brincara com as teclas num arremedo da Dansa Russa e,
com um alicate, entreteve-se por momentos a cortar-lhe as cordas.
Depois tinha-se ajoelhado no tapete, junto à mesa que fazia de palco à Petite danseuse de catorze ans. O olhar, como se fosse ainda menina, razava a nogueira polida do tampo, e o dedo estendido contra a base da estatueta empurrava devagarinho, como se a pudesse fazer dançar. A Petite danseuse erguia os olhos para lá,
para onde havia um lustre. «Não estás num verdadeiro palco com uma ribalta», disse Aka. «Nem aquilo ali em cima é a verdadeira luz.
É só um vidro, cristal de Veneza dizem, pingentes que cintilam, falsos brilhantes, cintilações... Banalidades. Palavras. Deus, se tivesse bom gosto nunca as usaria. Mas Ele só fala a linguagem dos dins cantores, a linguagem da glória.»
Uma volta mais leve deixou a Petite Danseuse à beira do seu tablado.
«Antes de cairmos, dei-te um dos meus nomes,
o que eu mais gosto por me lembrar o Petruska do bailado.
Perdoa-me, Petra, amanhã faço quinze anos.
Leva o meu nome e a minha alma contigo para que ninguém mais nos use.»
Do tapete, deitada de lado, com as pernas partidas,
a Petite Danseuse olhava-a enfim, de olhos nos olhos.
O inesperado caminho da morte de que todos falam, esse descampado percurso ao geográfico sol que nos impede de ver os felizes contornos da vida, chega sempre cedo demais.
Obstinados sem-abrigo, treinamos a sobrevivência, agarrando com os violentos punhos do amor, o vago fio que nos atrasa o fim. Protegemo-nos da prolongada e da diurna luz no aconchego clandestino do ginásio, que nos prepara o corpo da solidão.
Não há morte feliz ao ponto de como só a vida o poderia ser.