Minha avó chega aos 90 anos. Dona Maria, Mariquinha para quase todos que a conhecem. Se o corpo está frágil, a mente ainda é lúcida e atenta. Não apenas a mente, mas o espírito continua firme, denso, moldado nesses noventa anos de experiência. Ela é uma dessas mulheres longevas, vindas do povo, vindas dessa massa de anônimos que compuseram a base real do nosso país. Não é filha de família nobre ou rica. Sua nobreza e riqueza foram construídas em outras esferas, foram mais talhadas pelo suor do que pela herança, pela firmeza nas convicções do que pela tradição. A vastidão de uma vida pode ser medida pelo comprometimento que a pessoa tem com essa vida. Minha avó sempre caminhou pisando firme o chão que a sustenta e deixando em todos nós marcas perenes do comprometimento que ela tem com a vida. Mesmo depois que sofreu um acidente cardiovascular, mesmo depois de seu corpo só responder com a metade dos movimentos, a firmeza dos passos e das palavras permaneceu. Quem chega aos noventa anos, chega com o peso da vida nas costas. Para aguentar esse peso, é preciso ter se preparado todo o tempo, alimentando-se na esperança, na fé, no fazer diário da vida, na aceitação contínua das perdas e ganhos. É ter a certeza de que os ganhos são reais e nos acompanham sempre, já às perdas devem ser destinadas ao esquecimento, ao perdão, ao passado. É preciso ter firmeza. A firmeza de minha avó vem de sua ligação com a terra, com as plantas e bichos, com o trabalho incessante para dar à família a melhor das condições: não financeira, mas a condição da dignidade, da certeza de que estamos seguindo o melhor exemplo a ser seguido: o de uma vida honrada. A longevidade de minha avó não atravessou somente o século 20, não apenas viu as mudanças radicais que ocorreram no mundo desde que ela nasceu, naquele outono de 1920, mas atravessa todos os dias seus filhos, netos e bisnetos. Uma prole numerosa que gira em torno dela, de seus ensinamentos, de seu comando, às vezes teimoso, mas sempre portador do melhor caminho. A velhice é uma espécie de retorno ao tempo livre da infância, quase como um avesso, um espelho dos primeiros anos de vida, um desapego às responsabilidades, quando já não existem às obrigações de cuidar e manter tudo a sua volta, depois que tudo foi devidamente e incessantemente cuidado. Assim, a longa vida da Dona Mariquinha nos mantém ligados, não apenas como descendentes, mas por algo que vai além, e que forma a essência da palavra família. Hoje, todos temos nossas vidas, nossas estradas estão sendo trilhadas e, se soubemos por onde estamos indo, muito devemos à presença em cada um de nós, desse sol chamado Maria Ferreira de Souza. A nossa gratidão é retornar para ela um pouco da luz que nos deu. A minha luz segue transformada em palavra: parabéns vó e obrigado por tudo.
quarta-feira, 28 de abril de 2010
Uma crônica de Rubens da Cunha
Minha avó chega aos 90 anos. Dona Maria, Mariquinha para quase todos que a conhecem. Se o corpo está frágil, a mente ainda é lúcida e atenta. Não apenas a mente, mas o espírito continua firme, denso, moldado nesses noventa anos de experiência. Ela é uma dessas mulheres longevas, vindas do povo, vindas dessa massa de anônimos que compuseram a base real do nosso país. Não é filha de família nobre ou rica. Sua nobreza e riqueza foram construídas em outras esferas, foram mais talhadas pelo suor do que pela herança, pela firmeza nas convicções do que pela tradição. A vastidão de uma vida pode ser medida pelo comprometimento que a pessoa tem com essa vida. Minha avó sempre caminhou pisando firme o chão que a sustenta e deixando em todos nós marcas perenes do comprometimento que ela tem com a vida. Mesmo depois que sofreu um acidente cardiovascular, mesmo depois de seu corpo só responder com a metade dos movimentos, a firmeza dos passos e das palavras permaneceu. Quem chega aos noventa anos, chega com o peso da vida nas costas. Para aguentar esse peso, é preciso ter se preparado todo o tempo, alimentando-se na esperança, na fé, no fazer diário da vida, na aceitação contínua das perdas e ganhos. É ter a certeza de que os ganhos são reais e nos acompanham sempre, já às perdas devem ser destinadas ao esquecimento, ao perdão, ao passado. É preciso ter firmeza. A firmeza de minha avó vem de sua ligação com a terra, com as plantas e bichos, com o trabalho incessante para dar à família a melhor das condições: não financeira, mas a condição da dignidade, da certeza de que estamos seguindo o melhor exemplo a ser seguido: o de uma vida honrada. A longevidade de minha avó não atravessou somente o século 20, não apenas viu as mudanças radicais que ocorreram no mundo desde que ela nasceu, naquele outono de 1920, mas atravessa todos os dias seus filhos, netos e bisnetos. Uma prole numerosa que gira em torno dela, de seus ensinamentos, de seu comando, às vezes teimoso, mas sempre portador do melhor caminho. A velhice é uma espécie de retorno ao tempo livre da infância, quase como um avesso, um espelho dos primeiros anos de vida, um desapego às responsabilidades, quando já não existem às obrigações de cuidar e manter tudo a sua volta, depois que tudo foi devidamente e incessantemente cuidado. Assim, a longa vida da Dona Mariquinha nos mantém ligados, não apenas como descendentes, mas por algo que vai além, e que forma a essência da palavra família. Hoje, todos temos nossas vidas, nossas estradas estão sendo trilhadas e, se soubemos por onde estamos indo, muito devemos à presença em cada um de nós, desse sol chamado Maria Ferreira de Souza. A nossa gratidão é retornar para ela um pouco da luz que nos deu. A minha luz segue transformada em palavra: parabéns vó e obrigado por tudo.
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Poema de Cristiano Moreira
antes do raio, a mão sobre a cabeça
foi gesto desenhado no escuro
não era pedra ou rio aquele mundo
antes, arco voltaico sobre os ombros
fronteiras aéreas de espaços abertos
salva pelo rosmarinus impassível
na soleira lado leste da cabana
soleira sem sol, leituras cinzas
quando raio, a mão colada ao corpo
toca pele rugosa sem infância
nas rugas o verniz desaparece
resta impronta do raio que se apaga
na memória, o ruído dos teus passos
são ruínas do escuro em meu corpo
membrana deste espaço maculada
na ausência de teu corpo todo fótons.
sábado, 24 de abril de 2010
Um poema de Antonio Carlos Floriano
um salão de baile
o vão central da central do brasil
sexta-feira, 23 de abril de 2010
Lançamento do livro CELACANTO
quarta-feira, 21 de abril de 2010
Uma texto de Marco Vasques
“A estética tem por objetivo o vasto império do belo.”
(Hegel in Estética)
O corpo dentro do corpo: pulsão e memória. Também vazio, nadeza e silêncio. O corpo fora do corpo: memória, sentido, imagem construída, caleidoscópio, fragmento. O que sai de mim ainda é meu? O que acumulo e cai no esquecimento é memória? O devir bailarino de sombras e luzes que capturo e carrego me é imanente? Se se tem a memória o que é feito da outra parte que é o esquecimento? Como penetrar na memória do esquecido? E de pergunta em pergunta chegamos a desinstruções dos sentidos para recobrar o impacto que a exposição da jovem artista Juliana Crispe nos provoca. O trabalho da artista, exposto na Galeria Municipal de Artes de Florianópolis, nos reaproxima da poética da imagem há muito perdida e vulgarizada. A matéria de Juliana é o corpo fora do corpo, mas dentro do corpo ainda, portanto memória. Sua poética é construída a partir das pegadas sutis que o corpo, na sua trajetória rumo ao esquecimento, vai perdendo para construir um presente-passado-presente. A sombra, o cílio, o cheiro, o suor e suas mitologias são abordados, na exposição que leva o título Fabulações Reminiscentes, como o microcosmo do apagar-se e aceder-se diário. E se Heráclito nos coloca no seu panta rei e diz que a matéria primordial, de onde todas as outras coisas derivam, é o fogo. Então podemos dizer que a arte de Juliana Crispe vem do fogo porque arde, arrebata, desequilibra, morde a memória e inscreve sua imagem (no caso as fotografias) na memória-carne da retina, e, sobretudo, para acompanharmos o raciocínio do filósofo, modifica a matéria-corpo pela ardência até alcançar o corpo-matéria. Estamos, seguramente, diante de uma espécie de tatuadora de almas. O vídeo-arte e as fotografias sequenciadas resultantes das experimentações da artista conseguem prontamente a absorção dos/pelos sentidos (aisthetikos). O mesmo não se pode dizer da tentativa de dialogar com a literatura, pois há momentos em que a palavra polui a imagem, mancha o silêncio e redunda a tensão já provocada, por isso se torna excesso. O trabalho que ela propõe com as sombras não é propriamente original, pois o poeta Mário de Andrade deixou uma sequência de fotos similares, todas tiradas por ele na fazenda Santa Tereza do Alto, da artista Tarsila do Amaral, que se intitula Sombra minha, contudo isso não compromete a força aterradora que a artista imprime em suas obras. Estamos diante de um belo atroz. Navegar pelas imagens de Juliana Crispe é nadar na cartografia das ampulhetas e clepsidras. Chegar perto de sua luz e mergulhar no tempo dentro do tempo, no corpo dentro/fora do corpo?: derrete as asas das retinas.
Poema de Cristiano Moreira
Capsicum SP
da Grécia a dança rubra é o fogo no céu
cárceres de carne kapto lábios de brasa
cresce ao vento nos silvos das ramagens
negra hera adorna o corpo do espantalho
parado diante do viço e crueldade da erva
arde Marte no sono sem tempo para ver
ornato de olhos rubros dentro do vinhedo
rondando de uva em curva o sabor da carne
temperada pela ordem e fumo de Saturno
capsicum, planta maliciosa entre dentes
fogo cujo sabor o tempo ensina a língua
Uma crônica de Rubens da Cunha
As mãos denunciam a velhice. Se pelo menos parassem de tremer. Não tão velha assim. O que lhe acaba são estas mãos. Foram bonitas, lisas. Agora tremem, tremem sem parar. Não se lembra bem quando começaram a tremer. Era manhã, disso tem certeza. Durante o café, a xícara cheia, não conseguiu segurar. Não entendeu muito bem, pensou em procurar um médico, mas depois esqueceu. A partir daquele dia os tremores ficaram cada vez mais constantes. Ninguém soube diagnosticar direito. Parkinson não era. Síndrome rara, disse o médico, precisamos de mais estudos. Desde então espera, mas dos doutores obteve somente o silêncio. Olha-se no espelho. Nariz rapina. Boca crespa. Olhos fundos: se visse em outra, não iria gostar. Tantos anos se passaram que perdeu a conta. Contou o tempo alguma vez? Não. Jovem, encaminhava-se inteira sobre todos. O tremer vinha dos homens que a cortejavam, que balbuciavam elogios. Via também os lábios das outras mulheres tremerem de inveja. Contorciam-se diante dela, que agora treme e inveja as outras velhas firmes. Senta-se na varanda. Sol lá fora. Crianças brincam. Chegam perto: porque a tua mão treme? Não sabe resposta. Esconde nos bolsos. A vovó tá doente, por isso treme. Parece mão de bruxa. Ouve a sentença de uma das crianças. Ri por fora. Faz um movimento de garra com as mãos. Os meninos saem correndo, voltam a brincar. Por dentro: voz aguda de criança. Parece mão de bruxa, mão de bruxa, mão de bruxa. Dói muito. Chora. Mão de bruxa. Tenta segurar as mãos. Mão de bruxa. Com dificuldade entra na casa. Tremendo, limpa lágrimas, na verdade espalha lágrimas sobre o encavado da cara. Suja a cara de sal. Chora mais do que pode conter. Mão de bruxa. Não tão velha assim. Encosta-se na parede. Toda a cozinha treme. Mão de bruxa. Azulejos descolam-se. O piso solta-se. O teto começa a ruir. Quadros caem. Armários tombam. Tudo treme. Mão de bruxa. As paredes internas da casa sucumbem. Não para de tremer. Todo o corpo estremece. Um coro de crianças grita dentro de suas orelhas: mão de bruxa, mão de bruxa. Telhas voam, caibros esboroam-se. Mundo treme. Ela quer parar, não consegue mais. A casa implode. Debaixo dos escombros continua tremendo. Não grita “socorro”. Não ouve sirenes, não se dá conta do desespero da família. Treme apenas. Horas passam. Deitada sob os entulhos da casa. Milagre! Gritam, milagre estar viva. Sai andando. Nada aconteceu. Como pode, meu Deus? Agasalham-na. Hospital, observação. Milagre. Sempre esta palavra espúria saindo entre dentes dos conhecidos. A casa desmoronou, ninguém viu nada, ninguém sabe como foi isso. Ela viu. Ela sabe. Transferiu sua tremedeira para as paredes. Enfraqueceu a casa com sua fraqueza. Queria que o mundo sentisse o seu terremoto diário. Observa as mãos de bruxa: enfaixadas. Os curativos começam a tremer.
domingo, 18 de abril de 2010
Vídeo poesia - Nautikkon, um Navio no espaço
Da série "eu odeio certas verdades" IV
Soren A. Kierkegaard In: O Conceito de Angústia. Ed Vozes.
quinta-feira, 15 de abril de 2010
Uma texto de Marco Vasques
Ampliar o silêncio é uma tarefa difícil e para poucos. A poesia geralmente alcança uma pronúncia errante sobre um silêncio que dói, esmaga, choca e se esfacela, mas que precisa e necessita encontrar uma vibração. Todos sabemos daquela matéria difícil de pronunciar. A matéria-silêncio que nos imobiliza e nos locomove. Quando alcançamos o silêncio, e, enfim domamos sua pronúncia logo outro silêncio nos ocupa. E erramos numa sucessão de silêncios. Somos uma espécie de cavalo selvagem na busca atávica por capturar o impronunciável. Há teóricos da poética que dizem parecer paradoxo, mas a grande matéria da poesia é o silêncio. Um silêncio tem muita potência para morrer na sua própria imagem. Assim saio pensando do espetáculo SIM: a nova experimentação do Grupo Cena 11 Cia de Dança. Desconserto constante da pele. Ampliação da pele. Construção de vazio. Câmara negra que cega para redimensionar a visão. Violência contínua. SIM é um espetáculo intimista que coloca o espectador dentro do espetáculo o que equivale a dizer que coloca a plateia dentro de si mesma. Resignificação do vazio. Uma caixa preta projetada numa tela branca. Projeção da pele e do movimento. No riso dos dançarinos e no choro: lâmina de luz: nevralgia tragicômica. Os balbucios da canção Bandeira Branca. Bandeira branca sobre o preto. Branco sobre preto. Preto sobre o branco. Tourada que invade a plateia, mas que não atinge com o toque. Violação pela ocupação e movimento. O som emitido pelos espectadores e o ritmo e a respiração dos atores são capturados por microfones e, se amplificam o ruído gravam na memória a fratura do breu. A força e a violência de SIM está no silêncio e suas construções. Ao fim do espetáculo os microfones são oferecidos ao público para que o mesmo tente verbalizar o que foi visto, não é de se estranhar que uma enxurrada de asneiras sejam proliferadas, pois a fratura e a energia existentes no espaço não permitem o uso do verbo. Qualquer coisa que se diga soará dissonante à distorção da ausência criada. Ao sair do espetáculo pensei na morte-silêncio-ocupação. “Sim: ações integradas de consentimento para ocupação e resistência” vai além da discussão da ocupação do espaço cênico, do jogo entre espectar e atuar/dançar. A força do espetáculo reside na metáfora da troca dos corpos, na metáfora da carne e sua presença-ausência que multiplica o sem-sentido da ocupação e procura um sentido. Um grafismo poético na pele do movimento. Uma espécie de Sísifo, aquele do filósofo francês Camus, a reordenar a tarefa da reinvenção e da ocupação do corpo-sutileza, corpo-agrura. Um corte na verborragia inócua. SIM. Sim a Alejandro Ahmed e seus bailarinos construtores de silêncios audíveis.
Uma crônica de Rubens da Cunha
Decepção. Palavra difícil. A decepção é sempre um buraco, um espaço de incômodo que colocam ou que colocamos à nossa frente. Engraçado é perceber que a decepção vem do latin decepti, e originalmente significava logro, engano, fraude. Em inglês, a palavra deception, manteve-se semanticamente próxima de sua ancestral, mas em português ela se encaminhou para outro lado, para ser a tradutora do sentimento que se abate sobre a vítima do engano ou da fraude. A decepção acontece, sobretudo, quando há quebra de confiança, traição, desrespeito. Essa é uma decepção justificada, que pode ser apaziguada pelo ódio ou pelo perdão, pela justiça dos homens, ou a divina, a justiça preferida dos decepcionados. No entanto, existe aquele tipo de decepção, que a meu ver, é a mais terrível: a decepção insignificante, menor, que se limita à própria pessoa. São as pequenas e egoístas expectativas não correspondidas, os esquecimentos alheios que nos ferem, mas não o suficiente para que possamos romper, ou brigar, ou levar a questão realmente a sério. Pequenos descuidos que os outros têm conosco e que necessariamente temos com os outros. Essa decepção mínima, às vezes se aproxima da inveja, às vezes da raiva, não raro é só o ego ferido na sua sempre necessidade de atenção. Lidar com esse sentimento faz parte da constituição de cada um, afinal, ninguém está livre de se decepcionar. Tenho visto cada vez mais gente que não consegue fazer o “descarrego” das decepções, deixar o tanque do rancor o mais vazio possível. Vão acumulando as decepções míseras e quando acontece uma grande, justificada, não tem lugar para colocar, então transbordam, surtam. É um perigo. Além disso, existem os alimentadores, regadores de decepção, incapazes de tocar o barco e sair do rame-rame lamentativo, olhar mais para si e perceber que a decepção está restrita ao seu espaço, é, quase sempre uma consequência de suas próprias atitudes. Esse olhar-se a si mesmo, em muitos é trabalho danado, quase impossível: pois quem pouco olha para si é aquele que mais pensa somente em si, que mais quer manter o domínio mesquinho sobre tudo e todos. É sempre a vítima, tem sempre o mundo conspirando contra. Certa vez, ouvi uma ironia que dizia: “O mundo pode não conspirar contra mim, mas a favor também não está conspirando”, o que me remete a um daqueles versos-sabedoria de Mario Quintana que diz que o pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso. Enfim, por mais interessante que seja, o mundo não é um planeta que fica girando em volta de nós, sóis exclusivos. Trazer a vida para um plano mais embaixo, mais cotidiano, rir das pequenas mazelas, conhecer melhor a velha e boa empatia, pode nos fortalecer substancialmente para quando a decepção real e forte chegar nos devorando. Talvez o caminho seja reaproximar a decepção ao seu significado original, entendê-la como um engano, uma fraude, e que para vivermos melhor, o melhor é não nos submetermos a ela.
sábado, 10 de abril de 2010
Da Série "Eu odeio certas verdades" III
Paulo Leminski - Poesia: a paixão da linguagem.
in: Os sentidos da Paixão. Ed Funart / Cia das Letras.
sexta-feira, 9 de abril de 2010
O espantalho ou a linguagem vertical -
http://linguagem.unisul.br/
abraço.
Cristiano Moreira
quinta-feira, 8 de abril de 2010
DOS DIAS E DAS MANHÃS
2) morder o líquido e queimar o azul depois do arrebol
3) roer a pele da aroeira
quarta-feira, 7 de abril de 2010
Crônica de Rubens da Cunha
CANTAR É UM ATRAVESSAMENTO
Cantar é um atravessamento. A voz molda-se na garganta e atravessa, plena, quem ouve e quem canta. Cantar, mais do que falar, é o que redimensiona o humano, pois não é apenas emitir com a voz sons ritmados e musicais, conforme uma das acepções no dicionário, cantar é mais, preenche poros, ouvidos, olhos, nariz, língua e pensamento. Há em quem ouve o canto uma espécie de submissão, de entrega à música vinda de outro corpo. Por outro lado, quem canta e sabe o poder que tem, manipula-se e manipula o outro com a voz. Desde tempos imemoriais é assim, quando cantar aparentava-se com o transcender, com o ascender aos deuses e conseguir deles benefícios para uma vida melhor. Resquícios desse trânsito, desse caminho às alturas ainda permanecem nos corais, nos mantras, nos cânticos de louvor e, sobretudo, em algumas vozes, tão místicas que mais se assemelham a um voo, um voo abissal em direção a Deus. Quem canta parte-se em fios, como na canção de José Miguel Wisnik e Paulo Neves: “Porque sou dois / Sou mais que dois / Sou muitos fios / Que vão se tecendo / Com a voz do outro em mim / E quem canta não sabe o fim / Com medo e alegria / Ele anda por um fio”. Não apenas quem canta, mas tudo ao seu redor, tudo passa a ser um tecido de música, a ser um só corpo que desconhece o fim porque está amparado no canto. Talvez por essa malha de fios, por esse atravessamento, cantar me pareça ser tanto um ato feminino. Homens arriscam-se, alguns até expõem de forma completa a sua ânima, seu feminino de dentro no canto, mas uma mulher cantando está além da fronteira do entendimento, os pés estão fincados naquele instante das grandes transformações, no momento em que o grão de areia machuca a ostra, em que a gazela atinge o faro do leopardo, em que o olho, muito mais do que ter visto a estrela cadente, sonha em vê-la. Cantar é estremecer, expor a pele interna das emoções. Mulheres sempre me pareceram mais aptas a isso. Posso cair em superficialidades ao afirmar tal ideia sem nenhuma base científica ou estética, mas me amparo nos mistérios da fé: a minha fé no cantar me diz que ele é todo ânima, é todo fêmea, curva e adentramentos. É nisso que creio, é isso que busco quando ouço alguém cantar e, na maioria das vezes, só consegui encontrar numa voz feminina. Cantar é um pertencimento àquela voz. Dentro de mim o canto mastiga, digere, salmodia meus sonhos, desejos. Dentro de mim, o canto inaugura cantos desconhecidos, joga luz sobre escuros impronunciáveis. Revela-me. Toda vez que sou atravessado pelo cantar de uma mulher, há um desnudamento, mesmo que ela cante algo que não me atinja diretamente, só o cantar, só o pronunciar as notas já bastam para que eu, como meus ancestrais de antes do tempo, consiga atingir o Incorpóreo Sem Nome.
segunda-feira, 5 de abril de 2010
Leitura de Poesia - imagens
O poeta Marco Vasques abriu os trabalhos da noite. ao fundo, Rodrigo Garcia Lopes.
Na fotografia ao lado, o poeta Rubens da Cunha
Da esquerda para direita (primeira foto):
Antonio Carlos Floriano, Cristiano Moreira, Dennis Radünz e Ryana Gabech.
Leitura de Poemas dia 04 abril
Deixo aqui os dois poemas que li. Poemas sem moradas em livros.
Báçira
I
um cartapácio de folhas secas e pano
estralam sob as digitais
as palhas, as falas, o solo, as solas
rachadas, hidratadas
um corpo
igual sob a luz q desce a oeste
ao som comprido de um oboé.
quero mesmo todas as falhas
as frestas todas as cores todas os dias
a dança de todas as noites e a imobilidade
de lugar outro, tempo outro, os mesmos no exterior
da maquina do Dr. Faustroll
poucos vêem
outros menos ainda
dançam.
ser cartapácio
desperta um desejo de síntese.
memória, até parece.
por isso as digitais
suas vertigens e deltas
povoam estas margens
olhos baixos bulbos de luz intensa
porém embargada
não chove, não chove, não chove
(assim a seara seca sob as solas)
palavras verdes, húmus, volutas, poeira:
flores maduras sob o sol
desidratam as tatuagens
onde os olhos não alcançam
quero te ver dançar
na pele da tarde talvez
II
povôo este território onde antes mar,
sua desmedida quantidade de pétalas
esta guirlanda inerte na areia,
ignorada, pode mentir, porque tem sangue.
não faz diferença, talvez mau agouro.
distante assim pro mar a maresia
dança o espantalho de costas. aqui. Longe da foz
ilumina-o as frases do trompete
as pétalas que deixei na beira da praia
agora, uma esquadra sem bússola
estrelas boiadas, borboletas marinhas
virei as costas na partida, segui
os mesmos passos do espantalho, do Báçira
tudo gira ao seu redor, ao meu. ali, dançando. no campo árido
como extensão que só existe entre as palavras,
o enorme silêncio. talvez aqui a minha casa
talvez aqui, sinta, como no mar, a extensão
e o solavanco, as fronteiras rangendo ao longe
planto e pesco neste espaço
povôo as falhas das letras, minha mais cara não sabência .
quem sabe em breve floração
a qualquer momento podemos não ter o solo,
dizemos, então: vento.
diante de todo este espaço:
_ um campo re-coberto de naufrágios.
[o espantalho olha de lado, sorrimos]
*
a bicicleta de H.H.desmontada
para Rafael Duarte
antes mesmo do ronco,
da corrente que enguiça
da mola, da mente;
o ferrugem a banguela - a feia
esta que foi, é
lambe o chão
onde cospem os homens
que a modorra carcome
esta sim
aquela que abre a carne mole
para passar uma ponte
um gato com rato na boca
uma boca de lobo com a gengiva inflamada
tentei ainda, tentamos
antes ainda do ranger de dentes
quando os pedalins ainda eram cataventos
lá, nesse lugar que é bueiro
mesmo lá havia brisa
onde a praça ? onde dança a feia?
onde o morro atropelado de teobaldo?
antes ainda
tento lançar minha âncora
fincar o dormente
ver alguns raios da roda
ou do sol
antes do mar da ponte da feia da praça
antes da catinga daquela cinza
fuligem em volta do corpo
antes (onde estávamos?)
um abalo sísmico
o dormente é o antes
o lugar ainda da partida - a ilha a ilha
o ferrocarril da mordedura exata
shhhhh anda rapaz diz o nome dela
_ ó seo, a feia!
então, necessário o retorno.
volto ao inferno
desço a memória
q agora achatada pela fumaça é
escadaria longa, pneu furado
o caminho é diferente
rondando feito bólide aceso na retina
em cabotagem a caixa craniana
baile de marimbondos
caminho diferente depois daquela noite
crescem heras em todos os edifícios
onde, onde crescem heras (?) por todo corpo da ponte
sobre a gengiva da feia
o corpo todo da feia:
o ornamento ganha enfim a fonte, a feia, a falta
a noite ao avesso,
buscava um corpo para habitar.
II
ainda era tudo depois
depois do ronco e da queda
depois do susto e da fenda
depois do rosto, a ruga.
viste já umarruma, na tez da noite?
é assim:
um fio de descarga, um arremedo de poeta, um conjunto de caras falando falando falando
um sonho com um galho na mão, procurando água no poço.radiestesia sem fim e começo
pulmão laminado pelo aço da china, a distância ,a distância que a memória exige. Assim.
aquele rosto falava comigo
ele
um olho maior que o outro
um raio atravessava e ouvia-se
“a poesia não está nisso”
nessa prece, nessa pressa
de engolir em seco.
outro rumor
sob a couro da carta virgem
alí ó – olha
duas bicicletas
pedalando forte sobre a ponte
esse outro ruído não são dentes
são pneus descolando do asfalto molhado.
Assim: páginas nos dedos
a língua do letes lembra a sombra daquela noite
saliva no leste um sol simulando novo começo.
Anda rapaz, larga esta margem de rio.
Cristiano Moreira
sábado, 3 de abril de 2010
Da série "eu odeio certas verdades" - II
Afinal somos feitos pra quê, hen? afinal você aprende aprende, quando tudo está pertinho da compreensão, você só sabe que já vai morrer. que judiaria! que terror! o homem todo aprumado diz de repente: quase que já sei, e aí aquela explosão, aquele vômito, alguns estertores, babas, alguns coices, um jato de excremento e psss... o homem foi-se.
Escreve, filho da puta, escreve! e não vai cair babando em cima da máquina, ela não merece isso.