quarta-feira, 9 de julho de 2014

Ponte da Misarela: Ponte do Diabo!...


A primeira vez que fui à Ponte da Misarela, 
no já longínquo ano escolar de 1985/86, lecionava eu em Montalegre. Desde então, não deixei de lá ir amiúde, fazendo de cicerone a familiares e amigos, cativado que fiquei pela beleza do lugar e, sobretudo, pelo misticismo das lendas que lhe estão associadas.

Sábado passado, dia 05 de julho, tive a oportunidade de assistir à representação da Lenda da Misarela, in loco, já noite fechada. Um extraordinário espetáculo!...

Os montalegrenses (e os barrosões, em geral), inspirados pelo "mítico e místico" Padre Fontes, sabem, como nenhuma outra gente, valorizar a sua cultura, viver os seus ritos e tradições e potenciá-los como produto turístico de excelência.



A(s) Lenda(s)

No riquíssimo lendário popular sobre a Ponte da Misarela, podemos encontrar diversas variantes, mas há sobretudo duas versões que perduram no tempo.

UMA VERSÃO (a mais divulgada) conta assim:

“Sabe-se lá quando, um desgraçado criminoso, tentando escapar ao longo braço da justiça, acabou por se ver encurralado, em desespero, nos penhascos sobranceiros ao rio Rabagão. É natural e comum que, em tão adversas circunstâncias, se apele à intervenção divina, mas, talvez porque fosse excessivo o peso dos pecados na consciência, o foragido optou por convocar o diabo, que está sempre atento a estes lances para deles sacar proveito. Assim, foi instantânea a aparição do mafarrico, que não esteve com meias medidas na chantagem do costume: “Salvo-te, pois claro, se me deres a alma em troca”. E que importância tem a alma, quando é o corpo que está em apuros?!
Aceitou o celerado a oferta e, logo ali, com o poder que se lhe reconhece, o diabo, enquanto esfregava um olho, fez aparecer uma ponte ligando as margens do rio. Sem olhar para trás, o perseguido atravessou para a outra margem, após o que, sujeito de palavra, o demónio fez desaparecer a ponte, assim travando a perseguição das autoridades.
Retomou o maligno às suas infernais instalações com a alma do desgraçado, mas o assunto não se ficava por ali. Salvo o corpo, mas perdida a alma, viria o criminoso a arrepender-se da permuta, pelo que decidiu procurar um frade - conhecido na região por viver em estado de santidade - e contar-lhe o sucedido. “Pecado, meu filho, terrível pecado!”, conjecturou o santo homem, passando, de pronto, ao conselho prático: “Vais outra vez ao lugar junto ao rio e voltas a chamar o Diabo, tornando a pedir-lhe ajuda para a travessia. E deixa o resto comigo”.
Assim foi feito. O desalmado chama, o cornudo aparece e, com assinalável espírito de colaboração e não menos louvável desinteresse – a alma do outro já lá cantava -, satisfaz o pedido: a ponte salvadora reaparece. O homem começa a atravessá-la, mas, quando ia a meio, aparece na outra extremidade o frade magano, que rapa da água benta e asperge com largos gestos. Fica benzida a ponte, que permanece no sítio, esfuma-se o mafarrico e o penitente recupera a alma perdida.
Consumava-se a vitória do Bem sobre o Mal.

Ora, radicado nas populações circunvizinhas o carácter sagrado da Ponte da Misarela, facilmente se lhe passou a atribuir dons sobrenaturais.
Quando os filhos não vingam quer por desmancho, quer por morte após o nascimento, a ponte é palco de uma cerimónia cheia de misticismo.
Após os primeiros sintomas de gravidez, ou já no último período dela, a mulher, acompanhada do marido e de outros familiares, dispõe-se a pernoitar nesta ponte, para fazerem o baptismo da criança no ventre da mão. Chegavam ao anoitecer e, desde o pôr-do-sol até à meia-noite, nenhum ser vivo será autorizado a atravessar a ponte.
A primeira pessoa que, nascido o dia, passar a ponte será convidada a apadrinhar a futura criança.
Ninguém recusa tal convite, considerado como dever moral.
A cerimónia é simples e breve, embora se realize num ambiente de sentida religiosidade: de uma corda comprida, suspende-se um púcaro, preferencialmente de barro, que, baixado à profundidade do abismo, recolhe água corrente do rio (do lado jusante da ponte), suficiente para o baptismo pagão.
A futura mãe recebe, então, no ventre descoberto para o efeito, a água milagrosa da mão do padrinho ou madrinha. Enquanto deitam água no ventre, diz-se: 

“Eu te baptizo, criatura de Deus a da Virgem Maria, 
se fores rapaz, serás Gervaz (Gervásio); 
se fores rapariga, serás Senhorinha”. 

De seguida, será rezado por todos, em conjunto ou em silêncio, o Pai Nosso e Avé Maria.
Se os nomes não forem respeitados no baptizado, a criança morrerá.

OUTRA VERSÃO:

Conta-se que há muitos anos, entre duas aldeias, Frades e Vila Nova, os moradores sentiram necessidade de construir uma ponte, que serviria de passagem não só para eles mas também para os seus animais. Após terminar, regressaram satisfeitos às suas casas. No dia seguinte, qual não foi o espanto, quando viram a ponte derrubada. Mas isto não foi motivo para desistirem e logo a reconstruíram novamente. Desta vez, enquanto a construíam, a ponte começou a estalar, a estalar, até que acabou por cair. Então as pessoas disseram umas para as outras: – Isto só pode ser artimanha do diabo! E de repente ouviram uma voz alta dizer: − Nunca conseguireis segurá-la em pé. Aflitos, correram a contar ao padre da freguesia o que ali se tinha passado. O padre, surpreendido e num tom animador, disse: – Homens, voltai a reconstruí-la, porque desta vez não vai cair.
Pela terceira vez, a ponte iria ser reconstruída, mas desta vez o padre acompanhou-os, levando um pão benzido debaixo do capote. Quando foi colocada a última pedra, a ponte começou a torcer-se, dando sinais de que iria cair. Então o padre lançou o pão a rebolar pela ponte e disse:
– Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
O diabo, ao ouvir as palavras de Deus, fugiu e a ponte ficou sempre torta como se tivesse o ombro do diabo marcado quando estava a empurrá-la.
Não só aconteceu o milagre do pão como também desde esse dia outro milagre aconteceu: que é o de salvar os filhos das mães que tanto os desejavam e que nunca conseguiram dar-lhes vida, pois estes nasciam mortos após os seis ou sete meses de gravidez.
Uma mulher que já tivesse passado pela situação descrita e estivesse novamente grávida, deveria ir até à ponte da Misarela levando consigo dois acompanhantes e deveriam à meia-noite em ponto estar em cima do arco da ponte. Os acompanhantes teriam de se colocar um em cada entrada da ponte para impedirem que nenhum animal passasse, ainda que fosse um rato, pois se assim fosse o milagre não se realizava.
A mulher grávida e os acompanhantes teriam de esperar em cima da ponte até que alguém passasse para baptizar a criança ainda dentro da barriga da mãe. Para o baptizado, levavam um jarro e uma corda comprida e, quando aparecesse a primeira pessoa, pediam-lhe para ser o padrinho ou madrinha da criança.
Então o padrinho ou a madrinha teriam de cortar ao lado da ponte um ramo de oliveira. De seguida, lançavam o jarro preso na corda abaixo da ponte e, com a água que conseguissem colher, molhavam o ramo e faziam uma cruz na barriga da mãe dizendo:

Eu te baptizo em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo
Se fores rapaz, teu nome será Gervás; 
e se fores rapariga, serás Senhorinha
Pelo poder de Deus e da Virgem Maria, 
um Pai-Nosso e uma Avé-Maria

Após o baptizado, regressavam a casa e dali a meses o bebé nascia com saúde. E não só nascia o primeiro filho como também outros que o casal desejasse, sem necessidade de um tratamento hospitalar."

(Textos da(s) lenda(s) – site da CM Montalegre)

Clique na imagem e veja um vídeo (adaptado) da "tvbarroso" que mostra cenas da recriação da lenda na Misarela e da queimada feita no ringue de jogos pelo grande Bruxo Queiman, um habitué das noites de sexta-feira 13:

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Recordando Sophia de Mello Breyner Andresen, no dia da sua trasladação para o Panteão Nacional


Não é fácil escolher um poema de Sophia para colocar aqui, tantos e tão significativos eles são!... 
                                   Porque os outros se mascaram, mas tu não.
                                   Porque os outros usam a virtude
                                   Para comprar o que não tem perdão.
                                   Porque os outros têm medo, mas tu não.
                                   Porque os outros são os túmulos caiados
                                   Onde germina calada a podridão.
                                   Porque os outros se calam, mas tu não.

                                   Porque os outros se compram e se vendem
                                   E os seus gestos dão sempre dividendo.
                                   Porque os outros são hábeis, mas tu não.

                                   Porque os outros vão à sombra dos abrigos
                                   E tu vais de mãos dadas com os perigos.
                                   Porque os outros calculam, mas tu não.