Letra: Floriano
Música: Beto Lopes
A noite acaba feito gim. O senhor K. não é uma criatura débil como uma haste de verbena; e até afirmou, em determinada ocasião, que o excesso é fundamental; que o excesso leva ao Castelo da Pureza; disse, igualmente, que a vida lhe fugia em cada sopro que vazava dos lábios finos do destino. Tinha um olhar, o senhor K., de ser gerente do The Bay Hotel --- mas ele é o gerente do The Bay Hotel ---, apenas esqueceu por um instante. Seus primeiros pensamentos da manhã já se parecem com os seus últimos pensamentos do dia. A cabeça, a do senhor K., mais bruta do que a cabeça do açougueiro Hamm. Apenas o tédio é, nesse meio-dia de verão, mais bruto, e cáustico. Não aspira, o senhor K. não aspira nunca ao céu. Como Orfeu, parece que está sempre recolhendo no vaso da alma, a um só tempo, um sáurio gravemente ferido e uma deusa com tímpanos de chuva. A noite acaba feito gim. Foi sugerido ao senhor K. que, entre as cinco irmãs — escolhesse uma—, e o senhor K. apontou para Joana, a única a quem a natureza tinha dado todas as rosas do amor. Todas as outras quatro irmãs mais pareciam ter seiva de areal, isto é, eram secas. Eu convido Joana para as fadigas de uma noite de núpcias ou o lúbrico serpentário da língua na nuca. Joana, a boa menina, lânguida após um copo de gim ou mais lânguida se o senhor K. tenta acariciar o musgo molhado entre suas coxas. A noite acaba feito gim. Joana guarda no relicário íntimo a sua fragilidade e a razão de preferir uma Cassiopéia boreal a uma longa temporada no Gehenna fumegante; entre ácaros e lesmas, entre chifres e cascas de cigarra. Um sopro inaudível conta à Joana que ela sabe mais que as plantas e os peixes; que ela sabe mais que os santos. Joana morena, olho verde, cabelo comprido. Por causa dela o galã da noite --- o senhor K.--- poderia até entoar antífonas religiosas na Ilha da Ilusão ou, após beber litros de gim, cairia de língua nas peles, nos pêlos dessa Joana de circunstância --- dessa mulher que enxágua retinas --- e se entrega, de quatro, feito uma piscina molhada, ao senhor K.. A noite acaba feito gim.
Fernando José Karl
Vazio, a segunda-feira grita-se em azul. As paredes brancas do apartamento embranquecem ainda mais sua vida. Não o embranquecer da limpeza, da pureza, dos inícios do ano, mas o embranquecer da cegueira, dos anúncios de que vereadores de sua cidade locupletam-se em carros alugados, de que filhos do ex-presidente ganharam passaportes diplomáticos, de que a vida nas altas esferas do poder continua lá, nas altas esferas. Todos se esganiçando atrás de um naco de privilégio, enquanto ele aqui, sobre um colchão danificado, escamoteia palavras, fuça-se, força-se atrás de um assunto qualquer, de um conjunto de palavras que possam ser publicadas, que possam ser lidas e agradem àqueles que o leem. Vontade de citar o filósofo Emile Cioran, vontade de deixar a página em branco, vontade de encontrar o jacaré Fritz e pedir para que deixe o rio poluído de sua cidade, tem tanta dó dos bichos à margem do rio, soubessem o que comem, soubessem que são vítimas também da violência da cidade. Cioran o salvará nessa hora: “Enquanto os homens sentirem paixão pela sociedade, reinará nela um canibalismo, […] suprima seu desejo de ser escravos ou tiranos: a sociedade ruirá em um abrir e fechar de olhos, o pacto dos símios está para sempre selado; e a história segue seu curso, horda esbaforida entre crimes e sonhos, nada pode detê-la: mesmo os que a execram participam de sua carreira...”.Por que ler isso? Por que não ficar na superfície, nas águas rasas do cotidiano, olhar as formigas, olhar os lírios do campo, olhar a Serra do Mar, ir lá onde o rio nasce. Talvez lá ele esteja limpo, assim como todos os homens, nascem limpos, seguem limpos até certa idade. Mas depois o pacto dos símios os alcança e nada mais podem fazer, senão dançar a música, invejar quem dança melhor, quem se elege melhor. É um novo ano, dizem, um tempo de renovar as esperanças. Que palavra essa: esperança, espera misturada com alcança ou espera misturada com cansa, mas sempre espera, sempre o futuro, essa parede branca. Essa segunda-feira azul, essa falta de assunto, esse contínuo apego à rotina. Lembra de Elisa Lucinda, que acaba de lançar “Parem de Falar Mal da Rotina”, Elisa Lucinda precisa ler Emil Cioran, mas Elisa Lucinda precisa ganhar dinheiro também, então não a condena, afinal ela tem assunto, ela sabe o que fala, ela faz participações em novelas de Manoel Carlos, e ele? Ele vomita, vitupera, espanca as pobres palavras e nada diz, nada expõe, pouco altera a rota, ele não sabe o que fala, ele não quer falar daquilo que radialistas indignados falam todos os dias. Afinal, ele é tão hipócrita quanto os radialistas, ele é tão banal quanto Elisa Lucinda, ele é tão previsível quanto Cioran: “Como nosso destino é apodrecer com os continentes e as estrelas, exibiremos, como doentes resignados, e até a conclusão das eras, a curiosidade por um desenlace previsto, medonho e vão”.