quarta-feira, setembro 11, 2013

BOM DIA E UM QUEIJO (Episódio 3)

 
O quartinho onde vivia o Primo da minha Senhorinha, o Carlinhos, eu ainda não disse, mas convém dizê-lo desde já, ficava nas traseiras da pequenina vivenda onde morava com os seus Tios, no Bairro Social de Nossa Senhora dos Anjos.
Não era muito amplo, como não era nenhuma das divisões daquela casa, mas era o quartinho ideal para um menino sonhador se isolar com os seus livros, os seus cadernos e os seus lápis de côr. E, sobretudo, ficava longe do sofá do Pai - que detestava turbulências - como aliás detestava tudo, ou, pelo menos sempre me pareceu.
E, como ficava mesmo ao lado da cozinha, a Mãe achava que o podia manter debaixo de olho.
As razões por que, numa casinha tão pequenina havia um quarto com uma minúscula casa de banho separada do resto dos aposentos, só se compreendem se ainda nos lembrarmos das grandes diferenças sociais que separavam as pessoas pobres das que, dizia-se na altura, eram pelo menos «remediadas».
No projecto dos arquitectos, desenhado lá pelos anos trinta do século passado, o quartinho a que se juntara a casita de banho, era descrito como «quarto da criada».
Os mais jovens dos nossos Leitores já não conheceram essa figura, felizmente desaparecida, da «criada de servir».
Iam-se buscar, lá às aldeias onde tinham nascido, as meninas pobres com doze ou treze anos, às vezes menos ainda, para virem «servir», ou seja, para desempenharem as tarefas domésticas mais pesadas e desagradáveis, esfregar as escadas com escova e sabão amarelo e depois encerar, acartar baldes e sacas de carvão, fazer recados. E, muitas vezes, para apanharem pancada quando, como é natural na idade em que o corpo está tão ocupado a crescer, lhes pendiam os bracitos para a preguiça e os pensamentos para estarem em todo o lado menos onde a patroa mandava.
Mas adiante: esses quartinhos da criada ficavam lá ao lado da cozinha, o mais longe possível da sala onde os patrões ouviam a «telefonia» - só muitos anos depois apareceu a televisão, lembrem-se. E ficavam mesmo junto à escada de serviço para que as rapariguinhas com os cabazes das compras, não entrassem pela mesma porta que os «Senhores».
Era por essa escada que o Carlinhos e a Magrizela entravam e saíam, longe dos olhares vigilantes da Tia da minha Senhorinha - pelo menos quando ela não andava de roda das saladas com que gostaria de fazer perder peso ao marido.
Os bairros, porém, como os nossos leitores bem sabem, sobretudo os pequeninos, de casas baixas, têm muito mais olhos vigilantes para lá dos das Senhoras Mães.
E acontece que, mesmo ao lado dessa escada, começava o muro da casa do Sr. Julião, reformado dos Correios, como já devo ter dito, onde tinha sido desenhador.
Agora tudo se faz no computador. Até mesmo aquelas coisas que dantes exigiam experiências demoradas, simulações com maquetes e por aí fora,  são facilmente substituídas por meia dúzia de equações e uma equipe de programadores competentes.
No seu tempo, o Sr. Julião tinha um estirador, um complicado jogo de réguas e canetas de todas as espessuras e desenhava com uma paciência minuciosa e com as medidas exactas, as peças que os engenheiros pensavam e que, depois, operários que eram verdadeiros artistas, executavam. Era ainda no tempo em que as empresas fabricavam as seus próprios equipamentos. Agora, em tempos globalização, digo eu, compra-se aos americanos e aos alemães que, por sua vez, mandam fazer tudo na Tailândia, transferem os lucros para os Bancos Suíços e estes para as diversas offshore espalhadas pelo mundo.
O Sr. Julião não chegou a ser substituído por um computador que desenhasse melhor e mais depressa do que ele: quando as oficinas dos Correios fecharam e os engenheiros passaram a ser gestores, o Sr. Julião pediu a reforma e veio para casa fazer barcos com paus de fósforos para dar que fazer às mãos enquanto os pensamentos, esses voavam livres como sempre tinham sido. Por onde andavam, só ele sabe e, se tiver de ser, a seu tempo nos dirá.
Mas, se a um pobre sem abrigo como eu, a viver por onde calha, for permitido dar um conselho àqueles dos meus jovens Leitores que têm um temperamento menos competitivo e mais sonhador, recomendo-lhe vivamente, mesmo com o risco de ofender algum Pai mais extremoso: desenhem. Desenhem, desenhem, desenhem, que o desenho liberta ainda mais do que escrever coisas como estas que estão aqui a ler e que, receio bem, só sirvam para nos angustiar.
Mas, onde é que eu ia?
Felizmente a minha Senhorinha nunca se esquece estas coisas de que estávamos a falar do Sr. Julião, e de como ele ia envelhecendo a construir caravelas e outros mais recentes barcos, traineiras, rebocadores e até um grande petroleiro com mais de um metro.
De há muito abandonara ele os paus de fósforo, não sem que eles, pobres pauzinhos, não tivessem contribuído, à sua canhestra maneira, para lançar uma ponte entre as gerações e criar uma sólida amizade entre o Primo da minha Senhorinha e o antigo desenhador dos correios.
Tudo começara, ainda o Carlinhos, com quatro ou cinco anos, nem ia à escola, nem sonhava vir a chamar-se Chuck nem vir a encontrar uma Magrizela.
Costumava ele empoleirar-se num banco, de queixo esticado por cima muro de separação entre os dois quintais, a ver o Sr. Julião, com uma paciência de quem já não quer chegar a lado nenhum, a colar fosforinho a fosforinho, até erguer um mastro, construir uma amurada ou uma chaminé.
E como era lento aquele avanço. O rapazinho ia, esticava-se, espreitava, descia do banco e ia perseguir o gato para o abraçar, o gato fugia, ele voltava ao muro e o barquito ali encalhado por falta de fósforos num costado, o Sr. Julião debruçado sobre uma coisa nenhuma que se visse.
O Carlinhos convenceu-se de que era a falta dos pauzinhos ardidos numa ponta o que assim demorava a obra. E vá de se dirigir à cozinha, arrastar um banco, pôr-lhe outro em cima, trepar para a pedra da chaminé, apoiar-se no fogão e subir para o segundo banco.
A Mãe costumava guardar lá no cimo a reserva das caixas de fósforos, quatro, novinhas em folha, ainda dentro do involucro transparente. Mesmo esticando-se e oscilando perigosamente em cima dos bancos empilhados, as almejadas caixas ficavam muitos centímetros acima dos dedos de Carlinhos. Foi preciso descer, de novo com o apoio do fogão - felizmente apagado - ajoelhar-se em cima da pedra, descer para o chão  e procurar um qualquer coisa que lhe servisse de prolongamento para o braço, voltar a subir e, com a ajuda de uma colher de pau, precipitar lá de cima as caixas que caíram com estrondo sobre a tampa do balde do lixo.
A Mãe, felizmente, andava lá por cima com o aspirador.
Com os fósforos na mão, o Carlinhos marchou outra vez para o quintal, espreitou por cima do muro; do lado de lá, o velho Julião olhou-o por baixo das espessas sobrancelhas e perguntou:
- Hum! Estás de volta?
- A chaminé é muito alta - justificou-se o Carlinhos. e esticou o braço direito bem acima da cabeça.
- Hum-hum. É bom, para não morreres como o João Ratão, cozido e assado no caldeirão.
O Carlinhos achava aquela história parva porque os ratinhos não se aproximavam sequer de uma coisa quente, quanto mais ir um deles mexer no caldeirão, por muito bem que cheirasse.
Não disse nada: à uma, porque já percebera que discutir com os mais velhos é uma perda de tempo; e depois, porque acabara de pensar que os fósforos que trazia da cozinha não iam servir para nada. Tinham uma cabecinha encarnada e os que o Sr. Julião colava ali na bancada o que tinham era a ponta preta.
Um problema a resolver, decidiu ele. E, abrindo o invólucro, tirou um fósforo e riscou-o.
Estava proibido de o fazer e, no instante seguinte, quando as quatro caixas explodiram repentinamente, percebeu por quê.
Os mais jovens dos meus Leitores já se espantaram certamente com o temperamento de um fósforo quando o passamos pela lixa; parece estar para ali, numa soberana indiferença, e de repente, zás! A chama!
Imaginem o que aconteceu com quatro caixas, com cem fósforos cada. Uma enorme labareda subiu pelos ares e, felizmente, tão depressa tinha vindo como se foi e o Carlinhos recuou assustado caindo do banco abaixo.
O Sr. Julião veio resmungar por cima do muro.
- Hum! O rapaz é parvo! Olha lá, aleijaste-te, hum?
Sentado no chão, com os óculos pendurados só de uma orelha e um cheiro intenso a cabelos queimados, o Carlinhos olhava para aquilo tudo sem perceber bem o que lhe tinha acontecido.
- Estás bem, tu, hum? - insistia o Sr. Julião sem saber se os seus velhos anos e o reumático nas articulações lhe deixariam saltar o muro.
- 'Tou. - respondeu o Priminho da minha Senhorinha sem ter muito a certeza.
Depois endireitou os óculos e levantou-se para agarrar as caixas chamuscadas e ainda quentes.
- Toma. - disse ele e estendeu-as na direção do muro.
- Para mim, hum? Hum... ah. Obrigado.
E o que se seguiu, perdoarão as gentis Leitoras e os Cavalheiros, mas tem de ficar para a próxima vez, que a D. Fernanda quer fechar a loja e eu quero tudo, menos que ela se zangue comigo.
 

quarta-feira, setembro 04, 2013

BOM DIA E UM QUEIJO (segundo episódio)

Nesse dia, tenho de o dizer, o Zé Nesgas perdeu a paciência e desatou aos berros.
Não é que a voz dele, fininha como era, fosse impressionante, sobretudo porque vinha lá de baixo do seu palmo e a terça de altura (ou, talvez devesse dizer, de «baixura» se não fosse parecer que estava a ser sarcástico, o que não é, de todo, a minha intenção. A minha Senhorinha que me conhece, poderia ser nisso a minha fiadora, se não me repugnasse ser a causa de mais esse incómodo).
Bom, mas perguntam as gentis Leitoras, o que gritou então esse tal Zé Coiso? E eu reparo que têm toda a razão e acabei por não o dizer.
O autoritário brado foi simples:
- Man, isto tem de acabar! - e alteando a voz: - Tem de acabar, man, isto assim não é coisa nenhuma!
E não era, mesmo descontando que eu omiti alguns vocábulos, digamos, menos elegantes na fala do colérico rapazinho.
De facto, a Magrizela andava a acordar, lá ao fundo, debaixo da cama, com um humor de cão, o que, diga-se, não é de todo de estranhar.
Mas, perdoem-me que intercale aqui um aviso e um pedido de desculpas.
As Gentis Leitoras e os Cavalheiros que me estão a ler já protestaram, certamente,  contra esta entrada de chofre, tipo a pés juntos, na história do Carlinhos e dos seus amigos. Mas verão que era absolutamente necessária.
A minha Senhorinha conhece bem a tendência que eu tenho para andar por aí a «dar água sem caneco», uma expressão muito antiga, bem ao jeito da Senhora sua Tia. Mesmo tendo nascido na pequena vivenda do bairro de Nossa Senhora dos Anjos, como já devemos ter dito, a Mãe do seu Primo Carlinhos, tem uma forte costela rural; as suas opiniões, por vezes bem contundentes, exprimem-se quase sempre por provérbios, por expressões do tipo «nem sol na eira nem chuva no nabal» a propósito dos nossos governantes, e tantas outras que seria inútil tentar dizê-las a todas.
Mas reparo que, ainda antes de explicar porque é que a Magrizela acordava todos os dias com o tal humor de cão, talvez devesse dizer, mesmo se brevemente, o que é um «caneco», esse sem o qual tanta gente anda por aí a fingir que dá a água.
Hoje em dia, os que ainda por aí andam já são de plástico.
Dantes, porém, os canecos eram feitos de madeira, do mesmo modo como ainda se fazem as pipas para o vinho: as peças de castanheiro ou de carvalho, chamadas aduelas, eram encurvadas ao fogo e apertadas com arcos de ferro. Tinham uma pega cá em cima e, muitas vezes outra mais em baixo, do lado oposto. Levavam para aí uns vinte litros de vinho ou de água e acartavam-se às costas, o que não era pêra doce para ninguém.

 
Também eu, quando perdi o emprego, já lá vão muitos anos como a minha Senhorinha sabe, entre outros biscates, andei nas vindimas e acartei muitos deles ao ombro. Palavra que também eu preferiria andar a dar a tal água sem caneco nenhum.
Mas vejo que me afastei do assunto que, afinal, aqui nos trazia a todos.
Desde que chegara a casa, trazida à corda pelo Carlinhos, a Magrizela recusara-se a dormir num colchão macio, com almofada e lençóis.
Onde ela gostava de se enfiar era debaixo da cama do Primo da minha Senhorinha, lá bem ao fundo, enrolada num tapete.
Durante os primeiros tempos até dava jeito. A Mãe do Carlinhos podia entrar e sair, sem dar pela Magrizela que tinha bem a noção da estranheza daquilo tudo e, lá de baixo, rosnava tão baixinho quanto podia. Só havia um problema, mas esse, acredito, era bem mais embaraçoso.
A minha Senhorinha conhece o seu jovem Primo: tímido e contemplativo, com uma mais do que parca experiência das coisas do mundo. Como conseguia ele convencer a Magrizela quando, a meio da noite ela acordava e se dirigia para a porta decidida a ir para o quintal fazer... como direi? os necessários?
Bem tentava ele encaminhá-la para a casa de banho. Porém, para a Magrizela que até essa altura poucos dias passara debaixo de telha, uma sanita tinha sido apenas um sítio onde beber água quando os donos se esqueciam da tijela.
Felizmente, o Zé Nesgas tinha, em capítulos desses, alguma experiência.
Era o terceiro de uma irmandade de quatro em que tinha o azar de ser o único rapaz.
A minha Senhorinha, sendo filha única, não tem bem a noção de quanto duas irmãs mais velhas, sempre em segredinhos e risadinhas, podem ser cruéis para os irmãos mais novos.
O Zé Nesgas teve de tomar a defesa da mais pequenina e, no fundo, coube-lhe a ele a tarefa, nem sempre gratificante, de evitar que ela se ferisse com as tesouras que as mais velhas deixavam por ali depois de cortar as unhas, que caísse das escadas abaixo quando as outras deixavam a porta da rua aberta, de acudir quando a pequenita batia com a cabeça numa esquina e desatava num berreiro.
E frequentes vezes, quando ela abandonou as fraldas, a acompanhou ao bacio e a amparou na casa de banho para que ela não se enfiasse pela sanita abaixo.
Mas as gentis Leitoras e os Cavalheiros que nos lerem terão de me perdoar se eu entrar agora em pormenores que não constam normalmente em narrativas que possam ser lidas por crianças.
É consensual que, até esses dezoito anos, julgo eu, embora possa estar em erro - quem sou eu para discutir pedagogias e regras de boa e saudável educação? - é consensual, dizia eu então, que um jovenzinho possa matar marcianos, árabes ou chineses, bem como outros monstros variados, num videojogo. Mas nada de falar em xixis e cocós: as senhoras nos romances nunca estão com o período nem têm prisão de ventre.
E, se os Leitores ainda se lembram da gritaria que ia lá pelo quarto do Carlinhos, com o Zé Nesgas aos berros (desta vez sem omitir vocábulos:) «man, isto assim é uma merda, porra!», não ficarão admirados se eu lhes recordar que ajudar uma irmãzita de três ou quatro anos a ir à retrete e depois a lavar-se, não é exactamente a mesma coisa quando se tem doze anos e a rapariguita que se está ajudar tem catorze.
Como a D. Fernanda, que é a encarregada aqui da loja, já me veio dizer «tenho pena, mas olhe que já passa meia hora...» eu acrescento só mais uma coisinha:
A Magrizela, sem dar minimamente por isso, note-se, estava a causar uma perturbação desusada nas hormonas daqueles dois cachopos.
E eles, a falar francamente, não faziam ideia de como enfrentar a situação.