segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Festa Brava, o Aficionado, o Cavaleiro e o Touro



O Aficionado

Sentado, de pé, ou mesmo agarrado às grades, com as marcas das grades, do ferro destas a cravarem-se-lhe nas mãos, treme descontrolado, desordenadamente, chega a apetecer-lhe tirar a camisola, mas como é civilizado normalmente não o faz. Vai praguejando, contorce-se por dentro e a sua expressão facial, o seu sorriso retorcido, ostenta deformação, delírio, tal é a raiva, tal é a sede de prazer, a eminência em que julga estar de vir a sentir prazer, de se sentir grande, poderoso, dominador.

Quando o toureiro, a pé ou a cavalo, não importa, não lhe importa a ele, entra na arena para enfrentar o touro, ele sente-se personificado no toureiro. Imagina-se no lugar dele, na carne dele, a esventrar a carne do touro, a domina-lo, humilha-lo, e, quando o público, todo o público da arena, já em êxtase insistisse um bocadinho, a matá-lo num acto de coragem louvado, mesmo invejado por todos os outros. Aí imagina-se, vê-se a ele mesmo como invencível, só de imaginar a vida do touro a esvair-se, diante dos seus olhos os olhos do touro a perderem a vida, e ele o responsável supremo por isso.

Acontece que para supremo deleite do aficionado tais imagens a percorrerem-lhe a mente são apenas o princípio de algo maior, de algo real. Assim que o primeiro ferro é cravado com força, com determinação, com garra, nas costas do touro, o deleite do aficionado cresce infinitamente. Apenas porque, o que ele imaginou torna-se real, o touro a contorcer-se de dor no preciso momento em que o ferro lhe perfura a carne e o sangue esguicha, para a seguir tentar, em vão, ripostar contra o opressor, para tentar desesperado fugir dali, sem se ter apercebido que está cercado, fechado, fodido, que são 10 mil contra um, 10 mil a desejar-lhe dor, humilhação e morte. E diga-se, torna-se realidade ainda com mais brutalidade, com mais barulho, do que ele era capaz de antes imaginar, daí a sua histeria suprema. Chega a passar-lhe pela cabeça em tais momentos invadir a arena e espancar sozinho o touro a pontapé e cuspidelas, porque afinal, em tais momentos ele vê-se a si próprio como capaz de subjugar o mundo inteiro pela sua força, isto apesar da barriga proeminente e das hemorróidas.

Contudo em certas ocasiões mais raras, mais especiais, o melhor ainda vem depois quando, à sua frente, o touro é trespassado por uma espada, fina, comprida, letal, e depois de cuspir sangue, de se sentir desnorteado a sufocar no próprio sangue, e de tentar uns últimos passos a direito, cai no chão e se contorce desesperado, humilhado, ofendido, antes de por fim morrer ao som das palmas, do êxtase, mesmo de delírio. Nessas raras ocasiões o aficionado sente uma alegria tal, que chega a sentir-se a sair de si, lágrimas de emoção aparecem-lhe nos olhos entre gritos que bem podiam ser de urso e vivas ao toureiro, que afinal de contas, agora que pensava mais a sério nisso, com 2 ou 3 horas de treino bem podia ser ele.

O Cavaleiro

Claro que o Cavaleiro sente medo antes de entrar na arena, medo de falhar, medo até de ser colhido pelo brutamontes cruel que é o touro. Pelo que durante certas fracções de segundo chega mesmo a ponderar desistir, mas depois esbofeteia-se, mentalmente claro, a ele próprio, pergunta a si mesmo se é um homem ou é um rato, também mentalmente, claro, mas mesmo assim de forma cortês. Com base naquilo que considera serem a sua honra e coragem infinitas, chega a sentir um certa vergonha, que claro nunca confidencia a ninguém, por essa sua hesitação momentânea, e lá entra com ar pedante, orgulhoso, mesmo pré triunfal, na arena, contudo, pelo sim pelo não, as calças são castanhas.

Uma vez na arena há que lhe dar o devido mérito, ele é o único que ali está por vontade, para o touro e para o seu amado cavalo, comida, vacas/ éguas q.b. e descanso, estaria ok.

Enquanto investe em direcção ao touro um nervoso miudinho que chega mesmo a concretizar-se em calafrios, acompanha-o, trata-se da eminência da glória, ou da chacota. Sabe que não pode falhar, sobretudo, e é isso que lhe chega a causar os calafrios porque seria para ele insuportável a chacota, ou mesmo apenas a ausência de aplausos que viria das bancadas, mas o que ainda resta nele de racional, talvez de humano, diz-lhe que pode falhar, e isso é para ele extremamente doloroso. Há medida que o confronto se aproxima irremediavelmente tal nervoso, tal medo torna-se insuportável, tão insuportável que desaparece momentaneamente, e no instante decisivo tudo se apaga do seu cérebro que luta apenas por manter vivo o seu estúpido corpo. Nesse instante existe apenas na sua mente a bandarilha e o dorso da besta, a glória ou a chacota, o sangue, a agonia, as contorções, a humilhação, virão depois. A isso o cavaleiro apelida, com toda a sinceridade que a sua alma pode abarcar, de uma infinita coragem.

Tal como para o aficionado também para o Cavaleiro o momento de matar o touro no meio de uma arena repleta, talvez devesse aqui chamá-lo de Rejoneador mas não vou entrar agora em tais mariquices, é especialmente marcante, de um deleite que toca, transcendente mesmo. Avança a galope em direcção à besta impiedosa sentindo até uma certa raiva, cortês pois claro, em relação à mesma, que a bravura sem razão, sem raiva ao menos, é apenas estupidez. Piedade? Isso é para os fracos e cobardolas, ele despreza essa gente, cuspir-lhes-ia em cima se tivesse hipótese e se tal não afectasse o seu lado mais cortês, diga-se, quase de um galanteador. Até que, encarando-o senão nos olhos, ao menos nos cornos, cortados pois claro mas que mesmo assim aleijam, lhe crava entre a junção dos ossos do pescoço os 90 centímetros da sua delicada lança da morte. Os aficionados deliram, contorcem-se, gritam, embora com um toquezinho de inveja, o seu nome, ele delira um pouco mais que todos eles, afinal, é ele que está a ser ovacionado enquanto a meio metro de si o touro, 500 kg de carne acaba de se esvair em sangue pela boca, desespera por se manter em pé, por se manter vivo, mas cai, inevitavelmente, morto. E ele sabe que foi o responsável supremo desse tombo, dessa arte suprema que é a morte na arena, por isso mais do que se sentir, bravo, corajoso, valente, enfim, um verdadeiro herói, e disso ele nunca duvidou, sente-se, ao menos por breves momentos, imortal, vergou a natureza, vergaria o mundo.

Repara apenas no final ao passar a mão pela cara que fez um pequeno golpe pouco acima do maxilar, suficiente para muito pouco, mas ainda assim o bastante por lhe atestar a cara e agora a mão direita de sangue, o público em júbilo aplaude ainda mais, que afinal todo o verdadeiro herói também sofre, ao menos um bocadinho. Depois das últimas vénias e antes de abandonar a arena olha uma última vez para o touro, inerte, a ser arrastado pelos cavalos, quase que chega a sentir uma ponta de misericórdia pelo animal, mas diga-se em favor do nosso herói que a sua infinita bravura não permite que tal sentimento chegue a vias de facto, e assim segue para mais uma serena noite de sono, que amanhã o Sol brilhará de novo.


O Touro

Não percebe onde está, só sabe que está escuro, completamente escuro na sala onde o fecharam, o tempo passa, passa muito tempo mesmo, ele não imagina quanto, ele é burro e não tem a noção do tempo como nós, apenas quer fugir dali, quer desesperadamente fugir dali, mas não consegue, ele é burro e não sabe abrir uma fechadura como nós. Começa a entrar em desespero, mija-se e caga-se de medo, começa a sentir muita fome, apesar de a sua memória não ser tão prodigiosa como a nossa, sente uma tremenda vontade de voltar a ver luz, de pastar alguma coisa, então se tudo isso fosse com uma vaca por perto, aí beleza.

Acabam por o tirar de lá, profundamente confuso pouca resistência oferece a que o atem todo com cordas grossas, mas atam-no com muita força, com tanta força que sente as própria patas a ceder, não percebe nada do que se passa, do que querem dele, mas ao menos está vivo, e ainda se sente capaz de fugir dali para nunca mais lá voltar. De um momento para o outro aproxima-se dele com uma serra, ele não percebe o que aquilo é e para que serve, mas o seu instinto diz-lhe que ele deve ter medo, e ele obedece, mija-se mais uma vez enquanto se contorce de dor para se tentar em vão libertar daquelas estúpidas amarras. Começam a serrar-lhe os cornos, a dor imensa, agonizante, apenas é superada pelo meio, e pelo pasmo, porque lhe estão a fazer aquilo? Os cornos são dele, ele precisa deles. Tenta marrar com eles, com o que resta deles, marrar nos 4 homens que lhos estão a cortar, implora na muda linguagem dele que parem, mas não consegue nada.

Já no meio da arena continua sem perceber nada, ou melhor, percebe ainda menos, milhares de criaturas em toda a volta a emitir sons esquisitos com a boca e com as mãos, corre desajeitado em volta de toda a arena numa busca desesperada por uma saída. Chega a, em desespero, bater com o que lhe resta dos cornos nas delimitações da arena, não encontra saída, fica ainda mais aflito, magoaram-no, prenderam-no, cortaram-lhe os cornos, mas pronto, desde que agora o deixem fugir dali para sempre por ele fica tudo bem, amigos como dantes.  Ele é o escolhido, o centro das atenções, o verdadeiro rei da festa, mas ele sentia-se tão bem enquanto touro anónimo.

Criaturas como as que estão do lado de fora, como as que lhe cortaram os cornos, entram também na arena e dirigem-se para ele ora a pé ora a galope, começam por emitir uns sons que ele não entende, são criaturas mais pequenas que ele mas ele tem medo delas, convenhamos que ele nunca se gabou da sua bravura. Mesmo assim corre atrás delas com o que lhe resta dos cornos, não sabe exactamente porquê mas certo é que dali não consegue fugir, o seu instinto, que naquele momento apenas deseja continuar a viver, incita-o a tal, como se tivesse que os derrubar para ter alguma hipótese de fuga. Mas falha, falha totalmente, são eles quem lhe espetam umas coisas floridas e finas nas costas, o que lhe dó imensamente, em tais momentos ele contorce-se antes de tentar ripostar com uma nova marrada desajeitada. Com tudo nesses momentos de imensa agonia para ele é quando as criaturas do lado de fora emitem ainda mais ruído, um ruído tão alto que o apavora ainda mais. Ele é burro como já foi dito pelo que não entende por que o fazem.

Já estava exausto, há muito que teria gasto lágrimas e súplicas se as tivesse para usar, mas ao menos ainda estava vivo, e isso para ele era tudo o que importava, quando uma nova criatura que por qualquer razão que o seu intelecto limitado não entendia o assustava ainda mais que aos outas , entrou pedante e orgulhosa na arena. Tal criatura baralhou-o, cansou-o, fê-lo desesperar ao limite, com movimentos que só ele, estúpida besta, não percebia serem extremamente graciosos. O seu instinto dizia-lhe para acertar ao menos uma vez com os seus cornos mutilados para lhe mostrar que se devia ir embora, que ele se ia defender até ao fim e que era perigoso, mas ele simplesmente não consegui-a, falhava sempre, estava demasiado exausto.  

O touro estava já de cabeça vergada, tal era o cansaço e a dor, quanto ao medo que, pode levar um humano a desistir mas nunca o animal, era tão extremo que o fazia tremer sem já sequer lutar para ao menos encarar nos olhos a criatura que o oprimia. Tudo isso poupou trabalho ao matador que assim apenas teve que, com toda a classe e graciosidade, espetar a espada mesmo abaixo do pescoço do touro, trespassando-o.

Nesse último momento, antes do seu suspiro final, animem-se agora, aficionados, cavaleiros, toureiros, rejoneadores, e ademais figurantes, todos vocês venceram. Porque nesse momento, com as costas desfeitas por arpões que lhe rasgaram a carne, ainda a tremer de dor, medo, desespero, enquanto se esvaia em soluços de sangue pela própria boca, o touro, que apesar de burro daria tudo para aproveitar até à ultima gota este milagre que é a vida, desistiu e desejou que aqueles últimos segundos fossem breves. Apenas triste, triste com a puta da sorte que lhe calhou na rifa.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Caos

Estava escuro o bastante, o frio fazia-lhes pele de galinha, o mar falava, mas eles também.

- Vamos tentar um jogo diferente esta noite, prazer, mas só com palavras.

- Parece-me bem, duvido é que aguentes mais de 5 minutos.

- Bem, eu tinha apontado para 2 minutos, não mais. – Não estivesse escuro o bastante e eles teriam sabido qual dos dois corou.

 - Mas quais são as regras do jogo?

- Vale tudo, menos tocar. – Nisto passou o dedo indicador a menos de um centímetro da cara dela, começando desde a linha dos olhos, e quando já tinha abandonado o queixo em direcção ao pescoço abriu a mão toda e continuou o percurso descendente, sempre perto o bastante para ser doloroso.

- Ela aproximou-se ainda mais dele, de salientar que já antes estavam bastante próximos, o cabelo dela chegou mesmo a tocar-lhe nos braços, servissem as regras para alguma coisa e teria sido desqualificada. – Preferes que te recite um poema ou que te salte já para cima? Disse-o num sussurro, mas com os olhos muito abertos, e a expressão séria, quase triste, porque não se estava a rir. Alguém alheio a eles que a ouvisse, tomá-la-ia por ingénua, talvez mesmo por palerma.

 - Que me saltes já para cima. – Ao que parece os olhos dele nem piscaram.

- Sabias que as palavras são a mais poderosa fonte de prazer? – Ela quase sorriu depois de lhe fazer esta questão, talvez tenha sorrido mesmo, um sorriso muito pequeno que o confundiu, ele não percebeu se se tratava de ironia ou da antecipação de uma constatação em jeito de triunfo.

- São? – Disse-o espantado, até confuso, mas juro, parecia assustado.

- São, mas só porque a seguir vem sempre o silêncio, quer dizer, senão silêncio, ao menos ausência de palavras – De referir que ela não disse estas últimas palavras com especial malícia, podendo bem ter passado por ingénua. – E enquanto as palavras despertam, excitam, adiam, escondem, e às vezes até ensinam, o silêncio, ou pelo menos a ausência de palavras – Desta vez apesar de a malícia continuar aparentemente ausente disse-as mais baixo. – Realizam, expõem, e até desconstroem, o que as palavras construíram. Por exemplo, se eu te dissesse que já só aguento esta “máscara de civilizada e ponderada” mais uns segundos, que estou prestes a render-me à carne e a infringir-te tudo, sim, escusas de arregalar mais os olhos, mesmo tudo, a ponto de implorares por mais e eu te dizer não a seguir, que nem só de prazer se faz o prazer, e só é doce quem não sabe ser mais nada. Bem..se eu te sussurrasse este exemplo ao ouvido arrepiando-te o que tens para arrepiar, – O que aliás ela fez apesar de estarem sozinhos ao menos até onde o escuro o bastante os deixava ver – talvez conseguisse até com que odiasses as palavras, a própria invenção da palavra porque enquanto forem só palavras, não passam de promessas, e as promessas são a única coisa que pode ser vã, a única coisa que pode ser eterna.

 - Lia-se ardor na cara dele, chegava mesmo a morder os lábios, mas não sorria, talvez de alguma forma pudesse estar triste, mas era impossível para o próprio perceber com o quê, o desejo era febril, total. – Tu és bela, e eu não te consigo explicar porquê, não por palavras, não enquanto olhar para ti magoar.

 - Desistes?

 - Desisto.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O herói e o desertor

O herói

“ Não posso fugir, não tenho esse direito, tenho medo, tanto medo, e nem isso devia ter, pelo menos não tanto, os meus camaradas, os meus irmãos, estão aqui comigo, e eles também não fogem, aceitam matar e morrer, porque assim tem mesmo que ser neste sítio onde estamos. Se perdermos esta guerra eles irão entrar no meu país, e para se vingarem dos deles que aqui morreram, irão matar crianças nossas, subjugar todos os meus, todos os que amo, e amarei, destruir casas, talvez a minha própria casa com os meus pais e pequeno irmão lá dentro, talvez a casa dela. Claro que rezo para que tudo isto acabe rápido, e para sobreviver pelo menos semi-ileso, tudo o que for continuar com dois braços e duas pernas e sem ficar demasiado deformado já será bastante bom para o que aqui se passa. Ainda ontem à tarde mais um camarada meu morreu numa emboscada.

Após uma explosão que também a mim cegou por uns instantes e fez com que os meus ouvidos ainda agora mantenham um agudo zumbido, ficou horrivelmente aberto e mesmo esfrangalhado, especialmente na zona do tórax e do abdómen, e apesar do insuportável calor que nos queimava todos os poros, ele gemia no chão e contorcia-se. Julgo que não de dor, as feridas eram demasiado profundas para que as extremidades nervosas ainda ordenassem alguma coisa, mas de frio e tristeza. Não dizia uma palavra, talvez não o conseguisse de todo, apenas soluçava e tentava recompor-se sem qualquer sucesso, os olhos tentavam de forma desesperada manter-se abertos, corriam-lhe lágrimas no rosto, os olhos dele tentavam viver, e as partes pretas dos olhos, rodeadas de uma íris verde clara, giravam em redor à procura de ajuda e de conforto, ou de qualquer coisa, que não o fim, até tudo o que havia de vida nele as largar. Talvez devido ao insuportável calor, ainda ele respirava aos solavancos e a vida lhe tremia nos dedos, já as moscas se tinham começado a apoderar da sua carne que tinha começado a cheirar a morte, eu estava com os olhos quase lágrimas, agarrado a ele, a ver a vida partir, tais eram as peripécias que a guerra já nos tinha feito passar juntos. E até o levantarmos daquela areia fina e árida, e o colocarmos num saco, sim, num miserável saco de plástico, a mancha de sangue em redor dele ia aumentando e impregnando-se e perdendo-se na areia, cobrindo agora a maior parte dos pequenos bocados dele, de carne e osso, e entranhas, que tinham voado aquando da explosão, e tudo isso atraia agora ainda mais das miseráveis moscas.

Tenho neste momento a absoluta certeza que a guerra é a coisa mais inumana que existe, matar-mo-nos assim uns aos outros, apenas porque nos dão ordens, somos peões, simples peões, podíamos pôr agora mesmo fim a tudo isto, sem beijos e abraços, que a memória não me permite abraçar os que mantaram os meus irmãos de armas, mas com lealdade. E todos voltaríamos para as nossas casas, para as nossas pátrias, sem o sentimento de vitória, de conquista, e de poder, mas vivos, e quão desprezada é a vitória, a conquista, e o poder, que é viver. Ou podíamos mesmo ter evitado tudo isto, preferia mil vezes o vexame das sanções económicas e da escassez de ouro, e até de Sol, na minha pátria, do que isto a que fazem um homem sujeitar-se. Na dúvida da existência de um inferno em outra vida, decidiu-se, por via das dúvidas, criar um inferno nesta mesma vida, matar, ver morrer, ver matar, sofrer tanto, e tudo isso, para mesmo em caso de vitória, nunca mais voltarmos a ser os homens que teríamos sido. Mesmo aqueles que não voltam num caixão, e que em vez de intestinos não têm um saco e em vez de olhos, óculos escuros, mesmo esses, nunca mais dormirão sem pesadelos, sem sobressaltos, sem medo e remorsos.

Mas a escolha nunca foi minha, ninguém me perguntou se queria nascer no meu país, se queria amá-lo tanto quanto o amo, embora nunca tanto como amo os que lá deixei, ninguém me perguntou se queria esta guerra, e se queria vir, e mesmo que tivessem perguntado teria dito que sim, porque nunca tinha estado em guerra nenhuma, considerava-me valente e por isso viria com confiança, peito cheio e um sorriso na cara, como aliás, acabei por vir. Mas agora que aqui estou à já 11 meses, daria tudo para voltar a casa, voltar para o junto da minha família, ou o que restar dela, com o que resta ainda de mim, e para junto dela.

Só não deserto porque não sei como suportaria se fosse capturado pelos meus próprios camaradas em plena fuga, ser preso por tentar fugir enquanto eles lutam, e dão a vida que têm pelo nosso país, pelos nossos, pela minha família e por mim, a decepção do olhar deles pousada em mim, o desprezo, e até mesmo a repulsa, seriam de uma crueza indizivél. Mas mesmo isso eu conseguiria suportar, suportaria tamanha decepção sobre mim, suportaria que cuspissem em mim, e me tomassem por um cobarde egoísta que quer é saber dele, e tudo isso suportaria apenas por causa deles, dos meus pais, do meu irmão mais novo, que tem em mim um modelo, e por causa dela, a todos eles jurei em lágrimas regressar, e a minha mãe, entre risos forçados, lá foi dizendo que voltar dentro de um caixão não contava. E ainda mais indizivel que qualquer olhar, é dizer quanto os amo a todos eles, e o quanto me custa ver-me a morrer aqui todos os dias. E assim só não deserto, só não fujo, e dou mais um passo no sentido de quebrar a promessa que lhes fiz, porque se por acaso conseguisse fazer os mais de mil quilómetros que me separam de casa, sem ser apanhado pelos meus outrora camaradas ou por uma qualquer emboscada. E uma vez chegado à minha pequena cidade me conseguisse esconder até tudo isto acabar, nunca conseguirira viver carregando o peso dos meus camaradas mortos e destruidos depois de eu ter desertado, e eles terem permanecido com talvez ainda menos vontade que eu de lá ficar, e promessas ainda mais fortes aos seus.

E claro que poderíamos todos desertar, e ir para junto das nossas famílias, e para evitar um massacre, os nossos inimigos, ou os homens do outro lado das trincheiras, poderiam desertar também, e todos viveríamos, sem mais mortes nestas estúpidas areias áridas, mas isso seria um milagre, e a primeira coisa que se aprende quando aqui se chega, é que na guerra, não há milagres. Assim, nunca poderei desertar, que por mais injusta e absurda que a guerra seja, eles, e os outros também não escolheram estar aqui. ”

O Desertor

“ Vou fugir, vou fugir com o que ainda resta de mim, falarão de mim como um traidor, e mais que isso, com tristeza e rancor quando souberem que fugi, alívio, se for apanhado. E talvez muitos sintam verdadeira pena e tristeza, por certo, pelo menos alguns sentirão, se for morto, mas se souberem que escapei ileso à longa tormenta que me aguarda, aí, uns mais, outros menos, todos sentirão inveja. E claro que nada disso me agrada, mas, mas sou egoísta, eu quero desesperadamente viver, devia amar os meus camaradas, os meus amigos, e que aqui são como irmãos, a ponto de dar a vida por cada a um deles no momento em que tal me fosse exigido, porque a vida de quem segue com uma arma ao meu aldo, ainda mais desidratado, exausto, sujo e farrapo humano que eu mesmo, vale exactamente o mesmo que a minha, quase nada, mas mesmo assim indizivelmente mais do que a vida dos que para aqui nos enviaram, e assim, ao sentir que não daria de bom grado a vida por cada um deles, ou mesmo pela vã esperança de os tentar salvar de uma morte certa, sou já um traidor, não aos olhos deles, como serei quando souberem que fugi, mas aos meus, já neste instante.

Podia dizer heroicamente que fujo para não ter que matar mais seres humanos, tão jovens, e muitos ainda com esperança na vida, a que deste lado chamamos de inimigos e recebemos com granadas e chumbo, mas qualquer um que passou pelo que eu já aqui passei, saberia que mentia. A compaixão, o amor, e mesmo a lealdade para com o inimigo não moram aqui, essas morreram, assim como morreram, os mais eloquentes filósofos, e mais débeis soldados, que aqui chegaram, o que aqui se vive é absurdo, e impossível de dizer concretamente, não há palavras que digam o que nós, todos nós, conseguimos nestas circunstâncias, infligir uns aos outros, por vontade. Assim como paradoxal é conseguir explicar porque vou fugir na próxima madrugada, faço-o por eles, e por ela, explico-o, ou tento pelo menos, para mim próprio, tenho que o fazer, porque aos meus próprios olhos sou um traidor.

Prometi-lhes que voltava, bem, isso todos prometemos antes de vir, teria sido impossível vir se não prometêssemos, e se por pelo menos por um momento, não acreditássemos também, mas não são as promessas que me fazem precisar de continuar a pelo menos respirar, porque não são as promessas que nos impedem de morrer. O que me fará desertar na próxima madrugada, e tentar sozinho atravessar mil quilómetros de terreno cuspido pelo diabo, é o que já tive, e tenho medo de não voltar a ter, e para isso quer voltasse dentro de um caixão, quer profundamente estropiado, seria igual, um caixão enterra-se, e um profundo estropiado não mais poderá ser atingido pela mesma profundidade do amor que recordo, e são sobretudo duas, as coisas que agora recordo. O olhar que os meus pais poisavam em mim sempre, como se, eu apesar de ser um miúdo normal que não tinha grandes notas na escola, e não era também especialmente bonito ou filho exemplar, fosse o ser mais especial do universo, e com um destino radioso à minha frente, fazendo assim com que acreditasse que todos os sacrifícios que faziam por mim, de sorrirem, quando lhes apetecia chorar, de serem pequenos quando também eles sonharam ser grandes, valiam a pena, fizeram com que fosse amado sem saber o que era o amor. A outra é o amor de uma mulher, o amor dela, a nossa pele queimou emaranhada ao Sol, e o Sol soube, sujeitou-se à chuva e ao gelo, e a chuva e o gelo souberam, tudo isto na mesma amena noite, no mesmo tumultuoso ardor, porque a carne é soberana dos elementos, e apenas ao amor aceita como senhor.

Não posso contudo dizer que fujo da guerra, porque toda a vida é uma guerra em que todos sofrem, e sofrem muito, que ninguém vive sem sofrer, ou a sofrer pouco, mas em que felizmente as leis humanas, censuram quem atenta contra o direito à vida. Fujo desta guerra, espectáculo de sangue comunitário, para que me enviaram e para a qual vim junto com os meus camaradas com um estúpido sorriso, porque pensávamos que íamos deixar de ser miúdos para nos tornarmos em verdadeiros homens, mas este abafado horror com o cheiro apodrecido dos restos de corpos ainda espalhados, junto com o medo de sermos os próximos a morrer e a ânsia de sermos os próximos a matar alguém, mais não fez do que tirar-nos aos poucos o que realmente tínhamos de homens, de humano. Isso, junto com a revolta de estar aqui neste jogo em que se morre a sério, em que todo o corpo treme e em que o chumbo e os estilhaços nos rasgam a nossa carne, a mando de alguém, ou de alguns, que com promessas de medalhas e de uma profunda honra que me cobriria, me enviaram para aqui, para matar, e escorraçar outros, a quem alguém, ou alguns, também para aqui os mandaram, sem que nenhum desses “semideuses” saiba, ou sequer se tenha importado em saber, o quanto valiam as nossas vidas.

Tudo isto que é tão absurdo e louco, todos nós somos loucos mas não tanto nem tão irremediavelmente, custar-me-á na próxima madrugada mais um pouco de mim, perderei a lealdade para com os iguais a mim, que não podem fugir, não todos pelo menos, que neste indistinto ponto de não retorno, nunca podem fugir todos. Assim, mesmo que a sorte não se canse de me guiar a partir da próxima alvorada, eu terei traído a morte, e tão dependente a vida é da própria morte, que não mais continuarei a viver, vou existir com eles, e com ela, até que venha o esquecimento.”

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Outono

A velha descobriu que ainda estava viva no Outono, o Verão, como sempre, fora terrível, tudo sempre igual lá fora, os corpos sempre tão despidos, e por vezes bonitos, as almas essas, sempre tão escondidas.

Estava já num profundo desespero mumificante, quando por fim a vida começou a florescer. Começou com um pôr do Sol, sim, isso mesmo, um singelo e cíclico pôr do Sol, que pela primeira vez em tanto tempo, e aqui é de referir que, a velha, comportando-se como todos os velhos se comportam, dizia até que era a primeira vez que acontecia com tanta intensidade, impunha ao céu que o levava uma tonalidade arroxeada. Quer dizer, havia quem o olhasse e visse azul, outros viam, cor de rosa, e havia até quem jurasse que era cor de tijolo, era de qualquer cor, porque era de todas as cores, e era de todas as cores, porque lá laranja não era, e de tantas vezes ter sido laranja, de um belo e intenso laranja, ai quantos beijos deu a velha enquanto o laranja se punha no mar, o laranja deixou de ser cor.

Lentamente começaram a surgir os sobretudos e os guarda chuva, as terríveis molhas ocasionais, que nos gelam até aos ossos e nos fazem desejar chegar a casa, tomar um banho quente e embrulhar-mo-nos numa manta, ou então, embrulhar-mo-nos logo directamente numa manta. Claro que a velha já devia ter juízo e não sentir saudades destas molhas que sem umas cápsulas de vitamina C bem que podiam causar uma constipação. Chegaram aquelas misteriosas rajadas de vento que nos causam arrepios quando estamos na rua, e um estranho prazer quando estamos no aconchego dentro de uma qualquer casa, ou ainda, uma estranha nostalgia se estivermos sozinhos dentro dessa tal, qualquer casa. Religiosamente vieram também os assadores de castanhas na rua, agasalhados por roupas velhas e rotas, mas que magicamente parecem, ainda assim, quentes, com um ar sempre consternado, e envelhecido, julgo até que já nascem com pelo menos meia idade, e com as mãos e o próprio rosto, tão cheias de cinza, tão perto de serem a própria cinza, que nos lembro dolorosa, ou nostalgicamente, e aqui deveríamos poder escolher desejava a velha, aquilo para que todos caminhamos.

Foi assim que num dia de Outono, ontem mesmo, para tentar criar alguma nostalgia no caro leitor, a velha, agora felicíssima por ainda por aqui andar em mais um Outono, enquanto passeava, lentamente, que isto reumatismo, poupa a alma, mas corrói os ossos, por uma pequena floresta, em que as árvores travavam contra o vento e contra o tempo uma digna batalha por cada folha que surpreendentemente apresentava as mesmas cores de um pôr do Sol Outonal. Mas que apesar, de digna, iam perdendo implacavelmente uma por uma, roubando assim aos pobres dos pássaros mais um subtil refúgio da milionésima gota de chuva que, e falo só pelo dia de ontem, lhes acertaria em cheio na testa. Bem a verdade é que foi assim, que a velha voou, como não voava desde o Outono passado, e não voou nem para muito longe, nem para muito perto, mas voou, que isto os pássaros nascem na primavera, no verão ficam pelo ninho, mas é no Outono que apreendem a voar.

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quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Diálogo Idiota

-Hey ( hey?? Mas serei eu ainda mais parvo do que pareço, hey é como dois camionistas se cumprimentam um ao outro quando já não se viam à 15 dias, hey é o que um idiota diz quando não tem mais nada para dizer, e é idiota o suficiente para pensar que dizer hey é mais “cool” que dizer “olá”).

-Como? (como, como o quê?? Sei lá que queria eu dizer, nada, esqueci-me, queria é que me facilitasses a vida e não fizesses perguntas difíceis, será que não repares que já me estou a atrapalhar todo, até os joelhos já me tremem).

- Não, é que, é que..estamos à já tanto tempo a ter esta formação juntos e ainda não tínhamos trocado uma palavra. ( Há tanto tempo? Que desgraça fui eu dizer, a formação começou anteontem à tarde).

- Isso não é bem verdade, ainda ontem me disseste até amanhã. (Bem, pelo menos lembra-se disso, mas agora é que não tenho mesmo o que dizer, vai pensar, aliás já está certa que sou um palhaço).

- Sim, pois.. claro, mas isso são palavras que não contam, quando se diz algo como “até amanhã” o som sai sem ser pensado, e antes de chegar ao ouvido desejado, já quem o disse virou costas sem esperar qualquer resposta. (Mas que me deu agora para tentar romantismos fáceis com as palavras, agora de certeza que me toma por um autista romântico ou, pior, por um presunçoso desesperado).

-Queres dizer algo de concreto com isso? (Sim caro leitor, a nossa heroína era, isso mesmo, qual palavra proibida e fechada numa caixa de Pandora por uma sociedade de meias palavras, objectiva. Claro que o cobarde de serviço, mas não menos protagonista da história, perdeu neste exacto momento qualquer capacidade sináptica relevante, pelo que me será impossível a partir de agora continuar a transcrever os seus idiotas pensamentos).

- Quero, quero dizer que é impossível olhar-te e ainda assim dizer algo que faça sentido no final.

-Não arranjas uma forma mais objectiva de dizer que o que queres, mesmo agora, e aliás já desejaste ontem e anteontem, é ir para a cama comigo?

-Isso é uma certeza absoluta para ti?

-Agora é sim, ainda podia pôr em dúvida jogares em outro campeonato, ou mais grave que isso, não me achares piada, mas depois de ver como tremias à uns instantes atrás, e aliás, ainda tremes um pouco, sim, agora é uma certeza absoluta.

-Bem, admitindo então que tal fosse verdade, isso implica que a nossa conversa fique por aqui? ( Aqui tenho que dizer, que apesar da capacidade sináptica do nosso cobarde se ter ido à muito, neste instante passou-lhe pelo pensamento uma ténue visão de sexo fácil, intenso e a curto prazo com ela, tendo até imaginando, além claro, do acto, os longos, e agora soltos, cabelos cor de fogo dela, a mancharem de cor uns quaisquer lençóis claros, e a taparem, parcialmente, e apenas com finos fios, os seus peitos nus).

- Não, quer dizer, apenas se tu assim quiseres que seja. Nós, tu, eu, todos nós, somos bárbaros animais com uns anos de vivência numa sociedade que nos maquilha, mas apenas isso, maquilha, pode mudar o que fazemos, como fazemos, e até aquilo que conseguimos, mas nunca o que intimamente sentimos e desejamos, um homem, e não falemos agora de excepções, quando vê uma mulher que define como atraente, a primeira coisa que pensa, não é em palavras bonitas ou em oferecer-lhe um jantar, mas sim, em sexo. Bem como uma mulher, quando se cruza com um homem que lhe desperta minimamente a atenção, o que logo faz, ainda que inconscientemente talvez, é averiguar se ele representa a melhor opção, dentro do leque de escolhas de que dispõem. É isto que nós somos, primatas camuflados por palavras bonitas e ramos de flores, por isso, e sim eu tenho a secreta convicção e arrogância que sou um ser um pouco superior à maioria que faz a multidão, podes dizer-me o que realmente pensas, que tal não irá antecipar ou adiar a hipotética hipótese de irmos para a cama um dia, pelo menos, farei um sincero esforço para que assim seja.

- Não sei se alguma vez vou sentir algo de sério por ti, certo é que de desejo apenas, ninguém vive, mas sobrevive-se, e até se ri um pouco e lá vai dando para procriar.Tomamos um café amanhã? (Neste momento a nossa heroína, com os olhos um pouco emocionados e até molhados, não muito, que recorde-se ela era objectiva, sussurrou ao ouvido do cobardolas “sim mas, eu quero viver”).

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O assassino

“A vida é uma tragédia quando vista de perto e uma comédia quando vista de longe”

Segurava com suavidade entre os dedos bem cuidados e bastante peludos, um copo do melhor vinho, ia-o bebendo sem pressas, degustando cada novo aroma a chocolate preto e frutos silvestres, permitindo ao álcool percorrer-lhe as entranhas, enquanto fumava um delicioso charuto e as rugas ainda viçosas que tinha em redor dos lábios, se vincavam e afundavam na pele, de cada vez que puxava o fumo para dentro de si. O calor que fazia naquela sala, juntamente com as circunstâncias, tornava-se insuportável, pelo que acabou por desabotoar o botão da camisa que lhe comprimia dolorosamente o pescoço, e soltar um pouco a gravata, acabando ainda por desabotoar também o último botão da camisa que lhe comprimia o abdómen protuberante, demasiado cheio pela refeição farta de há pouco. Em que se deliciara com carnes tenras, e novas que sabia terem testemunhado apenas crueldade, que tinham sido chicoteadas, pontapeadas, obrigadas a comer quase até rebentarem, até atrofiarem até não se mexerem, e até mesmo paradas entrarem no espaço das outras, de tanto crescerem, em tão pouco e nojento espaço. Tudo isso dava-lhe um certo sentimento de “topo da cadeia alimentar” que sempre lhe agradara bastante, arrotou baixinho.

Depois de subir num luxuoso elevador de chão de granito preto até ao segundo piso, fornicava agora uma qualquer loira, nova, muito nova, duvido que tivesse 18 anos, era bonita, não de uma beleza atroz, nem sequer bela tão pouco, não poderia sê-lo, não assim. Mas era tenra, firme, e bem esculpida, e sorria para ele, enquanto ele entrava nela, e o seu abdómen, proeminente e peludo, lhe raspava nas virilhas impecavelmente brancas, e ele, sabendo que ela fingia o sorriso, e fingia o prazer, tentava entrar com mais força, com violência, apenas para provocar dor, e buscar em tal dor o seu maior prazer, e notando que não chegava, que ela, estúpida, continuava a sorrir para ele, fingindo gostar, ou seja, sendo-lhe quase indiferente. Nesse momento apertava-lhe com a força de uma tenaz, a fina e imaculada pele que lhe rodeava a boca e os dentes, pressionando cada vez mais, enquanto ela recusava em queixar-se e parecia continuar impávida, e quando finalmente ela se queixava, implorava que ele parasse com aquilo, quando começavam a surgir manchas de sangue pisado por debaixo dos dedos dele que a amassavam, ele tirava mais duas ou três notas da carteira, e colocava-as lentamente, ao lado da cabeça dela, por cima da mesa onde a domava, e continuava a fazer o mesmo. Já sem a penetrar tão pouco, já exausto, gotas do seu suor arfante de suíno caíam por todo o corpo bonito dela, e até as suas faces teimavam em notar-se rosadas, apesar de a pele da cara, de barba impecavelmente feita, começar a ficar gasta e inexpressiva, apesar de tudo isso continuava, enquanto via as manchas de sangue pisado alastrarem por debaixo dos seus dedos ganhando uma tez cada vez mais arroxeada e definitiva, para que depois do sexo, depois de ele se ir, ela não o desprezasse, não o esquecesse, não fosse tomar um banho e ficasse tudo bem, mas para que ela o temesse, e preferencialmente até odiasse.

Seguiu directo para o seu jacto particular, para uma curta viajem até ao aeródromo já perto de sua casa, nestas tranquilas viagens, em que aproveitava sempre para consultar um resumo da principal actividade bolsista do dia, o que mais lhe agradava era o sentimento de plena convicção de que estava a gastar em farta abundância um dos vastos recursos naturais que irão fazer falta uma tremenda falta às tristes gerações que aí vêm, e de poluir ainda um pouco mais o planeta, apenas um pouco mais, mas imaginava deleitado, que se todos pensassem assim, e ele sentia secretamente que pensavam, os próximos a nascer nunca iriam poder respirar um ar sinceramente puro, ou mergulhar em águas límpidas e imaculadas como as que agora ainda lutam por resistir, e iriam por isso invejá-lo, desejar ser ele, e em outros dias até mesmo odiá-lo como a loira, nessa altura já velha e podre, o iria continuar secretamente a odiar, e por isso a passagem dele pelo Mundo não seria nunca indiferente, ou até mesmo passageira, e apesar de constantemente a tossir e a cuspir lagosta, por pôr demasiado na boca de cada vez, contemplava agora as estrelas de um céu estrelado, das quais estava agora 5 km mais perto do que todos os outros que o odiavam e odiariam.

Finalmente começou-se a despir, para se ir deitar na sua enorme cama de lençóis de fina seda e colchão, ortopédico, com comandos electrónicos vários, modo de massagens, e ajustável à fisionomia de cada corpo, que todos os dias o fazia orgulhar-se das terríveis dores que sentia nas costas e da escoliose que começava a desenvolver por passar todo o dia sentado e debruçado sobre gráficos e tabelas, só por saber que tantos miseráveis, de preferência pretos orfãos, dormiam em palheiros cheios de carraças ou no chão frio e imundo. E há medida que tirava cada peça de roupa, contemplava-a, tocava-a com suavidade, quase que amando-a, ou amando-a mesmo, caso esta tivesse a firme convicção de esta ter custado o equivalente a pelo menos um ano de trabalho de um qualquer explorado e humilhado, de preferência criança. Como o quarto era também ele enorme, e se encontrava sozinho esta noite, tais divagações funcionavam para ele como uma qualquer canção de embalar, especialmente agora, que já enroscado nos lençóis de seda começou a chover violentamente, o que lhe permitia imaginar com um profundo realismo, aqueles que morriam de sede, de sede da mesma água que lhe escorria agora pelas condutas da casa para depois ir saciar ervas daninha. Mais um suave arroto, evidenciando um estômago ainda demasiado farto de comida por que milhões de outros rastejariam, apenas para provar, e adormeceu.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Meu querido mês de Agosto

Esta história não começa em Agosto, não acaba, mas nela há quem viva,

De um Portugal abandonado à escuridão da agora bem-amada, ditadura, “escapa” um dia o Manuel, era ainda novo, bom rapaz, lia com dificuldade, e sonhava ter dinheiro para um dia construir uma boa casa na aldeia, e, o seu sonho mais secreto, ser o primeiro a ter um carro lá na aldeia. Assim, despediu-se naquela manhã chuvosa de princípio de Inverno, em que as gotas de chuva apesar de gordas e efectivas, pareciam nem molhar, de tudo o que conhecia, de tudo o que era, um abraço forte à mãe, já viúva, e um beijo, sem grande chama, que toda a aldeia observava, a Olívia, a sua ainda mais nova noiva. E levando na mala apenas umas broas e uns rissóis caseiros e 2 tabletes de chocolate, partiu rumo à fortuna anunciada.

Não sabia uma única palavra de Francês quando chegou, desenrascava-se com uma linguagem gestual que roçava o primata, e nada conseguia comprar com os 2,5 escudos que tinha no bolso, acabou por já noite dentro da sua primeira noite em Paris, depois de 10 noites a dormir na rua ou em palheiros, conseguir uma pensão para passar a noite, tremia de frio, um frio que nunca conhecera em 21 anos de vida, não sentia as pontas dos dedos nus e arroxeados, mas ia ficar na pensão numa espécie de fiado. Disse orgulhosamente a sua primeira palavra em Françês, um Merci numa voz grossa e desajeitada em que o i era imperceptível, e subiu as escadas, gastas ora pelo uso, ora pela solidão, de par em par. O quarto era fraco, minúsculo e pobre, custa-me até acreditar que houvesse quartos tão tristes em Paris, as baratas pequenas faziam uma fila ordenada enquanto percorriam o chão, o colchão não tinha tão pouco dois dedos de espessura, mas Manuel sentia-se uma divindade, nunca tinha dormido num colchão, e estava agora a descobrir, na casa de banho do corredor da pensão, que das torneiras também sai água quente, enquanto tomava um demorado banho e uma contínua camada de escuro ia trocando o seu corpo franzino pelo branco amarelado da cabine, dir-se-ia, se agora fosse, que o pobre do rapaz tinha perdido dois tons de bronzeado.

Para trás, deixara a sua mãe, Dona Alberta, na mesma vida de sempre, entregue ao trabalho nas terras, a cuidar das galinhas e das cabras, ao rádio lá de casa, à televisão pequena do café, aos serões de maldizer, às rezas decoradas e à costura ocasional, à nostalgia envenenada pela inveja, e ao desejo. Às saudades que tinha de uma companhia que fosse do sangue dela, que resultasse do seu suor, respondia com a secreta certeza de que o filho ia voltar, e ia voltar inteiro, ao contrário dos filhos de duas vizinhas e amigas de serão, uma tinha perdido o filho na guerra, a outra tinha recebido de volta o filho estropiado.

Num final de tarde, em que, para esquecer as mãos cheias de ferida, algumas quase em sangue, e a pele que ardia de queimada, depois de um dia de trabalho ainda mais terrível que o de ontem, bebia uma cerveja numa taberna lá dos subúrbios, em que as cadeiras cheiravam a velho quando não a podre, o chão, fora em tempos à muito idos, claro, quase branco, e as telhas de zinco preto, algumas já rachadas e quase todas com as pontas partidas, absorviam e impunham a quem debaixo delas se sentava ainda mais calor do que aquele que se fazia sentir naquele dia estranhamente quente de principio de verão em Paris.

Quando uma francesa mais ou menos da sua idade, talvez 1 ou 2 anos mais nova, entrou com ar pedante e mais que pedante, poderoso, naquela taberna onde só estavam serventes de pedreiro e alguns os trabalhadores da vidreira, e pedindo também ela uma cerveja, fora sentar-se á beira do Manuel, que diga-se, era senão o mais bem-parecido, pelo menos o mais jovem dos que lá se encontravam e o único que ainda não tinha sequer um pronuncio daquela desprezível barriga que caracteriza tantos homens, e que qualquer mulher, ou pelo menos qualquer jovem mulher, define como nojenta. Trocaram algumas palavras, apesar do Francês de Manuel ser ainda demasiado arcaico para qualquer tentativa digna de articular 3 palavras seguidas, o momentâneo desejo de ambos por carne, a beleza, não estonteante ou especialmente inata, mas provocadora dela, bem como a motivação secreta dela para ter entrado num final de tarde daqueles numa taberna daquelas, rapidamente tornaram as palavras faladas dispensáveis, na verdade ainda só tinham falado o suficiente para descobrir que nenhum dos dois era mudo, o que poderia dar jeito daqui a pouco, quando subiram até ao minúsculo quarto de Manuel, que continuava ainda a morar naquela triste pensão.

Tiveram quase 2 horas ora de olhares e anseios, ora de preliminares, ora de sexo de cadência intermitente, incluindo sexo oral, algo que diga-se ele nem sabia que existia, nunca experimentaria nos futuros 45 anos de casamento com Olívia, mas tinha gostado bastante. No final, ambos nus e suados, estavam abraçados, no chão sujo e quente, ignorando as baratas que lhes passavam por cima dos dedos dos pés, que a cama teria sido demasiado pequena para tudo aquilo, quando ela, entrelaçando os seus dedos finos, nos dedos fortes e meio calejados, meio em ferida dele, lhe levantou o braço que a aninhava a ele e se levantou, sem palavras, sem esforço, se vestiu. E quando, depois de um último esgar se preparava para sair do quarto, ele, ainda nu e sem se levantar, perguntou-lhe o nome, ela sorrindo, e pela primeira vez corando um pouco disse, sem se virar completamente para ele que se chamava Sophie, e avançou determinada, contudo mantendo o ar pedante, para a porta, mas não sei antes ouvir um convicto “Mápélle Manuél”.

No dia seguinte, e também no a seguir a esse, Manuel pensou em de alguma forma procurá-la, repetir tudo aquilo, talvez até quem sabe romper o namoro com a Olívia, mas depois caía em si e ocorria-lhe que na aldeia nunca seria olhado da mesma forma se o fizesse, que era para ganhar dinheiro, tanto quanto conseguisse que ele lá estava naquela cidade maluca, e que além disso a Olívia chegava já para a semana, e ainda por cima a Sophie bebia cerveja, o que claro iria deixar de beber se estivesse com ele, mas já por si era indecente, e também lhe tinha desagradado que ela já não fosse virgem quando subiu com ele até ao quarto, pelo que acabou por desistir de pensar em procurá-la, apesar do desejo, de uma esperança que nem a ele próprio conseguia explicar, e de ela ter bem menos pelos que a Olívia.

Chegaram à aldeia no carro de frente comprida e conforto inexistente, branco por fora, e com uma napa preta muito fina que lutava para imitar o cabedal, que o Manuel tinha estreado já o Verão passado lá na aldeia, era a 4 vez em outros tantos anos que lá voltavam, e desta vez eram 3 que voltavam, ele, Olívia, e a sua pequena filha, Stephanie, a dona Alberta ostentava uma enorme felicidade, e não parava de sorrir por estes dias, embora tão imutável sorriso se devesse também à dentadura nova que Manuel lhe tinha oferecido, e que todas as vizinhas teriam agora que contemplar e invejar, e se possível comentarem até um pouco tal assunto umas com as outras.

Os dias da dona Alberta passavam agora numa azáfama, entre contemplar e agarrar a neta, fazer as refeições para todos, contar, nunca apenas uma vez, todas as novidades da aldeia, nunca apenas as objectivamente verdadeiras, tratar das matanças na capoeira, fazer 2 ou 3 passeios com o filho, a neta e a nora, até à cidade, outras tantas idas à praia, para a qual, a custo e depois de muita insistência do Manuel lá comprou um fato-de-banho, embora claro, algo XXL, que lhe cobria as pernas até à altura dos joelhos, enquanto o da Olívia ficava dois ou 3 dedos acima da altura dos joelhos ( ambos eram bem maiores que o vestido de Sophie naquele final de tarde, tal lembrança fê-lo primeiro sentir ardor, e depois, esboçar um sorriso vazio) , algo que, claro está, lá para meados de Setembro já seria trazido a tema de conversa com as vizinhas, e a ida e preparação da grande festa da Aldeia, na qual já não participava à 7 anos, pois só agora acabava o tempo de luto “digno” de uma esposa para com o seu marido.

No final do mês, despediu-se com abraços fortes, muitos beijos, e a sincera convicção de que tinha sido o melhor Agosto em muitos anos (apesar de notar que o filho estava a ficar meio marreco, algo que claro nunca comentaria com ninguém), quando ajudou a fechar o porta bagagens do carro, completamente cheio de coisas da aldeia, cheio da própria aldeia, e instantes depois começou a ouvir o motor a trabalhar, e o carro se começou a afastar lentamente, mas sem sinais de ir engatar a marcha atrás, deixando apenas pó a quem ficava para trás, ficou quase instantaneamente com os olhos em lágrimas, algumas lutando mesmo para correr rosto abaixo e se perderem nas já tantas e profundas rugas, mas fez um esforço monumental para as suster a todas, passar dissimuladamente a mão pelos olhos e acenar com o sorriso novo espetado no rosto para o carro que partia e que ela não tinha o direito de travar, não era mais a vida dela, essa ia entrar em estado vegetativo mais 11 meses em que tudo o que faria seria para que voltasse a nada faltar no próximo Agosto e na próxima bagageira do carro, afinal alguém tem que alimentar as galinhas e as cabras, e as couves não nascem do nada e as camisolas de malha não se fazem sozinhas, além de que aquela vizinha, sim essa mesmo, a mãe do estropiado, não parava de a mirar de longe, e não tinha o direito de a ver chorar.

Na verdade a vida de todos entrava em estado vegetativo durante 11 meses, as feridas nas mãos de Manuel só saravam em Agosto, e os calos nos dedos, e dores nos ombros e costas, essas ficavam sempre, Olívia, bem como Manuel trabalhava 6 dias por semana, trabalhava numa fábrica de latas de conserva, e fazia ora um turno e meio, ora 2 turnos de cada vez para conseguir ganhar mais uns francos, e mesmo assim chegava a casa quase sempre antes de Manuel, a tempo de ainda cozinhar para eles, sempre com as carnes mais baratas e, enquanto as houvesse, as batatas da aldeia, ao domingo não trabalhavam, mas raramente saíam de casa, tudo implicava gastar dinheiro, gastar francos, francos que eles tinham, tinham bastantes até, mas que queriam converter em escudos, para quando voltassem de vez para a aldeia de ambos, passavam meses a fio, fechados entre os trabalhos estupidificantes e aquele prédio velho, frio e quase podre, dos subúrbios de Paris, chegaram a passar anos, aliás a Olívia apenas passados 3 anos em Paris é que viu a Torre-Eiffel, e ainda agora não começara a fazer o buço, a vida de todos, menos a de Stephanie,

- Je t’aime,

- Pour toujours?,

- Non, je ne vivrai pas éternellement.

Stephanie tinha 18 anos, e era o 18 mês de Agosto em que regressava à aldeia, tinha-se despedido de Claude, anteotem ao final da tarde, e a verdade é que já queria voltar para junto dele, não por as saudades, ao fim de 1 dia e meio terem crescido tanto assim, mas porque este mês na aldeia adivinhava-se ainda mais insuportável que o do Verão passado, chegara esta manhã e já tinha ouvido 3 velhas coscuvilheiras, hipócritas e quase sanguinárias, uma das quais era a mãe do estropiado da guerra colonial a comentarem a pouca vergonha que eram a saia extremamente curta que usava hoje, o que, segundo as palavras das velhas “é para mostrar aos homens que os quer ser fornicada por todos este verão, e mais houvesse, mais marchavam”, ou julgavam que ela era surda como elas, ou queriam mesmo que ouvisse, para a tentarem domesticar, e enquanto isso dois jovens da aldeia, um dos quais também emigrante, olhavam-lhe para as pernas e para o rabo, ostentando uma pose e caretas faciais dignas dos melhores primatas, a eles não os ouvia, também não precisava, percebia através de infelizes e fugazes olhares trocados com aqueles marsupiais que se deleitavam a imaginar-se a agarrar-lhe as pernas com força enquanto a tratavam como um cão trata uma cadela, olhares que só podiam agradar quem não sabia merecer bem melhor. E diga-se que, nem as velhas, nem aqueles dois gorilas, sabiam, nem iam nunca saber, que aquela saia constava entre as mais compridas que tinha, e mais que isso, o tormento que foi para convencer os pais a usar roupas daquelas, valendo-lhe apenas o facto de que em Paris quase todas as jovens se vestiam assim, o que tocava principalmente na sensibilidade do Manuel, já bastava ele, e a Olívia serem todos os anos e durante 11 meses em cada ano, serem olhados como diferentes, e até mesmo como inferiores, e mais que isso sentirem-se menores e viverem numa pequena, isolada e desprezada “bolha” de um mundo que não pára, bastavam eles, passara toda a vida adulta por constantes provações, sacrifícios e humilhações, apenas disfarçadas em Agosto, e apenas pedia uma coisa em troca, a felicidade de Sthephanie.

Apesar de ainda nova, ela sabia-o bem, tão bem que por vezes, nos belos e primaveris finais de tarde em Paris, com os pés dentro da água fria, mas mesmo assim apetecível do Senna e os olhos postos no Mundo, ficava com os olhos humedecidos por lágrimas ao pensar no sacrifício que duas gerações perdidas e trágicas tinham feito por ela, a sua avó (que em toda a sua vida nunca saíra por uma vez que fosse do distrito), passava todo o ano a preparar Agosto, a desejar Agosto, a recordar Agostos passados, para evitar recordar as saudades do que nunca tivera, o marido, que para sua desgraça e vergonha morrera há já tantos anos, quando completamente bêbado caíra a um poço, batia-lhe sempre que bebia demais e tresandava a álcool, ou seja, todos os dias, uma vez, pouco depois do nascimento de Manuel, dera-lhe socos tão estúpidos e violentos na barriga que ela nunca mais pudera ter filhos de novo, e claro que ele culpava-a a ela por não poder ter mais filhos e dava-lhe ainda mais porrada, até mesmo na cara de feições outrora belas da agora Dona Alberta, e toda a aldeia sabia, nomeadamente as agora colegas de maldizer e amigas de serão, mas ninguém fazia nada, pelo que uma potencialmente bela, viajada, culta e até amada mulher, para sempre viveu encarcerada no corpo da Dona Alberta, tendo até acabado, não logo, mas agora, depois de tanto tempo de cárcere, por perder o desejo de ser amada por um homem, o desejo de sexo, pode até dizer-se que tudo isso apodreceu nela, claro que acabou por tornar-se numa coscuvilheira amargurada, invejosa e sempre triste, mas que mais pode uma mulher fazer quando a proíbem de viver, senão de alguma forma, sobreviver.

Os seus pais tinham-se tornado escravos em plena segunda metade do século XX, a diferença em relação aos séculos passados, é que agora os escravos tinham férias, chamavam-se Agosto, Manuel tornava-se cada dia mais marreco por causa do trabalho, quase na mesma proporção que Olívia se tornava mais gorda, as suas mãos outrora sempre em ferida estavam agora completamente calejadas e até deformadas, à já 3 anos que não entravam no centro de Paris, nunca tinham feito um passeio de barco pelo Senna ou comido um croissant com chocolate quente nas divinais confeitarias Parisienses, aliás a última vez que estiveram no centro de Paris foi para verem a filha actuar numa peça da escola, não faziam sexo à 8 anos, o descuido de Olívia com a aparência era catastrófico, pelo que pelo menos nisso o excesso de trabalho e cansaço de Manuel servia como um bom escape, aliás ela não tinha sexo à 8 anos, Manuel tinha ido à não muitos anos a uma prostituta em Paris, e assim, apesar de ter que pagar um extra, voltou finalmente a ter sexo oral, mas nunca mais lá voltou, porque tinha mesmo que poupar, os estudos de Stephanie estavam cada vez mais caros, e também tinham que poupar para um dia conseguirem acabar de construir a quase mansão que já tinham começado a construir lá na aldeia. E, entristeci-a mais ainda, porque isso fora uma atitude dela, todos os estratagemas que arranjara para que os seus pais não voltassem a assistir a uma peça lá na escola, depois da vergonha da última vez, nem conhecessem nunca os pais dos seus amigos da escola em que estivera, que este ano era o seu primeiro ano na faculdade. Nunca lhes contaria claro, para o bem deles, algo que ela tinha feito para tratar do bem dela.

Ela que ao final de 2 gerações de tragédias, aproveitava a fantástica capacidade de amar, passeara de mão dada ora pelas mais belas, ora pelas mais estreitas, ora por ambas ao mesmo tempo ruas de Paris, fizera amor em plenas águas do Senna depois de uma noite de Verão passada no único recanto de Paris de onde à noite se conseguem ver as estrelas, apreciar a melhor arte que se fizera, existia, e fazia em Paris, se esconder dos seguranças, junto com Claude, num dos centenas de quartos mágicos de Versalhes, de receber cartas de amor, e das escrever também, de estudar numa das melhores faculdades, frequentar os melhores clubes e tertúlias, e mesmo assim, ou e apenas assim amar loucamente. Por isso em Agosto fazia um esforço para aguentar a distância da vida, e um enorme esforço para que os seus pais e a avó não notassem que desprezava quase tudo naquela aldeia, assim, mesmo sem uma dentadura nova, parecia a avó, sempre de sorriso colado no rosto, devia-lhes isso, devia-lhes muito mais, nunca lhes pagaria tais sacrifícios, e por vezes temia isso, temia que um dia lhe pedissem mais do que ela queria, ou podia alguma vez dar.

Não imaginara nunca ela, que Manuel passaria de bom grado mais 10 vezes por toda uma vida de provações e humilhações, só para, como agora, sem ela saber, a contemplar, superior a ele, superior a todos os outros na aldeia.