportamento social fosse uma justificação desse comportamento. Ou seja, o que leva alguns a cometer a falácia normativista é o temor de que sua agenda ético-política seja atacada por falácias naturalistas.

Um exemplo muito claro de como o conhecimento da nossa evolução não tem implicações ético-políticas é a discussão em torno de um certo argumento contra o veganismo. O argumento infere que devemos comer carne do fato que o consumo de carne dos nossos antepassados é uma das coisas que contribuiu causalmente para que tenhamos o cérebro altamente evoluído que temos. Mas o que possibilitou a evolução do nosso cérebro foi o consumo de proteína. E agora que ele está assim evoluído, podemos usá-lo para saber sobre a sua evolução e saber que a proteína que o ajudou a evoluir poderia ter sido retirada de outras fontes, embora não soubéssemos disso no passado e embora essas outras fontes talvez não estivessem tão facilmente disponíveis quanto a carne. O conhecimento de que o consumo de carne desempenhou um papel importante na nossa evolução nem implica que devemos comer carne, nem o contrário.

O temor que o resultado de investigações da ciência natural tenham implicações ético-políticas é infundado. Ele pode ser usado falaciosamente, claro. Mas não é uma boa justificação para a não produção desse conhecimento argumentar que assim evitamos o seu uso falacioso.