segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Cartas socialistas ao Pai Natal

Vou comparar os programas de António José Seguro (“Contrato de confiança”) e de António Costa (“Uma agenda para a próxima década”) na sua dimensão económica, em apenas duas vertentes: 1) crescimento económico; 2) sustentabilidade das contas públicas.

Em relação ao crescimento, Seguro percebe que o caminho são as exportações e não o estímulo da procura interna, o que se saúda, já que há imensa gente – alguns com responsabilidades – que imaginam que o crescimento brotaria naturalmente do fim da austeridade, ignorando olimpicamente que Portugal quase não cresce há 15 anos e durante a maior parte desse tempo não fez outra coisa senão estimular a procura interna à custa de endividamento externo.

Pretende lançar um “Plano de reindustrialização 4.0”, com boas intenções, mas com uma certa confusão entre objectivos e instrumentos. Falar em objectivos é muito bonito, todas as candidatas a miss Mundo o fazem, mas definir instrumentos concretos, eficazes e eficientes para os alcançar é muito mais difícil. Logo no início das 80 medidas temos “Reforço da produção nos setores ditos tradicionais, com enfoque na qualidade e na produção de pequenas séries” (p. 17). Isto não passa de um objectivo, aliás de utilidade duvidosa (mas porquê as “pequenas séries”?), de uma intromissão abusiva e despropositada do Estado nas escolhas das empresas. Mas, sobretudo, nem se percebe como poderá ser concretizada. Teme-se a criação de mais lugares para funcionários públicos, que nunca geriram uma empresa, para mandarem bitaites sobre o que estas devem fazer.

Há uma lista infindável de promessas de intervenção pública e uma cornucópia de subsídios para isto e para aquilo e nem uma palavra sobre a redução dos obstáculos do Estado à iniciativa privada, em particular na justiça.

A proposta de António Costa é muitíssimo mais vaga, só fala em objectivos, embora tenha um tom menos burocrático do que a de Seguro. Também reconhece a necessidade de o crescimento se basear na procura externa, vá lá. No entanto, há aqui um aspecto preocupante: “As empresas devem ter também obrigações e responsabilidades perante os seus trabalhadores, os utentes e consumidores e a comunidade local ou nacional em que se inserem.” Esta ideia soa muito bem em teoria, mas temo que estejamos na pior conjuntura possível para a colocar em prática.

Dada a actual fragilidade das empresas e o nível elevadíssimo de desemprego, tenho muito medo que se crie um conjunto de novas responsabilidades às empresas que acabem por matar as mais frágeis. Não me parece nada boa ideia termos uma “modernização” empresarial que atira o desemprego para os 20%. As ideias defendidas por Seguro poderão trazer crescimento económico, mas duma forma ineficiente. Já as de António Costa, contêm o risco de mais recessão e desemprego.

Passando agora ao tema da sustentabilidade das finanças públicas, a proposta de Seguro conduz exactamente ao oposto. Quer “27. Não aumentar a carga fiscal durante a próxima legislatura”; “28. Não efetuar mais cortes nos rendimentos dos trabalhadores e dos pensionistas”; “29. Acabar com a “Contribuição de Sustentabilidade” (p. 20). Basicamente, só isto equivale a fazer subir o défice. Se somarmos todas as outras promessas de subsídios para isto mais aquilo teríamos mais défice e mais dívida.

As promessas de aumento da receita ou são ínfimas (“taxa sobre transações financeiras”, p. 20) ou miríficas (“plano de combate à fraude e à evasão fiscal”, p. 20).

Algumas ideias do Objectivo 4, “Construir um Estado sustentável e de confiança”, são já instrumentais e interessantes, como a reforma da Administração Pública, através de uma “auditoria integral de processos”. No entanto, não parece haver aqui qualquer preocupação com a poupança de recursos, pelo que é de concluir que o programa de Seguro é incompatível com o cumprimento do Tratado Orçamental.

Como as propostas de António Costa são muito mais vagas, não é possível uma avaliação tão taxativa do (não) cumprimento dos nossos compromissos internacionais em termos de finanças públicas. No entanto, dado que só fala em investimento e coesão social, que custam muito dinheiro, e em lado algum fala em cortes na despesa nem em aumentos de impostos, temos que concluir que também não cumpriria o Tratado Orçamental. Imagina-se que espera que o crescimento económico apareça de repente, por milagre, após uma ausência de 15 anos, permitindo pagar tudo e, especialmente, fazendo desaparecer uma das escolhas políticas mais importantes: a das opções orçamentais.


Globalmente, a proposta de Seguro revela (muito) mais trabalho de casa, enquanto a de Costa tem o verbo mais inspirado. No entanto, estamos basicamente perante duas cartas socialistas ao Pai Natal.

[Publicado no Observador]

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Aos combatentes

Dedico este texto a todos os que sofreram e sofrem, directa e indirectamente, com a guerra colonial

Quando se iniciou a guerra colonial, em 1961, é importante referir que ela era consensual, quer à esquerda, quer à direita. É essencial recordar que, ao contrário do que é habitual, no final do século XIX era a esquerda que brandia a bandeira do nacionalismo.

O ultimato britânico de 1890, que proibia a pretendida ligação entre Angola e Moçambique definida no mapa cor-de-rosa, foi pretexto para um violento e pouco fundamentado ataque ao rei D. Carlos por parte dos republicanos, que o acusaram de estar do lado da Inglaterra.

Após a instauração da República, em 1910, houve um esforço de desenvolvimento das colónias. Um dos meus bisavôs participou nessa campanha, como “africanista” em Angola, tendo posteriormente, já sob o Estado Novo chegado a ser chefe de gabinete do ministro das Colónias.

Também foi por causa das colónias que Portugal participou na I Guerra Mundial.

O principal problema da guerra colonial foi permanecer sem solução à vista, ao contrário de outras guerras coloniais, como a da Argélia, em que de Gaulle percebeu a futilidade da operação. Sem uma solução para este problema, o Estado Novo foi liquidado pelo 25 de Abril.

Na minha família, apenas um tio meu, Paulo Raposo, participou nesta guerra, no teatro mais difícil, na Guiné, no final dos anos 60. Foi uma experiência traumatizante, de que a sua família mais directa também sofreu as consequências.

Há aqui alguns anos este meu tio ofereceu-me o melhor presente de Natal de que tenho memória: a fotocópia de um aerograma que eu lhe enviei, quando tinha sete anos. Emocionei-me tanto, que só a conseguir ver em casa. É uma carta obviamente muito ingénua, em que eu dizia, entre outras coisas, que o meu irmão (afilhado deste tio) é que se lembrava sempre de rezarmos por ele. Para além do texto também desenhei uma guerra, em que misturava castelos medievais (com ameias) com índios, tal era a minha confusão.

Dando um novo salto no tempo, em meados de Agosto deste ano, passeava perto da Torre de Belém e aproximei-me do Monumento aos Combatentes. Quando me acerquei de uma placa que dizia “Silêncio, respeito e recolhimento”, comovi-me profundamente e comecei a chorar. É como se tivesse entrado em contacto com o sofrimento associado à guerra colonial. O sofrimento dos combatentes, das suas famílias de origem e posteriores; dos mortos, de todas as nacionalidades, civis e militares, homens, mulheres e crianças; do sofrimento silenciado, em todos os territórios, em Portugal e nas ex-colónias.

Espontaneamente, abri os braços e comecei a rezar as mais simples orações. Fechei os olhos, virei-me ligeiramente para a direita e invoquei a presença, a ajuda e a protecção de Jesus Cristo, rezando em seguida um Pai Nosso. Fiz idêntico pedido a Nossa Senhora de Fátima e rezei uma Avé-Maria, sempre comovido.

Durante estas orações surgiu-me a imagem de um tubo no alto, para onde convergiam imensas luzes finas e compridas, que entravam nele.

Um soldado que vai para a guerra sabe que pode ser morto, mas isso não é a mesma coisa do que estar preparado para morrer. Acontece que muitas pessoas que morrem de repente não aceitem a sua própria morte e se recusem a partir, ficando por cá, mas sem corpo. Imagino que isso terá acontecido a muitos soldados mortos na guerra colonial.

Tive a percepção que aquilo que subiu para o tubo que vi eram almas que estavam finalmente a aceitar partir. Como tenho sempre dúvidas, perguntei a um dos meus professores espirituais se a minha interpretação estava correcta e ele (que tem muita facilidade em receber informação de “lá de cima”) confirmou-me isso.

De então para cá, tenho visitado com alguma regularidade o monumento aos combatentes e repetido o meu ritual. A carga emocional destes encontros tem abrandado e fiquei com a percepção de que a maioria das almas que se reunia ali já aceitou partir.

Envio muita luz, paz e orações a todos os que sofreram e sofrem, directa e indirectamente, com a guerra colonial.


[Publicado no jornal “i”]

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Anti-praxe

As praxes que se iniciam por estes dias são um terrível retrocesso civilizacional, ao tempo do “quero, posso e mando”

De acordo com o antropólogo Geert Hofstede (Cultures and organizations: software of the mind, 1991), Portugal, tal como a generalidade dos países latinos, apresenta uma elevada distância ao poder. Esta distância é definida duma forma muito interessante, não como a que os chefes impõem, mas aquela que os subordinados aceitam.

Apesar destes valores serem muito distintos entre países (muito mais baixa distância ao poder no países anglo-saxónicos), seria de esperar que os tempos que vivemos fossem propícios a diminuir a distância ao poder na generalidade dos países.

O que se passa hoje com as praxes choca-me profundamente porque entrei na faculdade em 1980, poucos anos depois do 25 de Abril, e as praxes eram mínimas e, quando as havia, eram divertidas e não humilhantes. Já falei com algumas pessoas da minha idade que me confirmaram a ideia de que nós jamais aceitaríamos o que se faz hoje aos caloiros. Como se naqueles anos a ideia de liberdade e de não subjugação à prepotência fosse claríssima.

O que se vê os caloiros hoje aceitarem, é como se recuássemos décadas, para o tempo em que era inevitável aceitar abusos dos chefes. Para quem gosta de teorias da conspiração, pode-se dizer que a actual versão das praxes existe para preparar os estudantes universitários para o trabalho escravo em call-centers, depois de acabarem o curso. Ou, de qualquer forma, para serem os trabalhadores mais formatados, obedientes e não reivindicativos.

O mais escandaloso disto tudo é passar-se nas universidades, que deveriam ser locais de saber, cultura e elevação moral e não escolas de produção de autómatos.

Em vez do desastre actual, parece-me essencial que os directores de faculdades e reitores assumam um veemente discurso anti-praxe, incluindo ameaças de vária natureza sobre os autores de excessos.

Para além disso, para praticar a solidariedade, a cada caloiro deveria ser atribuído um padrinho, num processo gerido pelos alunos mais velhos. Desejo enfatizar que tudo disto deve ser feito sem estar na lei e que não deve ser criada qualquer tipo de lei para impor isto.

Paulo Ferreira da Cunha, no seu livro Filosofia Política. Da Antiguidade ao século XXI (2010, INCM), muito significativamente escolheu como primeiro autor, não um filósofo, mas um dramaturgo grego, Sófocles (496 aC – 406 aC), e a sua peça Antígona. Neste texto, o rei Creonte proibiu, com pena de morte, que se desse sepultura a um dos irmãos de Antígona. Esta, sabendo os riscos que corria, desobedece ao decreto real, nem sequer procurando esconder a sua desobediência. Chamada à presença do rei defende-se assim: “Não me foi intimado por Zeus; nem a Dike, que coabita com os deuses subterrâneos, estabeleceu essa lei entre os homens. Tão-pouco creio que tuas ordens tenham tanta força, sendo tu um simples mortal, de modo a poderem derrogar as leis não escritas e inconcussas dos deuses”.

Podemos interpretar Creonte como simbolizando o abuso de poder e o direito formal, enquanto Antígona representa o verdadeiro sentido de justiça e o dever de uma atitude autónoma, sob os princípios mais elevados.

Estou convicto de que uma das razões que explicam a anormalmente baixa apreciação que os portugueses fazem dos nossos juízes se prende com o facto de, na maioria dos casos, entre Creonte e Antígona, os juízes escolherem Creonte.

A absurda expansão legislativa em que vivemos, a extraordinária proliferação dos mais incompreensíveis regulamentos (não se percebe porque existem nem o que significam), tem gerado um gravíssimo equívoco, o de que a lei está acima da justiça e do bem. Por ouras palavras, vivemos num tempo dominado por Creonte, onde Antígona é desprezada e vilipendiada.

Se queremos viver numa sociedade mais saudável, mais livre, mais autónoma, mais responsável, é imperioso denunciar todos os Creontes e promover e aplaudir todas as Antígonas. É fundamental abolir todas as leis e regulamentos de que os Creontes se alimentam e promover a autonomia e o sentido ético superior de todas as Antígonas.


[Publicado no jornal “i”]

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

BCE vs. Merkel

A sucessiva deterioração das perspectivas para o PIB e preços fizeram – finalmente – Draghi anunciar medidas não convencionais e, para além disso e até mais importante, a defender estímulos orçamentais, para além do gastíssimo pedido de reformas estruturais.

Como é evidente, é a Alemanha que está na posição económica ideal para gerar despesa adicional, quer pela sua situação de contas públicas (saldo estrutural positivo e dívida pública em clara queda), quer pela sua dimensão.

Tal como o presidente do BCE referiu, o presidente Juncker está a planear lançar um pacote de investimento público e privado, no montante de 300 mil milhões de euros, o que representa cerca de 3% do PIB da zona do euro. Parece que a Alemanha e a França estão a pensar que este estímulo seja suficiente para responder aos pedidos de Draghi, o que não é o caso, já que o líder do BCE já tinha implícita esta medida.

Uma investigação recente da revista Der Spiegel revelou que Angela Merkel encomendou 600 estudos de opinião secretos, entre 2009 e 2013. Aquela revista alemã comparou decisões chaves com os resultados destes estudos, entretanto tornados públicos por pressão dos Verdes, e concluiu que, não sendo escrava da opinião revelada, usa esta informação para nunca se afastar muito da posição dominante do eleitorado. Ou seja, muita da teimosia e dureza de Merkel não será verdadeiramente dela, mas do próprio eleitorado alemão.

Dito isto, é evidente que Merkel poderia esforçar-se por mudar a opinião dos alemães, como Kohl, o seu mentor, se empenhou em vender a ideia do euro perante um eleitorado que detestava tal coisa. A actual chanceler alemã também poderia tentar convencer os alemães de que, para afastar o risco de uma muito perigosa deflação, faria sentido um programa de investimento público de elevada qualidade. Ou uma generosa subida dos salários alemães. Para já, isto não parece provável.

Veremos como os outros líderes europeus aproveitarão a pressão do BCE para algum estímulo orçamental e como Merkel resistirá a isso. Hollande poderia ser o campeão do outro lado, mas tem tido uma liderança muito fraca.

A chanceler alemã poderá escolher arrastar os pés, até porque a actuação do BCE tem tido um impacto significativo de depreciação do euro, que pode ajudar quer o crescimento económico, quer ajudar a afastar o risco de deflação. A própria melhoria esperada dos EUA, levando à valorização do dólar, pode acentuar esta mesma depreciação, ajudando de forma apreciável a economia da zona do euro.


[Publicado no Jornal de Negócios]

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Falta sociedade civil

Falta sociedade civil, quer para ajudar governos a fazer reformas difíceis, quer para impedir erros crassos

Quando fui adjunto da ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite, entre 2002 e 2004, a coisa que mais me chocou foi o isolamento do governo. Mesmo quando o executivo tentava implantar uma reforma a todos os títulos louvável, recomendada por diversas e prestigiadas instituições internacionais, “todos” estavam contra.

Os partidos da oposição estão sempre contra, infelizmente, mesmo que depois venham a fazer exactamente o mesmo quando chegarem ao poder. Este é um drama nacional, que a actual conjuntura de medidas difíceis só tem agravado. Por isso é que toda a gente diz que o próximo líder do PS (que já não é tão óbvio que seja António Costa), se ganhar as próximas eleições (não se consegue perceber se ganhou a das federações, porque o PS não revela os resultados), será um novo Hollande.

As corporações atingidas por qualquer tipo de reforma vociferam na praça pública, com a insuportável hipocrisia de dizerem que estão a defender o “interesse público”, perante uma comunicação social que emprenha de ouvido e que nunca contesta os óbvios interesses corporativos em causa.

O Zé Povinho, perante este espectáculo público, em que “todos” estão contra o governo, demasiadas vezes será tentado a concluir que o governo não tem razão. Se, em vez deste isolamento do governo, houvesse prestigiadas instituições da sociedade civil a defender medidas na linha do executivo, seria menos difícil fazer reformas no país. Isto também ajuda a explicar porque é que tantas reformas são tão adiadas ou não são sequer feitas. Demasiados governos, sabendo o que os esperaria se mexessem em certos sectores, deixam as coisas andar até se atingir o insuportável.

Este défice de sociedade civil não só torna mais escassas as boas medidas como torna mais abundantes as más medidas. As últimas décadas foram recheadas de asneiras, muito aplaudidas pelos seus beneficiários, sem oposição, à excepção de umas vozes isoladas.

Em Dezembro de 2009, ainda a crise do euro estava no adro, escrevi um artigo no Jornal de Negócios intitulado “Sistema bancário em risco”, (republicado no meu livro O Fim do euro em Portugal?, Editora Actual, grupo Almedina) onde avisava que devíamos olhar para a Grécia como um indicador avançado de Portugal, ou seja, que o que acontecesse àquele país dentro de algum tempo aconteceria ao nosso. Não me enganei muito nesta previsão e o “jogo” ainda não acabou.

Para meu enorme escândalo, referia aí que havia “banqueirosque aplaudem os projectos faraónicos de endividamento público (na expectativade ganhar umas comissões de financiamento), esquecendo que este endividamento (…)[irá colocar] os bancos em sério risco.” Hoje posso escrever com mais clareza: era Ricardo Salgado a defender o TGV, uma loucura, uma irresponsabilidade, a antecâmara do que veio a acontecer ao BES.

Julgo que o leitor não tem dúvidas que Portugal beneficiaria claramente de ter uma sociedade civil mais interveniente, quer para ajudar a concretizar reformas difíceis, quer para evitar erros trágicos.

A questão que se segue é quem poderia protagonizar esta sociedade civil. Em primeiríssimo lugar colocaria as universidades que, muito lamentavelmente, como instituições, parece que se demitiram de pensar o país.

Em segundo lugar, colocaria as fundações, cujo número e importância tem crescido, e que poderiam ter aqui um papel mais activo. A Gulbenkian, a mais prestigiada, poderia certamente fazer mais do que faz. Outras poderiam ter abordagens mais sectoriais, com grande relevância.

Há ainda outras instituições, com pouco dinheiro e visibilidade limitada. Aqui há mais problemas porque a falta de dinheiro pode colocar em causa a independência face ao governo e a visibilidade limitada diminui o impacto que a tomada de posições destas instituições possa ter.

Haverá possivelmente outras soluções para um problema evidente: precisamos de uma sociedade civil mais forte para termos um governo melhor.

Falta pouco mais de um ano para as próximas eleições legislativas, teme-se um gigantesco desfile de eleitoralismo, um período em que mais vamos sentir a falta de força da sociedade civil.


[Publicado no jornal “i”]

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Rectificativo errado

Este novo orçamento rectificativo afasta-se da redução da despesa, quer estrutural quer conjuntural

O segundo orçamento rectificativo deste ano apresenta duas características essenciais: 1) é muito menos ambicioso na consolidação orçamental; 2) faz a consolidação do lado errado.

No orçamento original para 2014, a consolidação orçamental deveria apoiar-se sobretudo na despesa, emendando os erros dos anos anteriores. Neste novo orçamento rectificativo acontece exactamente o oposto.

Em primeira aproximação, poder-se-ia dizer que este novo orçamento rectificativo está muito mais próximo do orçamento desejado pela oposição e pelo Tribunal Constitucional (TC). Tem menos austeridade (do lado da despesa) e mais crescimento, quer do PIB, quer do emprego. Mas é duvidoso que estes sucessos decorram da menor austeridade.

Na verdade, há um claro fracasso na capacidade de diminuir a despesa para além dos chamados “cortes cegos”. É o grande fracasso de Paulo Portas, o da “reforma do Estado”.

O vice-primeiro-ministro tem toda a razão em opor-se a aumentos de impostos em substituição de menores reduções da despesa, só não tem autoridade moral absolutamente nenhuma para o afirmar. Foi ele que ficou com a responsabilidade de propor medidas de redução estrutural da despesa pública, que adiou sucessivamente, até apresentar um documento fraquíssimo, quase risível, de “reforma do Estado”.

Os adiamentos sucessivos não decorreram de nenhuma preocupação em produzir um documento de qualidade, nem para realizar estudos que definissem propostas concretas, de aplicação imediata. Foram motivados – exclusivamente – pela sua inesgotável demagogia, pelo medo de apresentar propostas impopulares, tentando fugir às suas responsabilidades durante o máximo tempo possível.

Sem qualquer tipo de plano alternativo, sem a menor preocupação com o interesse nacional, Portas foi-se opondo e sabotando Vítor Gaspar, até provocar a demissão deste.

Ainda antes disso, Passos Coelho lançou um repto – muito pertinente – a Portas: “se não concorda com a política que está a ser seguida, proponha uma alternativa”. A resposta do líder do CDS dificilmente poderia ter sido mais cobarde e demagógica.

Como a saída do ministro das Finanças não alterou o curso de consolidação orçamental, teve a reacção histérica de apresentar a sua demissão “irrevogável”, em Julho de 2013, que o primeiro-ministro, revelando um insuspeitado sentido de Estado, recusou.

Temos agora um executivo que abdica de mais consolidação das contas públicas no corrente ano, pelo que pouco deverá fazer no próximo, que é de eleições, e cujo fecho de contas poderá bem já não ser da responsabilidade de Passos Coelho.

Tudo indica, assim, que o orçamento para 2016, o primeiro desafio do novo governo, herde uma pesada herança de consolidação insuficiente. É irónico que o facto do actual governo tenha sido obrigado, quer pelo TC, quer pela sua própria incapacidade, a ter uma política orçamental mais próxima da da oposição, isso venha a dificultar o esforço desta quando aceder ao poder.

Em resumo, este rectificativo é uma má notícia para António Costa, se for ele o vencedor das eleições legislativas de 2015, porque fica com uma tarefa muito mais espinhosa.

Há quem imagine que o silêncio do candidato socialista sobre finanças públicas indica que está a guardar os trunfos que tem na manga. Julgo que se tratará antes de uma combinação de duas coisas: não ter consciência da gravidade da situação e não ter uma verdadeira alternativa, não querendo reconhecer publicamente toda a austeridade que irá ser forçado a manter.

António Costa tem todas as condições – e mais algumas – para se revelar um desastre muito maior do que Hollande. Quem é que ainda não percebeu isto?


[Publicado no jornal “i”]