As leituras, felizmente, como dizia há já muito tempo um amigo nosso a propósitos dos símbolos, são como a chuva, acabam sempre por passar.
E passam.
Os livros, a gente lê-os, faz que sim com a cabeça, «oh! como é verdadeiro!». Ficamos avisados. Logo a seguir esquecemos e fazemos as asneiras de sempre.
Se se tratar de literaturas menores, como a ficção científica ou a policial, pior ainda. Das histórias aos quadradinhos, então, nem é bom falar. Alguém lhes liga? Alguém ousa admitir que aprendeu fosse o que fosse com essas literaturas pouco sérias?
Para não irmos mais longe, já repararam que, quando nos levam de casa um livro policial, tipo, «pá, não tens aí uma merda que se leia?», ninguém se sente obrigado a devolvê-lo?
Foi assim que eu perdi uma data de coisas importantíssimas: por exemplo, um livro do Perry Mason, na edição da coleção Escravelho de Ouro que me teria permitido fazer agora um bombástico post sobre o suicídio de Hemingway.
Já viram o prejuízo?
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Mas adiante: o facto é que a culpa não é só dos amigos que nos levam os livritos num bolso e nunca mais se lembram de quem era o propritário quando os re-emprestam a terceiros.
Nós próprios também os perdemos: são nossos, claro, mas ficaram lá para o fundo duma estante, entalados entre filas e filas deles, a ganhar pó, nicho ecológico ideal para gerações e gerações de aracnídeos de toda a espécie (ácaros incluídos).
Nas grandes arrumações, uma vez por outra, vamos dar com uma preciosodade:
- Olha! Um Freeling que já não lemos há anos sem fim!
Ou uma Le Guin, umVonnegut, um Chandler - a propósito, há que anos não leio O Imenso Adeus...
E, inferno e danação, mais um que se perdeu!
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Enfim, un de perdu, dix de retrouvés, da poeira das arrumações surgiu um Hammett, toca a relê-lo, porque reler é recordar, recordar é viver, e viver, tirando umas secas por outras (por exemplo, tenho de levar o meu jipinho à inspeção, já viram?), viver, dizia eu, e espero que concordem, é bem porreirinho.
E então quando encontramos os nossos próprios sublinhados?
É a ocasião impar para uma recherche du temps perdu, tipo Proust à procura de reencontros; sucedem-se os espantos, as exclamações:
- Que raio! Em que é que eu estaria a pensar quando sublinhei isto?
Ou então, com um toque de ternura:
- Pá! Que giro! Que ingénuo que eu era!
Uma vez por outra ficamos a pensar:
- Pois é. É isto mesmo.
Foi o que aconteceu com A chave de vidro, do Dashiell Hammett onde um breve traço na margem abrangia um par de parágrafos.
- Não sei por que continua a falar do senador como se ele fosse um ladrão de cavalos - tinha eu assinalado. - Ele é um cavalheiro e...
- Absolutamente. leia o que dizem a seu respeito no Post: é um dos poucos aristocratas que restam na política americana. E a filha, outra aristocrata. Mas é por isso que o previno: tome tento e garanta-se logo que o for visitar, ou sairá de mãos vazias, porque, para eles, você não passa de uma forma inferior de vida animal, para com a qual não há regras estabelecidas.
É claro, tatava-se de um senador e aristocrara made in Usa, mas eu quis lá saber dessas imensidades quase sobrenaturais: desatei a pensar pequenino, na nossa democraciazinha à portuguesa.
É verdade que toda a gente olha para nós como se fôssemos "formas inferiores de vida animal".
Lembram-se de um livro do Graham Greene chamado O Terceiro homem?
Eu lembro-me, claro, mas também não sei onde pára. Ora acontece que nesse livro havia uma personagem, Harry Lime, se bem recordo, que lá do alto duma roda gigante numa Feira Popular na Viena do pós-guerra, apontava as figurinhas minúsculas lá em baixo e perguntava:
- Se um daqueles pontinhos pretos, lá ao fundo, parasse de se mover de repente, que nos importava?
De facto, tão pequeninos e tão ao longe.
Infelizmente, somos nós, esses pontinhos pretos.
Não há regras para tratar connosco: cortam nos ordenados, nos subsídios de doença, fecham hospitais e palácios da justiça; sobem impostos, taxas, portagens, o que lhes apetece. Vendem ao desbarato aquilo que nos custou milhares de milhões a pôr de pé, a REN, a EDP, o BPN, a TAP, Sines, o transporte de mercadorias, sei eu lá! E já se falou nas Águas de Portugal.
E é quando humildemente queremos protestar, mesmo baixinho, «olhem lá, a àguínha, que fazia tanto jeito...», é nessa altura que sentimos, cá bem fundo:
- Sou uma forma inferior de vida animal.
Se não me acreditam, tentem apresentar uma reclamação às Finanças... perdão: à Autoridade Fiscal e Aduaneira.
Ou então, ir ao banco reclamar contra o aumento das vossas prestações...
O Caixa olhar-vos-á exactamente como o Chefe o olha a ele; e como o Director olha para o Chefe; e como o Chairman do Banco, do alto dos seus vencimentos, cartões de crédito e prémios, olha para os BMWs dos Directores enquanto espera que o motorista o venha buscar.
A prima Cecília
Nós, para não lhes ficar atrás, pumba! Do alto do nosso sofá comprado no Ikea, olhamos para esse Senhor Chairman, quando ele aparece no nosso plasma da Worten, do mesmo modo como nos olhou o seu próprio Caixa.
E pronto. Fechou-se o círculo.
Se pensávamos que a democracia era mais do que isto, estávamos enganados.
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Ficou-me, no entanto, uma dúvida.
Ficaram mais, mas, de momento, esta já chega:
Onde estão e quem são esses aristocratas da nossa sociedade a quem nós pudéssemos chamar com algum grau de certeza, «formas superiores de vida animal»?
Ao olhar para as figuras públicas, nenhuma me parecia merecer esse epíteto. Nem Bavas, nem Mexias, muito menos os Relvas, os Cavacos Silva, os Majores e Meneses, os Pinto da Costa e os outros de quem não fixei os nomes.
E olhando para o passado, para as prateleiras poeirentas das minhas memórias, também não: certamente que não o Soares, nem o Guterres, nem o Barroso. Ninguém que eu tivesse visto no plasma.
Então, decidi-me. Que tal fazer assim uma espécie de retrato-robot e procurar por eles como se fossem foragidos e a justiça os reclamasse?
Agarrei no lápis e zás.
A Sra. Dona Estefânia Alice Cecília do Menino Jesus é, quem sabe, o primeiro.
Quem a encontrar, cale-se muito bem calado e não diga nada a ninguém.