Não ando escrevendo. Nem pouco, nem nada. Agora entendo que meu escrever constante de tempos passados pode ter sido, mais que mistérios do profundo da alma, coisa simples de mãos inquietas. Escrever também é a textura do papel e o jeito com que a tinta corre por ele. Deve correr fácil e abundante, deve manchar meus dedos, unhas até. Unhas, aliás, que sempre tive curtas. Porque cresciam lentas e frágeis, sim, mas também porque quando um pouco mais longas me atrapalhavam a sentir a pequenez das formigas de açúcar, perscrutar a geografia das pitangas. Muito com os dedos eu enxergava o mundo: fazia dormir as dormideiras, arrancava também as casquinhas da goiabeira minutos sem fim. Conversava com sulcos e saliências. O nariz de minha mãe, pequeno e delicado. O queixo redondo e as linhas do sorriso, um pouco mais profundas a cada ano. Entendi com os dedos que mamãe envelhecia, mais que com os olhos. Também assim entendi a turgidez de fruta de estação de meu corpo púbere. O espelho era uma confirmação plana, fotográfica. A verdade-matéria me turvava a vista, curvilínea e sumarenta.
O que quero
dizer é que não quero escrever. Ando exacerbadamente
sensorial, as palavras me esgotam, a linguística, a literatura. Me esgota o idioma estrangeiro, estoy agotada, je
suis fatiguée. Me
esgotam os pós-estruturalistas,
eu quero respirar fora do texto um pouco. Assim: fazendo pães.
Já fizeram pães vocês alguma
vez, senhores? Se não, devem fazê-lo. Mas façam-o com canto e dança, façam-o como se gerassem vida. Como se
gestassem, como se parissem. Espalmem as mãos sobre a massa morna do pão como se ela fosse as costas suaves de um recém-nascido. Alterne com sová-la com lascívia, afundando dedos queredores. Divida a massa, leve ao tabuleiro cada
porção para que descanse. Faça esse movimento com as mãos em concha, como se tivessem sete anos
de idade e carregassem um punhado de água do mar, ou um passarinho. Cada pão que se vai abrindo como flor é único em suas
reentrâncias e convexos.
Não tenho tempo para escrever, porque uso
muito dele olhando os pães no forno.
Os vinte e três minutos são exatos para o dourado perfeito, mas há que flagrar o instante preciso de
pequenos milagres: um vinco que se alarga, o lentíssimo movimento de um pãozinho se
expandido pra tocar o outro a seu lado. Alguns dias, exausta, durmo o sono
pesado dos que constróem casas o
dia inteiro. Entendo-os, entendo as bordadeiras, as catadoras de mangaba.
Contemplo a poesia intrincada do mundo, poesia material: os nós de macramé, pilha de tijolos, vento no trigal. As fileiras mesmas de pães, versos de perfume quente e penetrante.
Não tenho escrito, enfim. E não é falta ideias. São as múltiplas querências, as mãos
inquietas. Talvez seja um capricho de quem sempre passou muito tempo contemplando
e descifrando as próprias mãos. Talvez
seja apenas um escrever de outra maneira.
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Texto publicado na Cachoeiro Cult de dezembro/2012.