Uma mão cerrada com força.
O estômago que se encolhe à violência das palavras: és feio!
Que diferenciação atroz, como racismo. Eu que defendo minorias, as dos pobres mais que as dos ricos, em autodefesa. Atravesso a rua pejada de hedonistas, olham-me de soslaio, de través, como quem espreita pelo cortinado de uma janela. Sigo a pensar nos meus pobres e nos dos outros. Sei que aqueles que me miram procuram explicação para a minha normalidade obscena. O cartaz da modelo seminua olha-os a eles e deixa-me mais só, à distância de uma superprodução de Hollywood, retocada, maquilhada, subconscientemente perfumada: és gordo!
Enrubesce-me um pouco a face. Começa a doer-me o punho cerrado com força. A indiferença da jovem angélica de púbis apelativa descoberta: és velho!
Chego à praça, cada passo afasta de mim a turba de pavões. Dão um passo mais para a esquerda, outros um para a direita. Carrego agora a fealdade do carrasco. Ao desbravar com tamanha facilidade o carreiro por onde sigo, a minha mão fechada é agora um machado de guerra pronto a decepar um pescoço. Cresce-me a barba no rosto hirsuto, sou discriminado no café onde me sento sozinho na minha mesa feia suja e velha. Clientes resplandecentes levantam-se e afastam-se. Pressinto que já me viram, pela janela limpinha por detrás da cortina delicada.
Se soubesse que o café me ia dar aquela vontade de urinar tinha pedido uma água. Levanto-me em busca do esgoto. Agora a meu lado um par de sapatos reluzentes, afastados, a esconderem-se na estreiteza do espaço vazio das eventuais pingas trôpegas que não o consigam transpor. Resisto.
Depois, a água fria morde-me com força. Tento abrir a mão, mas não consigo. Olho na imagem em frente, ligeiramente à direita, o tom imaculado do menino rico. Mais abaixo o relógio dourado fere-me a vista: és pobre!
Não compreendo a força com que lhe desfaço o nariz inocente. Sinto um súbito cheiro a ferro e fica tudo vermelho. Não, é afinal encarnado e gratuito. Vejo no espelho o meu reflexo e o olhar perplexo em rima a condizer; vem-me à ideia que deveria estar a ficar tudo azul. O aroma férreo intensifica-se à medida que o chão encardido se tinge, de escarlate vivo e pegajoso. Tinha-me esquecido da faca pontiaguda que ali vejo espetada num olho. Já não consigo apalpá-la na algibeira, saltou sozinha antes do grito que me teria salvado. A lâmina reluzente que afinal me condena. Doem-me os nós dos dedos, feridos, que continuam a macerar a pele macia, em recortes marmóreos eivados de rosa e púrpura, agora transformada numa massa disforme e viscosa empapada com pedacinhos brilhantes de osso esbranquiçado, dentes talvez, e o som cavado da sucessiva sucção: és assassino!
Por instantes recordo-me dos ensinamentos que pediam que me portasse bem, sempre me portei bem. Quero ser honesto e incapaz de calar verdades, naqueles minutos que antecederam a minha luta contra a justeza. Impelido pelas forças sombrias do mundo quis ser bonito, magro, jovem, rico, desejado e bom, de verdade: és mentiroso!
Tudo recalquei naquele infeliz desconhecido que jaz desfeito a meus pés: és grotesco!
Mas o real ultraje que me consuma amanhã apagará para sempre qualquer imperfeição que subsista. Perfeito é o ultrajante, e só, e feio, e gordo, e pobre, e velho; e também eu, nas vezes em que me revolto contra a vida pelos meus próprios defeitos.
© CybeRider - 2011