domingo, 22 de novembro de 2009

A rapariga de gelo

Esta é provavelmente a história mais estranha que alguma vez aconteceu, ela era mesmo de gelo.
Bem, a história podia começar com um melancólico “há muito, muito tempo, quando ainda se escreviam cartas de amor”, ou com um expectante “ naquela manhã de Novembro, fria, muito fria, mas nunca suficientemente fria”, mas, e porque foi o que aconteceu, garanto-lhe caro leitor que foi assim que aconteceu, começa com a rapariga de gelo a caminhar pelas ruas da cidade de top, shorts e havaianas, numa normal tarde de Verão. E ela era mesmo de gelo, não se trata de qualquer tipo de hipérbole ou metáfora forçada, até as pernas dela, bem torneadas e realçadas pelos calções justinhos, bem eram lindas, mas eram de gelo, de um gelo profundamente límpido com um suave tom azulado, e o resto do seu corpo assim o era também, de gelo, e ousava andar ao Sol sem derreter, estranhamente os seus olhos eram verdes, de um verde absoluto e profundo, mas mesmo assim, frios, o belo também pode ser frio.
Ela tentava ser simpática para as outras pessoas, tentava sorrir ao senhor da mercearia, mas a simpatia deste ia-se quando as mãos deles se tocavam no momento dos trocos, causavam-lhe repulsa as mãos belas mas geladas dela, em contacto com as mãos macilentas, enrugadas, mas humanas dele. E sempre que tentando ser delicada e tocava ou beijava as faces de alguém, fazia com que se afastassem atrapalhadamente por causa daquele gelo que não compreendiam, um dia quando ainda era bem mais nova, nova apanhou-se sozinha com o vizinho engraçado do 3º esquerdo, e sussurrando-lhe ao ouvido disse, “gosto de ti”, e ele, que até se sentia atraído pelo belo corpo que ela já tinha, fugiu de medo e vergonha por causa daquela respiração gelada dela junto ao ouvido e pescoço dele, por causa de ela ser de gelo.
Bem, mas voltando à estranha história, ela caminhava em trajes curtos pela rua naquela tarde de Verão, recebendo olhares de soslaio de homens que com ela se iam cruzando na rua, e reparavam naquele corpo bem torneado e apetecível, embora de gelo, mas quando passavam realmente perto dela, quando um olhar se cruzava, tinham medo, mostravam esse medo, e desapareciam apreçados, enfim, que se pode mais esperar de um triste espécime que em tempos, orquestrou guerras sangrentas por causa de um belo par de pernas, mas depois não consegue abrir o coração a uma mulher (a rapariga de gelo tinha mesmo estes pensamentos sobre os palhaços que içavam a bandeira olhando de soslaio, e depois se afastavam amedrontados, não se tratando assim de qualquer subjectividade do autor no que ao complexo universo masculino diz respeito).
Assim eram todas as relações e afectos da rapariga de gelo, duravam um olhar atrevido ou um sussurrar gelado, também assim o fora com os seus pais, sim, todo o ser, por mais estranho, belo, diferente ou desdenhado que seja, resulta de dois prévios genomas, e o caso dela, belo ser humano feito de gelo, não fora, em momento algum, diferente. A sua mãe viveu até ela nascer, morreu de complicações no parto, fora essa a verdade que lhe contaram mais tarde, o pai fugiu ao vê-la, perfeita e bela ao nascer, mas já ai de gelo, e nunca mais fora visto pela cidade, talvez tenha ido para outra cidade, outro país, outro mundo onde não nascessem crianças de gelo e onde pudesse ter um filho com carne igual à sua, talvez seja agora um homem bem sucedido, e feliz por ter filhos que apresenta aos amigos, que talvez até já tenham namoradas e namorados de verdade, bem mas todas estas vidas imaginárias de seu pai, são os pensamentos que em tantos anos no orfanato lhe surgiram e ficaram.
No orfanato pouco lhe falavam também, as outras crianças tinham medo, as professoras e funcionárias tinham receio, passava tempos e tempos sozinha, era dispensada da maior parte das tarefas e de todas as brincadeiras, as amizades, namoricos e grandes paixões, vivia-as pelos livros e filmes antigos que preenchiam a velha biblioteca, sítio onde passara grande parte daqueles anos, apaixonou-se pelo James Dean e pelo Marlon Brando, chorou no final do Casablanca, quando ele por a amar tanto desistiu dela, e teria dado um par de estalos à Scarlett se pudesse, por ela quase sempre ter querido apenas o que nunca poderia ter no “E tudo o Vento Levou”.
Entre pensamentos confusos lá chegou ao agora seu lugar de trabalho, era telefonista numa multinacional qualquer, ligava para uma lista infinita de números para tentar impingir uma quantidade infinita de produtos de que quase ninguém precisava (sim é certo que nos apetece dar um tiro a essa gente chata que nos liga enquanto jantamos para nos tentar vender um colchão de água equipado com 3 tipos diferentes de massagem e revestido de um tecido com um suave aroma a alfazema ) mas foi o único emprego que arranjou onde ninguém tinha, nem por um instante apenas, que tocar nas suas mãos geladas ou sentir o gelo que emanava da sua respiração. Trabalhava numa sala ampla, sentada numa das muitas secretárias, em que se passava o dia a tentar impingir aquela lista infindável de coisas da empresa. Tinha a sua secretária empilhada de papéis, que quase lhe tapavam o obsoleto telefone com o qual passava o dia embrenhada, e recomeçara agora a marcar os números da imensa lista que tinha interrompido para ir almoçar, e pela qual ganhava à comissão.
Bem, e as conversas eram normalmente de um de dois tipos, ou:
-Boa tarde, estou a falar com a Sra. Olívia Cruz?

-É a própria, a que se deve o seu telefonema?

- Pois bem, estou a ligar-lhe para lhe falar da campanha de Verão da METROPOLIS, temos ofertas fantásticas a pensar em si.

-Nessa não me apanham mais, 4h fechada numa sala com o meu Armando a tentarem
impingir-nos um colchão de água por já sei lá eu quanto, devia ter lá marisco dentro ou o raio que o foda…Piiiiiiiii

Ou então…
-Boa Tarde, estou a falar com a Sra. Celestina Lopes?

- É a própria, de que se trata?

-Pois bem, estou a ligar-lhe para lhe falar da campanha de Verão da METROPOLIS, temos ofertas fantásticas a pensar em si.

-Hum…Mas eu de momento não estou interessada em comprar nada sabe..

-Mas ai é que está, nós temos mesmo ofertas para si, não tem que comprar nada

-Bem não me diga que agora a METROPOLIS anda a oferecer colchões e máquinas de lavar…

-Bem isso não, mas sabe, oferecemos uma batedeira eléctrica a todos os que vierem à nossa demonstração de colchões de água e ortopédicos no próximo sábado à tarde…

-E não se paga entrada? A batedeira pelo menos funciona?

-Sim a entrada para a demonstração com os nossos profissionais é inteiramente gratuita e a batedeira tem 2 anos de garantia.

-Então e a tal demonstração é onde e a que horas afinal?

-Enviaremos uma mensagem escrita para o seu telemóvel com a hora e o local marcados, e permita-me agradecer desde já a sua presença no domingo Sra. Celestina, até breve e disponha sempre.

-Até uma próxima menina

Mas naquela tarde, por entre umas comissões ganhas e insultos fugazes, algo de diferente aconteceu,

-Boa tarde, estou a falar com a Senhora Lurdes Pinho?

-Não, está a falar com Diogo Saraiva, mas porquê…?

-Estava a ligar por causa da nova campanha da METROPOILIS, mas devo ter-me enganado a marcar o número, peço desculpa Diogo, e o resto de uma boa tarde.

-Espere…

- Diga,

-Não que eu acredite no destino, e menos ainda dou valor a trocas de um número ao acaso, mas acredito em vozes bonitas…

-Que quer dizer com isso..?

- Desculpe, sei que não o devia ter dito assim, mas há algo na sua voz que me impediu de desligar a chamada, é bom falar consigo, só para a escutar de volta,
- Bem, agradeço-lhe as palavras, deve ser por eu ser de gelo, mas se não se importa tenho que continuar o meu trabalho…

- De gelo? Bem de gelo somos todos quase sempre, e é o gelo nos permite viver num mundo assim…Eu tenho duas operações para fazer agora à tarde, mas não me apetece desligar, apetece-te?

(Algo aconteceu à rapariga de gelo neste momento, não pode ter sido atracção física, porque apenas o escutava pelo telefone, e muito menos amor, não me lixem, o amor não surge assim, poderia até ser apenas compreensão, a forma como ele a encarou por ser de gelo, mas, e isso ela sabia-o bem, para ele, o gelo dela era metáfora. Por isso chamo-lhe algo apenas, dir-me-ão que é impreciso, aceito a imprecisão, mas terão de me dizer, o que há afinal de preciso no coração de uma mulher)

-Não, não me apetece, liguei para impingir colchões e aspiradores, e vou passar o resto da tarde a fazê-lo, mas agora apetece-me falar e não desligar, mesmo os momentos de silêncio sabem bem, o silêncio não é sempre igual.

-Confesso que de facto de colchões e aspiradores não preciso por agora, mas ambos precisamos de jantar logo à noite…

-Essa é a tua forma, nada subtil, de me convidares para jantar?

- Depende, …é essa a tua forma subtil de aceitares o convite?

-Bem, agora ficava-me bem dizer que nem queria aceitar o convite, mas a forma como me prendeste a uma resposta obriga-me a aceitá-lo…

-Mas ao invés de dizeres isso dizes…
-Encontramo-nos às 8?

- No Atlâtico?

(Um silêncio quase confrangedor, ouvem a respiração um do outro do lado de lá do telefone, é estranho, porque o que fica por dizer num silêncio entre duas almas assim, não representa nada ao pé do que eles, em silêncio, desejam. E sinuoso é o caminho do desejo, pelo menos enquanto a carne nos reveste os ossos e o sangue nos percorre as entranhas. Mais algumas respirações trocadas, sentidas, e ele desligou, ou ela desligou, não sei, ela não sabe, que interessa?)

Claro que, e o esplêndido universo feminino que me perdoe, no preciso instante em que a rapariga de gelo poisou o telefone, um enorme burburinho se abateu sobre a sala, as outras telefonistas, algumas ainda novas e bem-feitas, outras já com mais alguns anos, casadas algumas, e normalmente bem entroncadas, comentavam todos os detalhes da conversa dela, normalmente em surdina, mas por vezes deixando escapar algumas frases soltas, “ Achas que ele vai sequer chegar ao pé dela ou foge quando perceber que vai ter um encontro romântico com um boneco de neve?” “ Coitada, coitada dela e dele” “ Sorte tem ela em ter um coração de gelo, vai custar-lhe menos” “ Ela que vá mas é com o corpo bem tapadinho, que pode ser que ele aguente pelo menos o jantar…se ela pagar a conta”, estavam já todas abstraídas da lista infindável de coisas que tinham para impingir por telefone, e a pouca misericórdia meio trocista que ela ia ouvindo no que lhes escapava entre dentes devia-se às certezas, dadas pela vida, que ela apesar de bonita, delicada e bem torneada, iria ser chutada por quem quer que fosse o rapaz do outro lado da linha, porque afinal, ela era de gelo.
Entretanto a noite chegou, e com ela chegaram as 8h, e assim chegou o encontro. Ela tinha saído apressada do trabalho, e seguiu para casa a passo acelerado, para ainda ter tempo de tomar um banho, secar o cabelo (finíssimos filamentos, tão finos que apesar de serem de gelo ondulavam ao vento), aplicar em todo o corpo uma loção hidratante…Sim é verdade que ela era de gelo e provavelmente não teria necessidade alguma de tomar um banho assim antes do encontro, de lavar o cabelo de gelo com aquele champô novo, e especial para cabelos sensíveis, da L´oreal, de aplicar aquela panóplia de cremes hidratantes, de experimentar todos os 8 vestidos que tinha no armário, alguns mais que uma vez, e depois de finalmente ter escolhido um, voltar a trocá-lo porque afinal não combinava com os sapatos. Sim, não tinha necessidade alguma de tudo isto, mas afinal ela era uma mulher, e as mulheres precisam disso, não para se tornarem mais bonitas, mas para acreditarem que o são, além de que, e talvez tal sirva de desculpa para explicar momentos mais “caricatos”, como o de sacar um cabelo que afinal, era de gelo, este era o seu primeiro encontro, e o leitor sabe-o bem, quando assim é o coração bate mais depressa, e isso explica o que alguém com uma normal pulsação de 65 batimentos por segundo não percebe...Colocou um batom vermelho que lhe realçava os lábios, quase como se desse carne ao gelo, e saiu.
Encontraram-se à porta do Atlântico, ela não sabe a que horas ele chegou, porque quando às 8h lá chegou ele já lá estava, e estava, diga-se, bastante bem apresentado, tinha cabelos pretos meio desalinhados, meio inclinados para a esquerda, olhos castanhos tipo avelã, uma camisa aos quadradinhos engraçada e sapatos em vela, e era bonito o rapaz e segurava um ramo de rosas azuis na mão, e ela vestindo o belo vestido vermelho escarlate que acabou por escolher (e que claro combinava com os sapatos), foi até junto a ele com o coração acelerado.
(É claro que quando a viu, primeiro ainda ao longe, a aproximar-se, e depois junto a ele, percebeu que ela era mesmo de gelo, bela, mas de gelo, e certamente que isso se notou na sua expressão facial, mas, recompôs-se rápido da surpresa e olhou bem para ela, primeiro tentou olhar através dos profundos olhos verdes dela, ia-se lembrando da voz dela enquanto a percorria com o olhar, enquanto ela se aproximava, enquanto deixava de reparar, que afinal ela era de gelo.)
Claro que quando ela chegou junto dele, quando se apresentaram e trocaram as primeiras palavras e ele sentiu o respirar ofegante pela expectativa e pelo momento, mas sempre gelado dela, ou quando deram dois beijos depois de se apresentarem e ele sentiu os lábios belos, mas gelados dela, na sua pele morna das faces, bem nesses momentos ele sentiu-se estranho e deslocado ali, mas de certa forma ele sentia algo por ela, gostava de a ter ali ao lado dele, de ouvir a voz dela assim tão perto mesmo que isso o arrepiasse de frio, e de sentir os lábios dela na pele dele, mesmo que ao inicio só sentisse frio, e assim com um sorriso nervoso e de olhar penetrante deu-lhe as flores que trazia, dizendo apenas “trago-as porque me disseram uma vez que as rosas são a única flor que por ser tão bela, célebre e de si apaixonada, nunca invejou, e agora são tuas para te invejarem a ti”, e ela sorrindo, encostou-as ao peito, meio coberto por aquele vestido vermelho escarlate, e agradeceu. E assim, Diogo e a rapariga de gelo, que mantinha as rosas azuis contra o peito, entraram no restaurante.
Sentaram-se numa mesa junto à janela, com vista para o mar, e mesmo sendo de noite notava-se a eterna e efémera silhueta das ondas do mar, passaram o jantar a falar de trivialidades, ele falou-lhe da infância traquina, das grandes festas do secundário e dos memoráveis anos na faculdade de medicina, das viagens que fizera pela Europa, e do seu desejo de correr o mundo, ela, bem ela entre poesia e cinema ia-lhe falando dos sonhos, e das poucas trivialidades da vida que o gelo não lhe roubara, e acabaram, quais promessas vãs que se esbatem quando a noite se vai, com a promessa mútua de que ainda iriam viajar juntos um dia, talvez à paradisíaca Austrália, quem sabe, que interessa?
Pouco antes de saírem do restaurante no entanto, esqueceram por momentos as trivialidades, que por vezes se parecem demais com verdades de circunstância que nos impedem de dizer a verdade, e é certo que é verdade tudo o que sentimos, mesmo o que não dizemos, mas por vezes não podemos pedir de mais aos outros que adivinhem tudo,

- Apetece-me dizer-te a verdade…

- Qual verdade?

-Que apesar de tudo gosto de ti

- O tudo é eu ser de gelo…?

-Não o tudo é que dos 24 anos que já vivi, não me lembro de nada agora, só de ti

-Pois mas eu sou de gelo, e por mais que apeteça mudar isso agora, desde sempre e para sempre ou só por esta noite, não posso, nunca poderei.

-Sim, tu não podes percebo-te, mas eu posso

-Como farias isso?

-Já o fiz, olho para ti e apetece-me tocar-te, beijar-te, mordiscar-te, abraçar-te, basta assim para não seres de gelo?

-Não sei, mas basta assim para te amar

Saíram do restaurante de mãos entrelaçadas, e aos beijos, longos beijos aconchegados, e juras e mais juras de amor sussurradas, que para sempre serão só deles, sim ela ainda era de gelo, e ele continuava a sentir frio, mas sem nunca pensar ou lhe ocorrer sequer largá-la, parar de beijá-la e de desejá-la, assim é um coração cego de amor, sente o que há em redor, mas logo esquece quase tudo.
Entraram depois no carro dele, um Volvo vermelho já com alguns anos, com alguns arranhões na chapa, mas irrepreensível no interior, e enquanto o carro começava a andar e ia tocando na rádio a Walk Away dos Franz, acabaram por se beijar, abraçar, arranhar, mordiscar, de forma diga-se, convenhamos, pouco própria para quem apesar de tudo tentava conduzir, e teria sido um momento delicioso (é sempre delicioso vermos as situações “constrangedoras” que acontecem aos outros), se um “agente da autoridade” tem apanhado a rapariga de gelo a, vamos lá, condicionar o ângulo de visão do condutor…Acabaram no entanto por chegar junto do apartamento dele sem percalços de maior, bem, o facto de ela ter ficado com uma perna entalada entre o manípulo das mudanças e os estofos do carro, é um percalço, mas não de maior.Com alguma agilidade e perseverança, lá saíram ambos do carro e foram abraçados e aos beijos subindo as escadas até ao 3ºesquerdo, os pensamentos e racionalidade estavam congelados pela chama que os consumia, ninguém pensa num momento assim.

O apartamento era bastante simples, tão simples que o tornava belo, no hall de entrada havia apenas uma cómoda de linhas quase rectas, coberta por recordações de viagens passadas, desde as “fotografias da praxe”, passando por postais meio gastos todos escritos na parte de trás, talões manuscritos, bilhetes picotados e outras peças de artesanato local ou pessoal, e até um instrumento musical meio esquisito que lembrava uma flauta de pã gigante e que ele prometera um dia aprender a tocar. Também o quarto dele era de uma beleza simples, mas agora o belo era em tons de vermelho, não tanto por causa da decoração do quarto, em que só os cortinados e tapetes eram meio avermelhados, mas por causa do batom vermelho forte que lhe cobria os lábios e do vestido, de vermelho igual, que lhe tapava parcialmente o peito e descobria as pernas, era simples, e era belo,

-Sabes, não era suposto acontecer assim.

-Assim como?

- Eu de gelo, e tu de carne…

-O desejo não é de carne ou de gelo, é de ti…

-E quem sou eu afinal?

-És a mulher que eu amo desde que me ligaste e disseste por engano “Boa tarde, estou a falar com a Senhora Lurdes Pinho?”, soube pela tua voz que me ia apaixonar por ti…

-Bem, Lurdes Pinho também não te ficava assim tão mal, convenhamos, mas parece-me que não ia amar assim a senhora Lurdes.

Enquanto se beijavam, enquanto quase se mordiam abstraídos do mundo, enquanto tudo isso ele começou por lhe desapertar aquele vestido vermelho escarlate que lhe ia cobrindo o corpo, e depressa estavam os dois completamente nus. Então ele começou a beijar-lhe o pescoço e os ombros perfeitamente definidos e enquanto ela lhe entrelaçava os braços no pescoço arranhando-o até, pressionando-lhe as vértebras e mordiscando-lhe o queixo e os lábios, ele começou a beijar-lhe e acariciar-lhe os peitos, que talvez por serem de gelo estavam perfeitamente arrebitados, depois por um momento olharam-se apenas, trocaram olhares de súplica, de desejo, de medo, de compreensão, de ansiedade, de expectativa e porque não, de amor…Ele não sentia frio abraçado a ela agora, os beijos eram quentes, tamanha é a ilusão do amor, parecia até que ela estava a derreter, deixaram-se ambos cair na cama e assim fizeram amor.
Quando acordou, horas mais tarde, já o Sol nascera, não a viu deitada a seu lado, estava sozinho no quarto, e a seu lado apenas os lençóis encharcados, ocorreu-lhe naquele instante que o gelo pudesse ter derretido, e toda ela era gelo , que tivera que por uma vez amar para depois desaparecer para sempre, para o gelo se tornar em água e ela em nada, há sua volta no quarto apenas as rosas azuis que lhe oferecera e as roupas deles espalhadas pelo chão, e entre os lençóis, meio encharcado também, um pequeno papel que dizia “Existem príncipes, existem princesas também, mas os contos de fadas não existem”, Diogo percebeu que algo não batia certo, mas é sempre tarde demais depois do nascer do Sol, soube que não mais a veria, e diga-se a verdade, algumas lágrimas lhe escorreram pelo rosto, percorrendo a barba desalinha dele até ecoarem no chão, olhou uma ultima vez para o vestido vermelho dela, agora engelhado e parecendo vulgar, e servindo-se do pretexto de pegar no papel com a mensagem esquisita pareceu por instante acariciar o lençol molhado, depois levantou-se, atirou o papel para a cómoda do hall e foi tomar um banho, pensaria em tudo aquilo depois, afinal, ele era de carne e osso.
Anos mais tarde, enquanto passeava pela baixa da cidade, cruzou-se com o que juraria ser ela, agora de carne e osso deambulando descontraída pela rua, o seu coração acelerou, porque se não o amor, a nostalgia e a surpresa também aceleram um coração, e pensou em chamá-la, em dizer qualquer coisa agradável, ocorreu-lhe nesse momento, que afinal nunca soubera o seu nome.

A tua música

Ontem à noite cheguei a casa sozinho no carro, e ao chegar começou a dar uma música da tua banda preferida na rádio, deixei o rádio ligado, saí do carro e fixei o céu, estava singularmente belo ontem à noite, tão belo que me doeu imaginar quão bom seria teres estado ali comigo,

terça-feira, 28 de julho de 2009

As palavras não amam

-Gosto de ti

-Mais do que chocolate..?

-Hum…Sabes que adoro chocolate

- Parvo

- Sim mas…

-Mas…?

-Gosto de ti

- Devias trocar-me por chocolate tu...

-Um dia, quando fores uma velha caquéctica e as rugas se intrometerem, depois então troco-te por chocolate..

- Eu despachava-te já hoje por chocolate mas…

-Mas..?

-Também gosto de ti..

- Tótó

- Assim quando fores um velho resmungão e meio surdo, vamos os dois comer chocolate..

- É bom ter-te aqui, sem distância física, desafiando todas as probabilidades de um universo e tempo inesgotáveis, é como se ∞ + 1 = ∞ - 1, e tu e eu fossemos o 1 de cada lado do infinito…

-Hum..Nunca me tinhas dito que gostavas assim tanto de física e matemática..

-E não gosto..pelo menos não assim tanto…Mas gosto de ti..

-É bom olhar-te assim a meia luz, roubando todo o pertenço valor às palavras..

-Mas nós ainda não parámos de falar..

-Pois não tonto, mas se não falássemos as palavras teriam valor..

-Só damos valor ao que não temos?

-Só damos valor ao que não teremos, e nunca mais teremos uma noite assim..

-Nunca mais?

-Talvez amanha..

sábado, 25 de abril de 2009

Meio cheio, meio vazio

O copo estava meio cheio, havia copos partidos por toda a parte, rastos de vómito pela casa, alguns já dormiam a monte pelo chão com pedaços de vómito colados à roupa, outros cambaleavam e iam bebendo de copos fétidos que iam apanhando enquanto “snifavam” umas linhas, davam murros na mesa e riam alto, Francisco bebeu-o de um trago e saiu, enquanto descia as escadas as suas lembranças iam sendo preenchidas por um vulto, que ia ganhando forma a cada degrau que ultrapassava auxiliado pelo corrimão, ia-se recordando que passara grande parte da noite a olhar para ela, recordava agora o vestido preto que usava, que por ser de cavas lhe fazia notar os braços extremamente magros e sobressair o contorno dos ombros, continuava a deambular pelos degraus que jurava serem tortos e movediços, podia agora olhá-la nos olhos pretos enquanto descia, um principio de sobriedade tentava voltar a preencher-lhe as veias e permitia-lhe arrepiar-se com a beleza dela, com os cabelos pretos que contrastavam com a tez clara das suas costas despidas, com o sorriso que ela lhe fazia, que por não ser sorriso o prendia, e o olhar discreto e delicado dela, que de estranha e insuspeita forma o sufocava.
Ela sobressaia naquele emaranhado desfocado de gente que revirava os olhos, ia-se recordando da garrafa de água na mão dela, do desprezo dela para com tudo aquilo, ia conjecturando o que estaria ela a fazer naquele sitio agora 3 pisos acima dele, sentia-se derrotado por não ter tido coragem de falar com ela (é triste trocar aqueles olhares, bater a porta e sair), e profundamente estúpido por se ter embebedado para ganhar coragem, agora hesitava em voltar até lá cima, voltaria a beber provavelmente, não sabia o que dizer, sabia que calado não podia estar, tinha medo, talvez nem fizesse nada, talvez fizesse má figura, talvez já a tivesse feito, passou pelo último degrau, bateu a porta e saiu.
Seguiu até ao carro, era um velho “chaço” vermelho já um pouco amolgado que ainda andava, e que por isso servia, sintonizou ao acaso “Society” no rádio enquanto se dirigia para casa, ainda tinha a visão turva e os reflexos condicionados e lentos, e pensava nela, não notava a passagem das fracções que fazem o relógio girar, estava abstraído da vida, ia passando pelas luzes e avenidas da cidade, todas uniformes, todas iguais, sentia-se derrotado, insignificante e estúpido e carregava fundo no acelerador para tentar afastar a frustração, pensava, e pensava-o talvez apenas porque tinha sido “derrotado” o que preenchia o coração de uma mulher, desse ser misterioso e com uma incrível capacidade para carregar segredos e angústias, esse ser que quando ama ou secreta forma deseja, mantém segredo até ser “conquistada”, e quando não ama, nem deseja, mas apenas lhe apetece, ou porque a solidão a assusta, ou porque ele deseja e ama a outra, então aí conquista, quando não com palavras e olhares, com o próprio corpo, mas não será tudo a mesma coisa? De súbito é encadeado por uma forte luz branca que se aproxima dele, que já está demasiado perto para ele poder agir, continua a aproximar-se, cegando-o agora, ele mantém-se imóvel, uma estranha lucidez percorre-o agora, apercebe-se que não é ali que era suposto estar, mas é ali que pertence agora, e que por isso o que vai acontecer é inevitável, depois só uma dor lancinante.
Acordou sobressaltado umas horas mais tarde, o carro tinha a frente parcialmente destruída, mas por ter embatido num muro de um condomínio da cidade, aquela luz branca, aquela estranha lucidez, aquelas certezas, dor e fim como um bêbado estúpido e miserável, tudo isso uma amarga visão do que podia ter sido. A sua têmpora esquerda sangrava abundantemente, e o sangue ainda quente escorria-lhe pela face emaranhando-se com a sua barba desalinhada, e pingando de uma forma quase musical sobre os estofos gastos do carro, ele sem hesitações pegou num pequeno farrapo de pano que tinha no porta-luvas e humedecendo-o com a própria saliva, passou-o pela face deixando-a limpa do sangue que começava a secar, passou depois o pedaço de pano pela têmpora, que já tinha cessado de sangrar, e limpou-a também, de forma metódica e determinada, girou por algumas vezes a chave na ignição, até o motor pegar a custo, fez marcha atrás do muro do condomínio, deixando-o apenas com umas marcas de tinta vermelha e um farolim despedaçado, passou uma última vez o pano por um resto de sangue que sobrava no volante, atirou-o para a berma da estrada, e seguiu .
Dirigia-se de novo para a festa, ia pelo percurso exactamente inverso ao que tinha feito umas horas atrás, como se estivesse a recuar no tempo, mudando-o, uma misteriosa determinação corria-lhe no sangue, um resquício de melancolia perseguia-o, mas o que seria da determinação sem alguma hesitação, melancolia, e incerteza, a condição humana é demasiado precária para que poça haver determinação sem haver medo, decidira falar com ela, de alguma forma sabia que ela ainda estaria lá, talvez porque quando estamos debaixo de água só os sonhos nos permitem continuar a respirar, mas ele sabia-o. Chegou à porta do prédio, não sabia bem que horas eram, apenas o silêncio o cercava, e o silêncio pode ser cruel quando a solidão nos assusta, carregou insistentemente na campainha do 3ºesquerdo, o prédio era velho e degradado, havia seringas no chão e algumas pequenas poças de vómito já seco, parcialmente cobertas pelas folhas em decomposição de algumas árvores de ar antigo e imponente que choraram as folhas ficando amargas e frias, e assim viviam para cobrir vómito, vazio e seringas.
Francisco não parava de pressionar a campainha, pressiono-a até ao seu polegar começar a ficar em ferida, por causa da agressividade que impunha naquele botão cansado e áspero, depois, não por duvidar que fosse aquela a campainha correcta, mas porque a ânsia, a espera, o silêncio e a solidão aliadas aquele cheiro a náusea o levavam a próximo do desespero, e essa proximidade faz doer, passou a tocar em todas as campainhas, a jogar-se contra a porta e por fim, a sentar-se e a esperar.
No início da espera, a cega excitação de entrar de novo naquele apartamento, e com ar triunfante, qual príncipe corajoso e encantado, sequestrar o coração de sua bela donzela, proferindo juras de amor, se não com os lábios e com o olhar, hipotecando o corpo, essa excitação impedia-o de reparar nos pormenores, mas a espera foi-se alongando levando-o por momentos a fechar os olhos, mas mal os fechou da escuridão surgiu a tal rapariga bela de cabelos pretos, mas o olhar gelado e mais que gelado vazio e mais que isso um grito agudo vindo aquele fragmento de imagens, fez com que abrisse de imediato os olhos completamente desperto, e até meio assustado, mas aquela poderosa e solitária determinação, faziam-no esquecer o medo. Abstraia-se agora, seguindo com o olhar uma das poucas folhas que ainda restava numa daquelas árvores ásperas e velhas, no seu solitário e inevitável percurso, descia lentamente condicionada por uma brisa, e ia girando no ar, amarrotando-se, acabou por cair em cima de uma daquelas poças de vómito, e junto com tantas outras ia-a cobrindo aos poucos, já não estava sozinha agora.
De súbito um estalido na porta e esta rangeu. Levantou-se de sobressalto, empurrou a porta e entrou, a escuridão do hall do prédio e ainda aquele súbito ranger da porta sem que nenhuma voz ecoasse do lado de lá da campainha, faziam-no tremer. Tacteou a parede até encontrar um interruptor e pressionou-o. A luz era trémula, mas permitiu-lhe reparar num pequeno espelho que se encontrava no lado oposto ao do interruptor, olhou de forma desdenhada e apressada a sua imagem ao espelho, e com um pouco de saliva humedeceu os dedos e apagou uma mancha de sangue seco que lhe persistia no lado esquerdo da testa, depois começou a subir as escadas com uma estranha “mecanização” em cada passo .
Enquanto passava pelos degraus o perturbador silêncio mantinha-se, ouvindo apenas o ecoar de cada um dos seus passos até chegar ao apartamento da festa, estranhamente a porta estava entreaberta, deixando escapar um resquício de luz, do lado de dentro do apartamento não vinha contudo qualquer som, isso intrigava-o mas não o detinha, bateu cauteloso por algumas vezes com os nós da mão na porta de madeira já gasta, não obtendo qualquer resposta, e acabou por entrar hesitante, sabia que algo não estava certo, mas ele precisava saber o que se passava, e mais que isso, precisava de a ver, a princípio uma luz forte cegou-o e um cheiro fétido percorreu-lhe as entranhas, notou que a sala guardava os vidros dos copos partidos, o vómito no chão concorria com um amontoado de garrafas vazias, mas agora o silêncio só era quebrado pelo vinho que vertia das mesas e cadeiras e pingava no chão, e restava apenas um corpo naquela sala, jazia imóvel num canto da sala e tinha a cara ensanguentada, Francisco aproximava-se dele por instinto, mas antes de estar suficientemente próximo para o poder identificar escutou o que lhe pareceu ser um choro abafado vindo de um dos quartos que mantinha a porta fechada.
Esqueceu assim por momentos aquele corpo moribundo e dirigiu-se para a porta de onde lhe parecia vir aquele misterioso choro, chegou até junto à porta e por momentos deteve-se junto desta fixando-se numa frase escrita a letra trémula, dizia “o medo nunca vence, mas sobrevive” desdenhou-a mais por causa da letra trémula e fraca com que estava escrita mas ficou-lhe cravada na memória, voltou a escutar aquele choro melancólico que era como uma súplica em voz baixa, e bateu na porta. Escutou um “entre” de uma voz feminina, a voz era um pouco fraca mas firme e decidida, e suave, tão suave.., rodou a medo a maçaneta da porta e entrou.
Ela chorava abraçada a outra rapariga de longos cabelos louros e com uns olhos azuis que sobressaiam, e ele que devia estar surpreendido por vê-la, mas não estava, estava apenas a seguir um sinuoso caminho que pelo menos uma vez todos seguimos, o quarto era pequeno e mal iluminado, e no chão do quarto além de um enorme emaranhado de roupa e garrafas vazias, estava um pedaço de vidro partido com sangue ainda vivo que escorria lentamente para o chão, nas paredes havia ainda posters do James Dean, de Paris e de Los Angels, mas estavam já todos meio velhos e até rasgados, elas estavam as duas sentadas no chão com as costas apoiadas numa frágil cama de solteiro desfeita, fitaram-no com uma espécie de desespero sem nada dizer, o vestido preto dela tinha agora um rasgo entre o seu ombro esquerdo e o umbigo e a sua pele nessa zona estava rubra e quase ensanguentada, e tinha também algumas gotas de sangue espalhadas pelo vestido cumprimentou-as com um “boa-noite” trémulo, era a primeira vez que falava para ela, elas responderam-lhe em uníssono mas praticamente sem mover os lábios.
Acabaram por falar um pouco, sempre conversa de circunstância, uma conversa quase metódica e demasiado superficial, até para uma normal conversa de circunstância, notou algum desejo no olhar dela e agora uma frieza distante no olhar da outra, quando lhe perguntaram o que fazia no apartamento agora, respondeu com naturalidade que tinha perdido a carteira e pensou que pudesse ter ficado por lá, estavam agora os 3 naquele pequeno quarto de luz trémula, a outra disse com uma certeza melancólica na voz que o apartamento era dela, e que antes de limpar tudo aquilo queria dormir um pouco, não lhe disseram nunca contudo porque choravam quando ele entrou, também não falaram nada sobre aquele moribundo ensanguentado na sala, e ele também nada perguntou. Estavam agora de pé junto à porta do quarto, ele olhava-a fixamente num momento de silêncio que quase doía, ela despediu-se da outra com uma carícia na face e disse ao Francisco para saírem os dois para a outra poder descansar, agarrou-o pelo braço, mas ele antes de se voltar para sair cruzou por uma última vez o olhar com a outra, era distante e melancólico, preenchido de inevitabilidade, abandonaram o quarto e fecharam a porta, deixando-a, atravessaram rapidamente a sala moribunda, e saíram,

- Não procuras-te a carteira…(disse suavemente, provocando-o)

- Encontrei-te

- Eu esperei que voltasses

- Porque esperaste?

- Porque voltaste?

- Sabia que ainda estarias lá

- E agora estamos os dois aqui.

- Sabes, eu tentei falar contigo na festa, mas de certa forma tive medo,

- Sim eu sei, eu também quis ir falar contigo, mas quando me aproximei na altura, pareceste-me tão bêbado e perdido, que me afastei

- (Corou de vergonha dele próprio), Estava mesmo, e tudo o que queria era conseguir dizer-te qualquer coisa, qualquer palavra ou monossílabo, embebedei-me para o tentar, mas continuava a sentir que tudo o que dissesse naquele momento soaria a patético.
-Sabes, talvez soasse mesmo a patético, e, se não tivéssemos trocado aqueles olhares, provavelmente ignoraria a idiotice que dissesses, mas eu estava a olhar para ti, e uma mulher não faz nada por acaso.

- (Sussurrou-lhe ao ouvido que a beleza dela era avassaladora e lhe fazia tremer todos os sentidos) Apetece-me dizer-te algo do género de, a tua beleza é avassaladora e faz todos os meus sentidos tremerem, mas como agora, neste momento, soaria ridículo e pretensioso dizer-to, digo-te apenas que me apetece ir até junto ao mar, ia saber-me bem ouvir o desfazer final, sistemático e desesperado das ondas na areia e nas rochas, e vai saber-me melhor se vieres comigo.

- (Sussurrou-lhe que sim, de uma forma que o fez ruborizar novamente) Proposta ousada essa, vinda de um desconhecido,

Entraram no carro dele e seguiram. A frente do carro continuava parcialmente destruída por causa do acidente que tivera umas horas atrás, mas ela não fez nenhuma pergunta quanto a isso, iam falando de trivialidades, cinema, música, literatura, e de forma ora mágica ora perturbadora, os gostos dela praticamente coincidiam com os dele, sempre que Francisco lhe perguntava algo de mais pessoal ou real, ela desviava a conversa e apenas fitava-o, ele sentia que algo estava errado, notava-o no olhar dela, ela sabia algo mais, mas ele estava com ela, e isso, bastava.
Reparou numa grande placa electrónica, que dizia em letras alaranjadas “estrada interrompida devido a acidente com derrame de óleo ” mas os poucos carros que circulavam não pareciam abrandar e ele não via qualquer resquício de um acidente, comentou com ela que apenas sorriu de uma forma quase circunstancial. Chegaram finalmente até junto do mar, as ondas embatiam com força contra a falésia numa sintonia quase musical, sempre com a mesma cega determinação, sempre com o mesmo inevitável fim, desaparecendo com estrondo, e serenando, como se ainda hoje lutassem em vão para alterar o final da primeira onda que bateu contra terra. Dizem que se pode ouvir a voz do mar em momentos assim, tantas são as verdades, segredos, e destinos fatídicos que o mar carrega, e por isso todas as ondas, apesar de condenadas ao mesmo destino, são diferentes, como se cada uma carregasse uma vida, e como se a costa fosse sempre o fim, mas naquela noite o som de todas parecia melódico e igual, como se o mar deixasse de alguma vez ter tido voz e passasse a ter apenas destino.
Agora, ainda noite, olhavam-se em silêncio, a pele clara dela estava arrepiada, talvez por causa do frio húmido que entrava no carro e mantinha-se ruborizada no local daquele estranho rasgo no seu vestido, o olhar dela apesar de distante, bem mais distante e até apagado do que durante a festa até, parecia desejar o corpo dele, parecia querê-lo, parecia até destinada a tê-lo. Na noite não surge amor, não numa noite apenas, talvez atracção, medo de solidão, pretexto para sexo, e ambos o pareciam saber, sabemo-lo todos. Ele fitou o relógio do carro, marcava 3:30 da manhã, mais ou menos a hora a que saíra da festa, e o ponteiro dos minutos tremelicava hesitante para trás e para a frente sem parecer decidir para onde se mover, tinha-se estragado aquando do acidente, ele pensava no sentido, na improbabilidade, na simplicidade, e até na felicidade de tudo aquilo, por uma vez a vida era objectiva, sincera, determinada, e por isso mais fácil, por uma vez o desejo e o sonho correspondiam inteiramente às expectativas, e por uma vez não se sentia nervoso, com um estranho aperto no coração, ou até mesmo palerma, perante um ser tão belo como ela,

- Ainda não me disseste o teu nome,

- Ainda não me o perguntaste,

- Pergunto-te agora,

- Senão te o disser, será como se nunca tivesse existido, amanha podes ir embora, e nada importará, será como se nunca tivesse acontecido, ninguém existe sem um nome.

-Eu não quero ir amanha, embebedei-me e fui “perdoado” e agora encontrei-te de novo.

-Amanhã, quando tiver passado a noite, logo te direi como me chamo, depois vou beijar-te, vou mordiscar-te os nós dos dedos, vou fazer-te cócegas até, mas isso se estiveres aqui amanhã,

-Estarei.
Nesse instante sentiu alguém bater com força no vidro do lado do condutor, ele ficou hirto e sem saber bem o que fazer acabou por abrir o vidro manualmente, enquanto ela parecia não se preocupar muito com a situação e continuava apenas a olhá-lo, quando acabou de abrir o vidro reparou que se tratava de um senhor um pouco gordo até, assim de meia-idade e com um olhar que até se podia dizer que guardava algum ódio, se não estivesse tão profundamente infeliz,
-Boa noite,
-Boa noite, o que deseja?
- Que você desapareça daqui,
- Este sítio é público, e você não é polícia, vá mas é chatear alguém como você.
- Destruir é demasiado fácil, (e sem mais palavras, mantendo sempre aquele inalterável olhar, acabou por virar costas e se perder na escuridão)

Francisco fechou rapidamente o vidro e fazendo um esforço por ignorar aquele momento anterior e porque ela também parecia não querer saber, beijou-a sem acrescentar mais palavras, beijaram-se demoradamente, experimentavam-se, aguardando, ela mordiscou-lhe os lábios com força, fazendo-o arrepiar-se em silêncio, sugava-lhe o sangue que escorria, envolvendo-o ainda quente na própria saliva, e receber depois naqueles beijos o sangue que ela lhe roubara e moldara, excitava-o. Despiram-se em silêncio, ele massajava-lhe a pele rubra na zona do rasgo no vestido, e que mesmo assim continuava tão pura e doce, e depois massajava, beijava e desejava cada centímetro de carne dela, colocou-lhe a mão entre as pernas e com os dedos começou a fazer com que ela gemesse e o arranhasse até, senão de prazer ainda, pelo menos de ânsia de prazer, ela começou a mordiscar-lhe o ombro e ele pressionando-a contra as costas do banco do carro que rangia já gasto, misturando-se todos os sons com as ondas constantes do mar, e olhando-a nos olhos que transbordavam de um desejo fatídico que não sabia esperar, começou a penetrá-la e agora os gemidos de ambos lutavam por se sobrepor às ondas do mar.
Saber que dependia dele continuar ali quando o sol nascesse, vê-la a bocejar desajeitada quando o sol a acordasse, ver esse mesmo sol a iluminar a pele clara de contorno magro e definido dela, e imaginar os sorrisos cúmplices que trocariam quando fossem acordados pelo sol, tudo isso alegrava-o, e fazia-o de uma certa forma misteriosa, ainda não bem explicada por causa dos neurotransmissores, carne, sentimento, expectativa, desejo e cócegas que envolve, saber que “estaria ali quando ela acordasse”.Mas ainda era noite e mandava o desejo imediato, amavam-se, emaranhados por um desespero inevitável, o desejo consciente, de carne e de sexo concretizava-se, tudo aquilo soava como um puzzle confuso, faltava organizá-lo e rezar para que não houvesse peças rasgadas, mas o prazer era tanto agora, ambos gritavam de um prazer forte, imediato, louco, e diria até que imprescindível à vida que só a carne dá.
Abriu tremulamente os olhos, não lhe parecia ter chegado a dormir, ao seu lado, ela dormia ainda, era bela enquanto dormia, parecia sempre tão bela, reparou que o volante que tinha limpo depois do acidente estava ainda manchado de sangue seco, e olhando-se pelo retrovisor do carro viu que continuava com aquela mancha de sangue no lado esquerdo da testa, percorreu-o um arrepio de lucidez, e doía tanto, sentia um amargo na boca, por aquele último trago, por todos aqueles tragos, por ter tido medo, por ter desistido, uma pequena folha de papel embateu contra o pára brisas do carro, tinha um “V.” tingido de vermelho no meio, e um pequeno smile em uma das bordas, uma dor lancinante que lhe cobria a cabeça e o pescoço e que agora não parava ou diminuía, percorria-o, e sentiu-se a abrir os olhos que já julgava abertos, as dores impediam-no de sentir o próprio corpo, e turvavam-lhe a própria visão, apercebia-se apenas que estava imobilizado numa cama de hospital, aquilo não podia estar a acontecer, tentava mexer-se e nada acontecia, não sentia nada, começou a gritar, a gritar e a gemer não de prazer como à pouco, mas de verdade e angustia agora, mas saberá alguém a exacta diferença?
O quarto era pequeno, e a cama dele era a única naquele quarto, iluminado por uma forte luz branca, e por uma pequena janela entreaberta que lhe permitia ver, distante o mundo exterior, e apenas ouvia o apito monocórdico e constantemente intervalado de uma qualquer máquina, queria sair dali, sair por aquela pequena janela, e continuar a viver, procurá-la e encontrá-la agora que finalmente era dia, lembrava-se daquela luz branca antes do impacto, de um grito sufocado de uma voz que não era a sua, mas tudo lhe parecia distorcido e imperceptível e até insignificante. Corriam-lhe lágrimas soltas pelo rosto agora, lágrimas de dor, medo, raiva, revolta, não importava agora porque o sal de ambas é o mesmo, um médico acabou por entrar naquele pequeno quarto com cheiro a desinfectante e a morte, e ele, no mais pisado e recalcado de seus pensamentos, já sabia o diagnóstico que o médico lhe diria, como se já há muito o tivesse sabido, o sal das lágrimas secava-lhe agora os lábios, enquanto o médico de ar ainda jovem, vivo, despreocupado e passageiro, o encarava,

- Fico feliz por ver que já acordou, como se sente?

- Como estou?

- Está agora a começar a recuperar, sobreviveu a um acidente grave, teve sorte

- Como estou?

- Foi projectado do carro durante o acidente, e com a violência do impacto ficou com duas vértebras cervicais desfeitas, talvez melhore com fisioterapia

- Diga-me, responda-me com verdade por favor, esqueça a merda dos termos médicos agora, e diga-me, vou conseguir sequer voltar a andar um dia?

- Não

- Bem, agora era a altura em que eu por vazio e raiva partia tudo à minha volta, mas isso se me pudesse mexer, obrigado, deixe-me sozinho agora por favor,

- Os seus pais querem vê-lo, também, estão lá em baixo à espera.

- Deixe-me sozinho, e não os traga aqui, diga-lhes que estou bem e que os adoro, mas agora não, não quero que me vejam assim, com repulsa, com raiva de mim, a ser um nada que se mija e borra nas calças, por favor faça isso.

- Tudo bem, mas devo avisá-lo que também terá que prestar declarações à polícia

- Porquê?

- No momento do acidente você estava embriagado, e ao seu lado ia uma rapariga, que morreu carbonizada, ficou presa no carro enquanto ele ardia, é tudo o que lhe posso dizer

- Eu ia sozinho no meu carro, disso tenho a certeza

- Terá oportunidade de explicar isso mais detalhadamente quando prestar declarações

- Espere, diga-me só o nome dela,

- Vera.

- Era loira de olhos azuis cor de mar ela,

- Parece recordar-se afinal.

- Sim, talvez eu seja a merda de um monstro que se embebeda premeditadamente para
destruir vidas, e no final sorri por se lembrar, mas agora, agora deixe-me sozinho.

- Tudo bem Francisco, continuação de um bom dia, e se precisar de alguma coisa uma enfermeira virá de imediato

Estava de novo sozinho, para sempre sozinho naquilo que era agora, mas não conseguia deixar de pensar nela, naquela noite inacabada, sabia quem era a outra agora, talvez sempre o tivesse sabido, mas pensava nela, nos cabelos pretos dela, nos ombros definidos e joelhos torneados, na beleza dela, na garrafa de água em sua mão, nos olhares trocados, e pensava em tudo isso não por estar apaixonado por ela, nem tão pouco por acreditar realmente que um dia se chegassem a amar, não por ela ser mais especial ou mais bela que todas as outras, mas apenas porque fora a última vez em que viver valia a pena, a última vez em que sentiu um desejo puro, despreocupado, sincero e recíproco, e diabos o levem se não é isso que todos queremos.
Olhava estático para a janela pequena e odiosa que lhe mostrava o dia e a vida lá fora, chorava lágrimas que já não sentia nem provava, já não tinha medo, mas agora mijava-se e borrava-se nas calças e a sua carne de não se mexer, apodrecia, e ele esperava, para sempre, e rezava para o sempre ser breve, esperaria, não pela morte, pela morte esperamos todos, mas por ela, e triste é aquele que espera por uma miragem que não volta. Talvez o destino sejamos nós a fazê-lo, talvez tudo já esteja escrito, talvez ninguém se importe mesmo, mas a vida é sempre injusta para quem ama, curta para quem apenas sonhas, e uma paisagem apenas, para quem vive de medo.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Luxúria

Namoravam há alguns anos, namoro sério de juras de amor, gostavam um do outro, talvez se amassem, não interessa, eram jovens e ainda sem grandes compromissos, talvez aquele namoro fosse o compromisso mais sério de ambos. Ele era metódico, demasiado metódico (quase palerma), oferecia-lhe flores, sempre no dia em que faziam anos de namoro, no dia de aniversário dela, e no dia de São Valentim, em mais nenhum dia “porque amo-te e me apetece(s)” , e nunca vermelhas. Ela, bem…ela era feliz, ele não era exactamente um romântico, mas gostava dela, preocupava-se com ela, dizia-lhe que a amava, sorria-lhe, talvez a amasse, eles passavam horas à conversa e depois faziam amor e diziam “eu amo-te”, ou faziam amor e depois passavam horas à conversa.
Os amigos invejavam-nos e as famílias aplaudiam-nos, nunca se lhes tinham conhecido grandes discussões, iam às festas onde estava concentrada toda a nata da cidade, ambos bons vivants, passeavam a dois à beira mar e faziam piqueniques ao fim de semana, é bela a natureza e é tão bom passear a dois, tinham fotos e suporte digital de beijos e carícias trocados em Paris, Viena e Veneza, e mais que isso, tinham recordações, memórias do que tinham medo de perder, amavam-se, pelo menos segundo a definição de ambos da palavra amor, mas faltava-lhes algo, ela sabia o que era, ele ainda não.
Em uma noite, em que ele lhe disse que não ia dormir a casa, o motivo era uma viagem de trabalho, ela sorriu e foi-se arranjar, deixou o cabelo por secar depois do banho, deixou-o solto e ia secando e encaracolando lentamente, usava um vestido já com alguns anos mas que só por uma vez tinha vestido, só o tinha usado naquela noite de que agora se recordava, era completamente preto, tão preto com os seus cabelos ainda por secar, sobressaia-lhe o peito e acariciava-lhe uma pequena parte das pernas, calçou uns sapatos também eles pretos, de salto alto mas não em agulha, de salto alto mas sem exagerar e ser vulgar, não colocou brincos ou colares, apenas uma leve maquilhagem, acabava de adornar os lábios com um batom vermelho por estrear, quando ele chegou a casa e a viu.
Percorreu-lhe a espinha algo de novo, um irresistível desejo de carne, de lhe saborear cada centímetro de corpo, aquele vestido irrecusável, o cabelo dela que lhe molhava as costas deixadas a nu, o batom vermelho vivo em perfeito contraste com a tez clara dela…, mas porque estaria ela assim hoje?, acabou por perguntar-lhe, ela disse, “sabia que virias”…….”como poderias saber?”…..” porque precisava que viesses”, naquele momento, e porque o amor, aliado da carne, a isso leva, acabaram as dúvidas e interrogações, ele fixou-lhe os lábios e depois o olhar, trincou-lhe os lábios, ela mordia-lhe o pescoço como nunca o tinha feito, agora ela sentia toda a sua carne apetecida e desejada, tiraram toda a roupa um do outro e deixaram-se cair no chão frio da sala, ela entrelaçou as pernas no pescoço dele, e ele ia beijando, trincando, precisando de todo o seu corpo, ela, agora em êxtase de desejo, colocou-lhe as mãos sobre as omoplatas e arranhou-lhe as costas de tez morena, com força suficiente para delas escorrerem dois finos fios de sangue que iam brotando no chão, nos ombros finos e claros dela denotava-se com precisão a marca dos dentes dele, e todo o corpo dela os lábios dele tinham marcado não cessando de desejar, ambos gemiam agora, e como lhes sabia bem o gemer um do outro, sabia-lhes a uma compreensão que não pode ser compreendida, a uma satisfação que só em corpos marcados é atingida, e que só com vermelho se pode atingir, e agora os corpos suados e marcados de ambos eram um só, não como já tantas vezes tinham sido, não fazendo amor como das outras vezes, mas fazendo sexo, reinava o desejo pela carne um do outro, como se por uma vez o amor fosse apenas pretexto, e no final,
-Amoro-te
-Amoras-me?
-Sim, porque as amoras eu posso trincar.

Na manhã seguinte, 3 chamadas não atendidas e uma mensagem no telemóvel dela, ela sorriu, e apagou o número.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A aldeia das casas de pedra

Todas as aldeias têm as suas crenças, vida própria que o passar do tempo lá criou, fora de lá todo um mundo, lá dentro, dentro de cada um que aquece as mãos na lareira nas noites frias, ou vai aos bailaricos nas noites de Agosto, todo o seu mundo. A aldeia das casas de pedra não era excepção, tinha vida e era personagem na vida de quem, por lá ter nascido, lá vivia, o pequeno jardim, a fonte, a capela, a taberna do Srº Augusto, o recital dos bailaricos, todos eles ganhavam vida, porque por todos eles passou o tempo, e o tempo não muda, mas mudam eles, mudamos nós. Estávamos no século XIX e o progresso ainda não tinha chegado à aldeia, não havia luz nas lâmpadas ou aquecedores a gás, havia velas que iluminavam e lareiras que aqueciam, em vez da televisão, sobravam as histórias, não havia número nas casas, não eram precisos, todos se conheciam e não chegavam cartas à aldeia, restava a memória.
Em esta aldeia de casas frias de pedra não havia esquecimento, todos eram sempre lembrados, quem na aldeia nascia, na aldeia morria, sempre assim tinha sido, os outros, estavam de passagem. Sofia nascera na aldeia e tinha agora 18 anos, a sua pele era clara e suave, o seu cabelo, liso e completamente preto, os seus olhos eram verdes, não esverdeados mas naturalmente verdes, de um verde tão intenso, que os tornava irresistíveis, era bela, mas era surda, nunca ninguém tinha nascido surdo na aldeia, não a compreendiam, sustentavam-na por obrigação, porque tinha nascido na aldeia, muitos diziam que estava amaldiçoada, a sua família dava-lhe comida e um tecto para ficar, era bela, mas os rapazes afastavam-se, tinham medo, medo da maldição dela, é a única coisa que leva um rapaz a fugir de uma bela rapariga, o medo do que não consegue explicar.
Um dia chegou um médico à aldeia, vinha ver o padre que há já duas semanas estava de cama, as pessoas da aldeia pouco acreditavam nos médicos, mas por vezes ele vinha à aldeia, desta vez não era o médico do costume que chegava, um novato vinha em sua vez, dizia que o outro estava doente e que se chamava Diogo. Dizia a verdade, o médico, já velho, estava doente e mandara-o em sua vez, Diogo tinha acabado o curso de medicina à poucos meses e sempre se tinha mostrado brilhante e um amante do conhecimento e da ciência, chegado à aldeia, auscultou o padre, mediu-lhe a temperatura e sem entrar em explicações alongadas deu-lhe 2 comprimidos que ninguém sabia o que eram e deixou-lhe uma caixa, também de comprimidos, que explicou ao padre serem para tomar um por dia, sempre depois de almoço, e sempre durante 7 dias, e disse-lhe que iria melhorar. Depois de poucas palavras proferidas e sempre de rosto fechado, preparava-se para abandonar a aldeia, quando se cruzou com Sofia, de imediato se sentiu atraído por ela, afinal, ela era bela, e ele, sem hesitar dirigiu-se a ela dizendo “olá desconhecida”, ela primeiro fixou-lhe os lábios para tentar entender o que ele dizia e ela não ouvia, depois utilizando uma caneta já velha e um pedaço de papel escreveu “olá desconhecido, não te ouço, nasci surda, tento perceber-te lendo-te os lábios, não te falo, por nada ouvir nunca falei”.
Diogo, leu a mágoa e dor de não poder ouvir e não saber falar, naquele pequeno pedaço de papel, e pegando também num pedaço de papel que tinha no bolso do casaco e em uma caneta, deixou de falar e escreveu, “ não tem mal, escrevamos então, tudo o que pode ser dito pode ser escrito, o que não se pode escrever também ainda não inventaram palavras para o dizer”, ao ler isto, Sofia corou, pela primeira vez o seu coração batia acelerado, Diogo era bem-parecido, mas havia rapazes na aldeia bem mais bonitos que ele, era o seu conhecimento, cultura e vivências que o distinguiam dos outros, ele não acreditava em bruxarias, percebia qual o problema de Sofia, ele não tinha medo dela, e ela era bela, e agora, bastando dois pedaços de papel trocados, ela sentia-se compreendida, sentia-se atraída e protegida. Sofia acabou por pegar em mais um pedaço de papel e responder a Diogo,
- “Por nunca ter ouvido não sei o que perco por não ouvir, mas sei o que sofro por os outros saberem que não ouço, têm medo de mim, têm medo da diferença e respondem-lhe com indiferença”
-“ Por não ouvires apenas perdes o que acreditas perder, vês o mundo e tens livre-trânsito para sentir, por vezes gosto de acreditar que só inventaram as palavras porque se tinha preguiça de ler um olhar”
- “ É belo o que escreves, e agradeço-te, cada palavra, mas custa-me a crer, a forma como me olham, assusta-me, faz-me duvidar, do que sou, do que posso ser”
-“ Por um momento esquece os outros, lembra-te de ti, és bonita, perspicaz, sonhas acordada, tens uma vida por viver, se os outros têm medo, eles que vivam metade”
-“ Hum…passando a acreditar nas palavras que me escreves, e porque não tenho preguiça, joguemos então”
-“Joguemos? Joguemos a quê?”
-“Terás que adivinhar meu querido”

Ela fixou-lhe o olhar, Ele corou e desviou os olhos, Ela insistia, Ele com um leve sorriso, olhou de soslaio, percebendo que ela continuava, inspirou fundo e retribuiu o olhar, De um lado olhos azuis quase cinza, Do outro olhos verdes, absoluta e desconcertantemente verdes, Ela acabou por sorrir, mordiscou o lábio e olhou para baixo, para as mãos dele, tremiam um pouco, Ele agora com um sorriso carente de certezas olhava-a hesitando, Ela voltou a fixar-lhe o olhar, agora os lábios dela desenhavam uma expressão indecifrável, entre um sorriso que começava a denotar covinhas nas bochechas, e desejo, agarrou-lhe suavemente as pontas dos dedos, Ele beijo-a.

Sofia estava feliz agora, ela ainda não amava Diogo, conhecera-o hoje, e em um dia não surge amor, mas ainda sem o amar, já precisava dele, ele por ter estudos e perceber a ciência, compreendia-a e por não ser cego, queria-a, afinal, ela era bela.

- “ Se pudesse parar o tempo, parava-o agora.”
- “ Porquê agora? Porque não amanha ou depois de amanha?”
- “ Porque desde que me lembro, sempre soube o amanhã, por cada dia que passava, o mesmo desprezo, o mesmo medo, a mesma solidão, contudo, o amanha que eu sabia ontem, não é o que tenho hoje, agora que te vi, que te conheci, que te beijei, percebi que não quero voltar a saber o amanha.”
- “ Eu se pudesse parar o tempo, não o parava, se o tempo parasse deixaria de haver memória, não teríamos a recordação dos olhares, dos lugares, dos sorrisos, dos cheiros, das lágrimas e histórias, e seria triste não ter memória.”
- “ Nunca percebi muito bem as regras do tempo, imagina, tu conheces alguém, nesse momento sentes-te atraído, podes aos poucos ir conhecendo essa pessoa, com o passar das horas e dos dias podes começar a gostar dessa pessoa, podes acabar por te apaixonar por ela, com o tempo pode surgir amor, pode durar uns meses ou uns anos, ou pode durar para sempre, se é que existe sempre, mas para acabar com tudo, para acabar com uma, duas ou 3 vidas, basta um segundo.”
- “ Nunca tinha pensado assim, dói pensar assim, mas é verdade, e por isso podíamos roubar o dia de hoje ao tempo”
- “ E como o faríamos?”
- “ Fazendo deste dia só nosso, não contando a ninguém o que vivemos hoje, nem ao tempo, o tempo não nos pode tirar o que não sabe que temos.”
-“ Um dia só nosso, não do tempo, ninguém para o criticar, apreciar, julgar, nada para um dia o apagar, porque não…”
- “ Assim posso escrever-te a verdade, ninguém para a julgar, durará para sempre, e a verdade é simples, olhei para ti há pouco, e achei-te bela, agora olho para ti, e preciso de ti”
-“ A verdade…só se inventou a verdade porque surgiram as mentiras, antes disso, não se pedia a verdade, não se pediam beijos de amor.”
- “Não?”
-“ Não era preciso” (beijo-o)

Assim passaram horas, beijando-se, acariciando-se, escrevendo-se, conhecendo-se, foram caminhando até ao pé de um pequeno rio que passava perto da aldeia, o sol começava a pôr-se, estavam sozinhos, em absoluto silêncio, Sofia acabou por dizer a Diogo que a entristecia, neste momento, não ouvir o som da água a ranger nas pedras, ou dos pássaros que recolhiam às árvores para dormir, Diogo disse-lhe que quando olhava para ela, quando tocava nela, deixava de ouvir cada um desses simples sons, ela sorriu, o sol ia desaparecendo lentamente, a água do rio passava constante, polindo eternamente as arestas das pedras, talvez pelo encanto do momento, talvez pela feliz inocência da juventude, talvez porque Sofia precisasse de Diogo, ou talvez por ela ser bela, acabaram por trocar juras de amor eterno, acabaram por se amar naquela noite, e por adormecer no mais absoluto silêncio da noite, pouco antes do nascer do Sol ela acordou, estava sozinha.
Ontem Diogo ao ver Sofia logo desejou ter sexo com ela, Sofia, ao conhecê-lo, não o amou logo, não podia, desejou que ele a levasse da aldeia, que a levasse para longe do medo, da repulsa, da desaprovação dos outros, ele conseguiu o que queria, ela não. Hoje Sofia voltou a saber o amanhã, estava triste, como sempre estivera, mas não amargurada com Diogo, ele por perceber a ciência e a fisiologia humana, compreendeu-a, não teve medo, ela era bela, desejo-a por isso. Entre eles, a inteligência e desejo de ambos, o sebastianismo dele, a beleza dela, levaram a momentos de encanto, palavras de romance, juras de amor, acabou em sexo, nunca houvera amor, o amor não surge num dia e meia-noite. Ela, por nunca ter sido amada, pela indiferença, medo e repulsa dos outros, não conseguia odiar aquele que por saber a verdade, se correspondeu com ela à distância de um olhar, a encantou e deixou-se encantar, e a quis por meia-noite, mas que por ter medo e ser animal, a deixou para sempre sem avisar.
Sofia continuou na aldeia, nunca falou de Diogo a ninguém, tudo permanecia na mesma, o medo, aliado do tempo ia vencendo aos poucos mas sem retorno, apesar de ela não viver além de sobreviver, o tempo não tinha misericórdia, nunca tem, passava por ela, e com ela trocava mais um dia de tristeza por menos um dia de vida, Sofia nunca saiu da aldeia, talvez se tivesse saído, tivesse conhecido outros rapazes, outros homens, alguns teriam por certo medo da surdez que não compreendiam, talvez todos os outros se interessassem somente pela sua beleza, por seu corpo, somente por meia-noite, ou talvez surgisse amor, amor não só entre amantes, também talvez o amor da amizade de desconhecidos e desconhecidas que ela nunca conheceu, mas ela, talvez por não mais acreditar, ou talvez por também ela ter medo, nunca saiu da aldeia.
Com o passar dos anos, foi envelhecendo, surgiam rugas, cabelos brancos dentes amarelados e depois escurecidos, outros desconhecidos foram passando pela aldeia, mas agora, tantos anos passados, ela já não era bela, acabou por passar os seus últimos dias, como todos os outros da sua vida, tristes e vazios, todos esses miseráveis dias condicionados pelo mesmo, pelo medo, o único que assim não foi, roubou-o ao tempo, e assim no final de tudo, foi tudo o que lhe restou, quanto ao Diogo, ele não era da aldeia, nunca o foi, dele não há memória, de onde ele era, as casas já não eram de pedra.