Verão
Fujo daquilo que não é belo, procuro-te, procuro os teus defeitos, porque a perfeição não é bela, é perfeita, e os defeitos são belos, porque são teus. Assim vou passando os dias, procurando-te mesmo depois de te encontrar, a vida passa sempre, segue o seu rumo, não me importo mais com tal, já não digo amo ou adoro-te a toda a hora, digo a verdade agora, que é amo-te, senão uma palavra apenas, que é um beijo, senão contacto físico, que é perder-te, senão tudo o que tenho.
A passagem do tempo rouba-nos primeiro o corpo do que a alma, por isso os velhos ainda conseguem amar, quem tem alma e um corpo bonito, tem quase tudo, quem apenas tem alma, tem verdade. Para te amar chega-me a alma, mas comecei por desejar o teu corpo bonito, percebi à muito que a vida nos oferece beleza e magia suficientes para tornar supérflua a beleza física, mas, quando às vezes fecho os olhos, sem ser para dormir,e sem qualquer pressa de os tornar a abrir,o nosso passado mais distante alegra-me. Recordo-me da primeira vez que te vi, do enquadramento perfeito de tudo, os teus olhos cruzaram os meus, estava frio e chuva e parecias meio desenquadrada, seguravas um pequeno livro na mão, descobrimos 3 ou 4 dias depois que só duas palavras do prefácio a chuva não tinha dissolvido, os nossos olhares quase se capturaram, ainda hoje não sei qual deles fugiu primeiro, coraste à chuva (talvez eu tenha corado também), começaste a andar mais depressa para apanhar um autocarro que passava por ti, tropeçaste no chão molhado, ajudei-te a levantar, a tua pele suave mas decidida e o teu corpo esculpido em infinitas unidades universais de belo eram absolutamente desarmantes, a chuva parecia deslizar pelo teu cabelo liso, usando-o como um eterno escorrega, quis declarar-me a cada um dos teus fios de cabelo naquela noite, a tua beleza pareceu-me avassaladora quando te dei a mão para te ajudar a levantar, olhaste-me com algo a que só posso chamar magia, e senti a tua respiração junto da minha, talvez tenha tremido um pouco, tinhas a mão esfarrapada e algumas gotas de sangue ainda vivo escorreram da tua mão para a minha, sorriste, e perdeste o autocarro. Sonhei contigo tantas vezes antes de te beijar, e muito mais vezes ainda depois de te amar, nunca sonhei no entanto algo tão belo e avassalador como tudo naquela noite, por isso foi perfeita, pelo menos mais perfeita do que eu alguma vez consegui imaginar.
A beleza é o tudo o que é importa mundo, é aquilo porque vale a pena lutar, é o que falta descobrir, e o que já esquecemos também. Belas são as ondas do mar antes de se desfazerem em espuma, bela é a espuma que fazem, belo é o absoluto azul do mar, belas são as cores vivas dos corais, belas são as covinhas que fazes nas bochechas quando quase sorris, belo é quando sorris, bela é a vida, contigo. Lembro-me do nosso primeiro beijo, e da nossa primeira discussão, da primeira vez que fizemos amor, e do primeiro momento em que mesmo sem te dizer ainda, soube que era contigo que queria continuar a acordar de manhã, lembro-me de quando apanhaste uma pneumonia e passámos duas semanas, horas e mais horas debaixo dos lençóis, os dois, com os aquecedores ligados e a televisão desligada, lembro-me da primeira viagem de carro que fizemos juntos, da minha falta de jeito para mudar um pneu que se furou no segundo dia da viagem e dos teus gritos estridentes e de como me abraçaste roubando-me até espaço para o ar passar quando saímos daquela avioneta que parecia ainda ter combatido nas duas Grandes Guerras e que mesmo assim fazia piruetas inverosímeis, lembro-me de te ver chorar, de te abraçar, de te fazer cócegas, de te ver rir sem motivo, e a penteares o cabelo à noite, de te virar as costas, de ser injusto contigo por vezes, e de no quase silêncio da noite, sem roupas, e sem luz, escutar a tua respiração, calma, bela e cheia de algo a que por não ter nome chamo hoje de amor, e partilhar assim a vida e o sono contigo. Tudo isto é vida passada, memórias apenas, e que é o amor que construímos, se não um gigante pedaço de tempo, recordações, vida e saudade, emoldurado e guardado dentro de nós os dois.
Assim, enquanto tiver memória, irei recordar deste último dia a forma como enganaste a dor e sorriste por mim, e quando a memória também me deixar, e te perder, apenas sei que irei amar-te de novo um dia, não sei quando ainda, mas se o tempo é mesmo infinito, para sempre é demasiado tempo para ficar longe de ti.
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
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