31 de dezembro de 2019

Anuário 2019


12 de janeiro
Redes sociais

A facilidade com que as redes sociais abrem espaço à espontaneidade, à reação a quente, reduz a reflexão, a maturação das coisas, simplificando e caricaturando as ideias. E aumenta o potencial de contraste de atitudes. Ao dizer isto não estou a tomar partido contra ou a favor de nada. Estou simplesmente a constatar o que me parece ser uma evidência.


14 de janeiro
Segunda feira

Aos domingo, invariavelmente, faço listas de tarefas para a semana. Às segundas, acordo “de peito feito”, pronto a concretizar muitas dessas obrigações. Acabo quase sempre o dia a constatar que, afinal, quase tudo (embora não tudo) o que estava em atraso em atraso ficou, porque novas coisas surgiram. De uma coisa tenho a certeza: no próximo fim de semana tudo se passará da mesma forma. Se há um vício antigo é que nunca desistimos de nos enganar a nós mesmos. No que me toca, porém, há agora uma substancial diferença face ao passado: não me preocupo tanto, e dou conta de que vivo feliz assim. 


17 de janeiro
Condomínio

“Isso é um inferno!”, exclamou um amigo, com quem tive de apressar um telefonema, quando lhe disse que ia para uma reunião do meu condomínio. Afinal, tudo foi aprovado por unanimidade e foi reeleito, por discreta aclamação, o gestor que, desde há vários anos, tem ajudado a levar a bom porto a administração do prédio. O nome? A modéstia não me permite divulgá-lo...


21 de janeiro
Trump

Dois anos de Trump. Iniciei uma intervenção dizendo que a boa notícia era o facto de Trump não ter provocado nenhuma guerra (como há dois anos se temia) e a má notícia o facto de ele ter conseguido induzir uma inédita crise de confiança à escala global (como há dois anos se temia). 


24 de janeiro
Jornais 

Em Ferreira do Alentejo, deixou de haver jornais em papel à venda. Quantas ”Ferreiras do Alentejo” não existirão já por aí, cada vez mais? 


28 de janeiro
Amanhecer

... e dizia aquele meu amigo: “o amanhecer é uma coisa deliciosa, mas a hora a que o colocaram é que é péssima!“


18 de fevereiro
Política externa

É impossível isentar a política externa das crises e das conjunturas. Mas, se queremos que ela seja um instrumento coerente para a construção do poder nacional, devemos cuidar em preservá-la das emoções cíclicas e, em especial, da demagogia.


22 de fevereiro
Religião

Frei Bernardo Domingues morreu hoje. Vou sentir a falta das nossas conversas, sobre tudo e sobre nada, nas quais ele nunca procurou, nem por um instante, contrariar (nem sequer ironizar) o ateu que sempre fui. Aliás, pensando bem, creio que religião foi um tema sobre o qual nunca falámos.


26 de fevereiro
Mulheres

Quando andei pelo governo, e já lá vão quase duas décadas, dois dos quatro chefes de gabinete que tive foram mulheres. As presenças femininas no meu gabinete eram tantas que, num determinado período, constatou-se que, além de mim e de dois motoristas, o resto do pessoal, das técnicas ao pessoal administrativo, era todo feminino. Creio que nenhum membro do governo, em democracia, bateu este “record”. Ao ponto de uma dessas amigas se queixar, um dia: “Fazem falta homens nas nossas salas de trabalho...”


28 de fevereiro
Brexit

Percebo que a unidade dos “27”, conseguida em torno do “pacote” que foi negociado com os britânicos, e que Theresa May não consegue “vender” internamente, tem um valor inestimável. Mas lembraria esta coisa simples e que creio que muito óbvia: tudo aquilo que foi negociado tem um valor zero se não conseguir ser posto em prática. 


1 de março
Bruxelas

O mundo é bem pequeno e Bruxelas, no fundo, é, desde há muito, uma das minhas “casas” habituais de passagem (embora o nunca tenha sido de vida). Há minutos, estava eu a encher-me de livros, na magnífica “Filigranes”, quando ouvi, em bom português: “Com que então sempre interessado pela banda desenhada!”. Eu estava, de facto, a pensar como ia ter espaço para meter na mala o último “Blake & Mortimer” (já tinha comprado na Buchholz a tradução portuguesa, mas não resisti a adquirir o texto em francês deste “falso” Edgard P. Jacobs), quando este velho amigo português me surgiu ao encontro. Tivesse sido uns minutos antes, tinha-me apanhado a folhear um comprometedor Manara...

4 de março
Amigos perdidos

Há pouco, por uma qualquer razão, lembrei-me deles. Dos amigos que, entretanto, se foram. Não me refiro aos que morreram, mas aos que, com o tempo, se foram afastando, nos caminhos da vida. Não foram muitos, mas alguns eram mesmo dos “de toda a vida”, como algumas pessoas acham “bem” dizer. Em nenhuma dessa meia-dúzia de separações me pertenceu o gesto, tendo sido eles que tomaram a iniciativa de sair de cena. Às vezes, por razões que me pareceram fúteis, outros por um quid pro quo sem sentido, outros ainda por motivos que, à certa, nunca cheguei a perceber muito bem. Num ou outro caso, pela política, imaginem! Terei tido culpas “no cartório”? Quem sou eu para julgar as razões dos outros, quando, por vezes, nem as minhas consigo avaliar bem! Uma coisa já concluí: esta vida não é suficientemente longa para que tenhamos tempo para nos preocupar e ficar a matutar em tudo o que ela nos traga de menos agradável. O que lá vai lá vai! Resta olhar em frente, porque o caminho é por aí.


14 de março
Outro 25 de abril?

Com alguma frequência, ouve-se a alguém que está descontente ou indignado como o estado das coisas: “o que nós precisávamos era de outro 25 de abril!” Haverá maior elogio à efeméride?


20 de março
O “momento zero”

Foi um amigo que me chamou a atenção para isto. Voltou a acontecer-me hoje. Em todos os restaurantes, há, a certa altura, um “momento zero”. Trata-se de um vazio temporal, durante o qual os empregados se somem, talvez para fumar um cigarro ou para outras pausas mais básicas, em que o patrão se recolhe por instantes ao escritório, em que o pessoal do balcão, por qualquer razão misteriosa, se eclipsa. Não há ninguém na sala! Ou, se acaso resta alguém, estão recolhidos em espaços inacessíveis, sempre de costas voltadas ou, mesmo se de frente, assumem um olhar vítreo e distante, neutralizados por qualquer coisa que os torna inoperacionais para o que nos interessa. Ah! E então na altura dos cafés é uma tragédia: é quando geralmente acontecem os grandes “momentos zero”!


24 de março
Inocentes

Acho muito saudável que a direita portuguesa se reúna, se manifeste, crie partidos, jornais e tudo o que lhe der na real gana. Foi (também) para isso que se fez o 25 de Abril, uma Revolução sobre a qual há, pelo menos, uma imensa certeza: não foi a direita que a fez. Ninguém a pode acusar de estar “implicada” no golpe...


28 de março
Modelo Tancos

Ouvi, há dias, uma proposta criativa para uma solução portuguesa destinada à questão central do Brexit: a fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte. Seria o modelo Tancos: colocavam-se postos de vigilância, redes já esburacadas e, depois, ninguém via nada. Assim, haveria formalmente uma fronteira e ... não havia controlo nenhum!


2 de abril
Nélida

Nélida Piñon contou-nos hoje. Um dia, em Lisboa, apanhou um táxi, cujo motorista se revelou uma figura incomodativa e mal-educada. O seu comportamento agravou-se durante toda a viagem, roçando o insuportável. A escritora conteve-se até ao final. Depois de pagar a corrida, para imensa surpresa do homem, cujo primarismo não ia ao ponto de não entender o nível do seu próprio comportamento, ofertou-o com uma gorjeta de 10 euros. Mas acrescentou: “Estes 10 euros é para agradecer várias coisas: você não ser meu marido, não ser meu amigo, não ser meu conhecido e eu ter ficado com a certeza absoluta de que nunca mais o vou ver!”


4 de abril
China

A China é hoje um indiscutível gigante tecnológico, depois de anos de pateta caricatura como produtor de quinquilharias baratas. É um poder adversarial – político, económico, militar? Para os EUA, isso é uma evidência. A Europa, neste domínio, vive ainda um momento esquizofrénico: olha com apetite aquele que é o seu principal mercado, mas começa a acordar para o desafio estratégico que vê chegar.


25 de abril
45 anos

E se o "E depois do adeus", o Maia, o Carmo, o outro Marcelo, os tanques, a Grândola, as fardas, o Otelo, a Junta, o Spínola, o cravo, a Pide, o Zeca, a censura, o MFA, Caxias, o "povo unido", Peniche, o Cunhal, a tv a preto-e-branco e toda a parafernália de datas e de siglas pouco disserem aos que hoje passam "a salto" de Ryanair as fronteiras de Schengen, aos vidrados nos iPad, balanceantes dos iPod, logados nos iPhone, para quantos vão para hostels, sem saberem onde e o que foi Champigny, os bivaques da guerra colonial ou a triste sina nos paradeiros de exílio? 

14 de maio
Cerejas

“Já estamos no tempo das cerejas, sabia?”, disse-me a empregada do hotel, algures na Cova da Beira. E acrescentou: “Na minha terra, em Alpedrinha, elas amaduram mais cedo”. Gostei do orgulhoso “amaduram”, em lugar do “amadurecem”.  Não lhe perguntei se conhecia a canção de Montand e hino da Comuna de Paris, “Le temps des cerises”, porque, nos tempos que correm, já ninguém conhece o que eu conheço e, a cada dia, dou-me conta de que cada vez conheço menos coisas que quase todos conhecem. E também não ousei recordar-lhe que, como lá se diz no poema, “é bem curto o tempo das cerejas”. 


15 de maio
Agustina

Há uma década, no Brasil, fui jantar com Hélder Macedo, que estava de passagem. No final da noite, ao nos cruzarmos com Agustina Bessa Luís no hall de um hotel do Rio, o Hélder cumprimentou-a e, delicado, comentou: “A Agustina é uma pessoa fantástica: consegue não ter inimigos”. A escritora, divertida, retorquiu: “Não tenho, mas faço-os!” E deu uma bela gargalhada.


24 de maio
Cúmplices

Foi mais uma campanha eleitoral em que as televisões, em lugar de apresentarem verdadeiras reportagens, com planos reveladores da real dimensão das mobilizações, fizeram quase sempre o frete às candidaturas, filmando de molde a criar a ilusão de multidões. É muito triste, pouco profissional e não ajuda a separar o trigo do joio.


31 de maio
Dívidas

Num país em que um grande devedor à banca pública passeia impunemente a sua arrogância pelo parlamento, ter brigadas pelas estradas para cobrar pequenas dívidas fiscais transforma-se num ato de escandaloso autoritarismo.


5 de junho
Marcelo

Um dia, em Paris, com Marcelo presente, ao tempo comentador, Eduardo Lourenço disse que ele se assemelhava a alguém que, numa pequena localidade, estava numa janela, vendo passar as pessoas na rua e, sobre cada uma, se ia pronunciando. E acrescentou: “Às vezes, da varanda, ele vê passar, na rua, Marcelo Rebelo de Sousa e, claro, também o comenta...”


10 de junho
O ar do tempo

Há um país que se sente mal neste país. Há um país que acha que o país o não segue ou, quando acaso episodicamente o faz, nunca consegue pôr o país a seu jeito. Há um país com uma infindável raiva, que acha que o país o não compreende, que vive num mal-estar endémico, em “blues” eternos. Há um país que acha que tem uma ideia salvífica para o país, a mezinha mágica para pôr isto direito, mas que o país, pateta, não consegue nunca entender. Há um país sobranceiro, arrogante, feito de gente que, afinal, apenas gostava que o país fosse aquilo que eles acham que o país devia ser. E que, talvez não por acaso, não é.


13 de junho
Politicamente correto

Ou muito me engano ou já não deve tardar muito que os polícias do politicamente correto venham por aí lançar dúvidas sobre a legitimidade de se continuar a mostrar o Santo António com uma criança ao colo...


5 de julho
Maria do Céu Guerra

Parabéns, Céu! Com que então, “a actriz da Europa”?! Num tempo em que uma tristeza profunda ainda te marca os dias, como os teus amigos bem sabem, este reconhecimento internacional, mais do que prestar-te justiça, vai fazer-te bem. A verdade é que tu és tu, com ou sem prémios, tens o teatro dentro ti e é através dele que, em grande parte, te sentes a cumprir a vida, muito para benefício de quem te admira a arte. 


10 de julho
Competir

A felicidade faz-se hoje bastante da adesão aos sucessos que outros protagonizam, de quem nos assumimos próximos, coletivamente juntos na vitória, sempre com a derrota de outros como aparente contraponto indispensável. Para quem, como eu, tem a anti-competição como sólida e permanente doutrina de vida, confesso-me um tanto perdido neste ambiente. Mas será isto a alienação de que falava um clássico fora de moda? Talvez seja, mas esta comemoração das vitórias mais não é, para muitos, do que o complemento natural de existências simples, que seriam ainda menos relevantes se não se juntassem nessa onda gloriosa coletiva. É triste reconhecer isto, mas julgo que é a realidade.


13 de julho
Calado

Bolsonaro tirou um dente e foi aconselhado a manter-se três dias sem falar. Recordo-me de uma figura política portuguesa, bem conhecida mas já há muito desaparecida, de quem alguém, um dia, disse: “Se não abrisse a boca, passava por ser um estadista”. Não creio que, no caso do presidente brasileiro, o conselho pudesse ter qualquer efeito.


15 de julho
Racismo e preconceito

Feitas as contas, a publicação do artigo de Fátima Bonifácio acabou por ter alguma virtualidade: provocou o “outing” de um certo reacionarismo cavernícola, que logo acorreu a desculpabilizar a senhora e a colar-se-lhe à diatribe, com alguns, mais medrosos, com o expectável “não, mas”, não fosse alguém confundi-los com o outro lado da barricada. Que falta nos faz O’Neill!


17 de julho
Céus!

Hoje, recebo a bofetada que é a desaparição inesperada de mais um amigo. Cada vez tenho mais mortos amigos. A sorte é eu não ser religioso. É que, se o fosse, estaria agora a bradar aos céus.


18 de julho
Camões e coisas assim

Pela insistência, obsessiva e deslumbrada, com que não cessa de fazer referência a esse seu momento de efémera glória, fica a ideia de que o autor do discurso do último 10 de junho terá saído daquela cerimónia, em definitivo, aos ombros de si próprio.


20 de julho
Bonda

Parece que o próximo James Bond vai ser uma mulher, negra. Nada a objetar, com duas condições: que o Martini continue a ser “shaken, not stirred” e que o namorico como Moneypenny se não perca.


21 de julho
Estado meu

Quando se observa que o afã guloso pelos financiamentos públicos, nomeadamente os fundos europeus, surge frequentemente naqueles que mais diabolizam o Estado, fico a pensar se o lema dessa gente, afinal, não será: "Menos Estado, melhor Estado e o que sobrar que seja para nós..."


22 de julho
Europa

A Europa criadora de soluções é hoje vista por muitos como a Europa fautora dos seus problemas. Se a isso somarmos as notórias clivagens internas, nomeadamente na reação aos efeitos assimétricos das crises coletivas, os imponderáveis efeitos do Brexit e a orfandade geopolítica criada pelo afastamento afetivo dos EUA, conviremos que está criada um caldo de crise endémica que não augura nada de bom.


4 de agosto
Guantanamo

A indignação arrefece com o tempo: que será feito dos presos em Guantanamo, que por lá estão, sem julgamento, desde os tempos de George W. Bush, sem que as suas condições de detenção possam ser monitorizadas pelas organizações internacionais que se ocupam dos Direitos Humanos? Nem os tão incensados democratas americanos, Obama incluído, com eles se preocuparam...


5 de agosto
Diplomacia a sério

O ministro francês dos Negócios Estrangeiros qualificou como “emergência capilar” a decisão de Bolsonaro de cancelar, à última hora, o encontro que tinha com ele para ir cortar o cabelo. Uma grande diplomacia é também isto.


6 de agosto
Semi-frio

O ministro das Relações Exteriores do Brasil foi a Roma, em maio, e constatou que estava frio. Daí, concluiu que o aquecimento climático é uma balela. Já Trump tinha chegado à mesma conclusão, aquando dos nevões nos EUA. No passado, estas coisas só aconteciam nas anedotas.


7 de agosto
Livros, para que vos quero!

Ora essa! Claro que dobro as páginas dos meus livros! E sublinho-os e tomo notas neles a tinta, quando me dá na gana. E gosto de ver surgir os vincos nas lombadas, por ter encostado a capa à contracapa, enquanto os leio.  Ah! e não há ninguém que goste mais de livros do que eu, aposto!


15 de agosto
Contra o vento

Andar ao contrário dos outros pode ser estranhamente cómodo. Hoje, era um corrupio de gente para a praia, connosco a afastarmo-nos dela, dentro do ar condicionado. Entrava-se em Lisboa por uma ponte limpa de tráfego. Isso do nosso lado, claro: de Alcântara subiam para ela filas lentas e compactas, em direção às areias da Costa ou aos Algarves do costume. E a Lisboa que me interessa está hoje, deliciosamente, sem trânsito, sem gente, confirmando, se necessário fosse, ser o melhor lugar do mundo para se viver. Isso sente-se, em especial, nos dias em que se ruma contra o vento, mesmo que não haja vento...


19 de agosto
A greve

A greve dos transportadores de combustíveis acabou. Pelo menos, por agora. Quem é que, afinal, tinha razão? Não sei, tanto mais que não acho que um cidadão comum tenha de ter opinião sobre tudo o que mexe no país. Nesta crise, o que eu queria, muito simplesmente, é que a greve acabasse. Como ela acabou, estou satisfeito. Ponto.


29 de agosto
Real questão

Estranha-se muito que Isabel II ceda a todos os caprichos de Boris Johnson. É não perceber o essencial: a condição implícita para as monarquias contemporâneas poderem subsistir em regime democrático (leia-se, na Europa e no Japão) é a cedência aos eleitos de todo o poder de intervenção em matérias de Estado. Assim, nos dias de hoje, todos são ... “rainhas de Inglaterra”. Até a própria!


1 de setembro
Cardeal

Agrada-me que o país tenha um cardeal que já encontrei nas noites do “Procópio”.

2 de setembro
Spooooorting!

Ser sportinguista é ser portador eterno de um insondável mistério: que mal fizeram ao mundo os sportinguistas para merecerem sofrer, como sofrem, dia após dia, e, não obstante isso, viverem no singular paradoxo de terem imenso orgulho naquilo que são e nem lhes passar minimamente pela cabeça serem outra coisa diferente disso?


3 de setembro
Cabem todos?

Tenho uma imensa dificuldade em poder admitir que a religião católica, onde reconheço que há tanta gente de bem, que se apoia em princípios decentes e solidários (princípios em que fui educado e em que me reconheço, embora sem a menor matriz religiosa de suporte), aceite no seu seio, sem uma denúncia pública, sem uma estigmatização mínima perante os seus pares, algumas figuras que não passam de nódoas morais da sociedade. Mas dizem-me que é assim que os católicos vêm as coisas.


2 de outubro
França

A França parece apreciar ser representada por quem, ao mesmo tempo, goste genuína e quase chauvinisticamente dos franceses, lhes transpire orgulhosa e exageradamente as qualidades e, na medida do possível, os consiga fazer sentir menos culpados pelos seus defeitos. Chirac, que agora se foi, era exatamente isso. Não tenho a certeza de que Emmanuel Macron o seja.


16 de outubro
Trump

Trump é a cara descarada da vergonha perdida de uma América egoísta e autocentrada que, pelo menos com ele, está rapidamente a desperdiçar a autoridade moral que lhe assegurava a liderança de um mundo que, graças a ela no passado, pôde chamar-se a si próprio de livre.


23 de outubro
Maçonaria

Começo a não ter paciência para as teorias conspirativas sobre a Maçonaria, que agora por aí surgem com regularidade. Nunca fui tocado pelas "luzes" da subordinação espiritual ao "grande arquiteto universal". Mas creio que não é por ser mação que um cidadão é pior ou melhor que os outros. Bandidos ou pessoas de bem há-os por aí em todas as confissões, crenças ou "fezadas".


3 de novembro
Laforêt

Quando soube da morte de Marie Laforêt, pensei: “Lá se foi mais uma do meu tempo”. Não era, mas depois percebi por que razão tive esse reflexo: os olhos. Os olhos não têm idade, nunca envelhecem. E as mulheres com aqueles olhos são todas do meu tempo...


8 de novembro
Passado

Dou-me frequentemente conta de que tendemos a guardar na memória apenas o melhor do passado. Há talvez uma boa razão para isso: é que, no passado, o nosso futuro era melhor.


18 de novembro
Isto deve ser da idade...

Há cada vez mais coisas sobre as quais tenho dúvidas: sobre a atitude a tomar face à sem-abrigo que tentou matar o filho, a autorização ou não do traje da desportista muçulmana, se, afinal, o aeroporto deve ser ou não no Montijo, se se deve proibir ou não a exploração de lítio, etc. Quando vejo tanta gente com tantas e tão profundas certezas sobre tudo, dou comigo a pensar: isto deve ser da idade...


25 de novembro
25 de novembro

Compreendo quem saúda, no dia 25 de novembro, a criação de condições de estabilidade político-militar para que Portugal pudesse vir a ter um regime democrático. Não tenho o menor respeito político por quem usa o 25 de novembro para disfarçar a derrota histórica que teve no dia 25 de abril.


25 de dezembro
Desculpa sazonal

“Isto agora mete-se o Natal de maneira que já só em janeiro”

20 de dezembro de 2019

Nuno Brederode Santos

Intervenção no lançamento do livro “Crónicas”, de Nuno Brederode Santos

A última coisa que me podia passar pela cabeça, num momento como este, era vir aqui ler um texto. Mas como me foi dito que só tenho dez minutos, e na certeza de que, se falasse de improviso, nunca mais me calava, escrevi esta manhã o que vou dizer.

Um dia, eu tinha combinado com o Nuno passarmos pelo Procópio, antes da hora de jantar, porque lhe queria falar de um determinado assunto. Eu tinha, logo a seguir, um compromisso e ele iria comer qualquer coisa ao restaurante ao lado, à Mãe de Água, como muitas vezes fazia. Arrumámos o nosso assunto rapidamente, e ainda bem. É que, nesse entretanto, surgiu um tipo qualquer, que o Nuno conhecia e que abancou na Mesa Dois, tomando conta da conversa.

Viviam-se, por essa altura, no Procópio, os primeiros tempos do novo empregado, o Luís - e já perceberão por que é que refiro isto. Para quem não conhece bem as cronologia daquele templo de tertúlia, explico que o Procópio da Sedonalice Pinto Coelho tem três épocas distintas, em matéria de serviço às mesas.

Primeiro, a do Juvenal, claro. Depois houve um tempo intermédio de serviço mais errático, a que o Nuno chamava o “período Manpower” - que era então uma empresa de recrutamento temporário. Foram expoentes desse período o Bósnio e o Croata. Que eram portugueses, diga-se. Nunca soubémos os nomes verdadeiros desses empregados passantes, que o Nuno assim crismou, à luz de uma geografia política que estava muito em voga. Até que um dia chegou o Luis. Diga-se, aliás, em boa hora.

Na conversa que estávamos a ter na Mesa Dois, o Nuno disse, já não sei a que propósito, que o Luís tinha trabalhado antes no “Értilas”, um café de Campo de Ourique onde, nos tempos da sua juventude, parava muito. O tal tipo que era conhecido do Nuno referiu então que também fora muito ao Értilas, que se lembrava bem do Nuno por lá, de conversas que tinham tido nesses tempos passados.

Notei que o Nuno não deu muito troco. A certa altura, o tipo perguntou: “Ó Nuno! Értilas é um nome grego, não é?”. O Nuno recostou-se no banco e, em pose didática, confirmou que sim, que Értilas era, de facto, um deus da mitologia grega. Deu, aliás, alguns pormenores sobre as relações familiares de Értilas com outras figuras do baralho da mitologia. Eu, como não percebia patavina do assunto, a mitologia foi coisa que nunca me entusiasmou, fui ouvindo.

A certa altura, fez-se tarde. O homem zarpou, tinha uma urgência qualquer, e eu e o Nuno saímos com um pouco mais de vagar, ele para a Mãe de Água, eu para o carro que tinha ali perto. Pela escada abaixo, depois do chafariz, comentei: “Nunca tinha pensado no nome desse café de Campo de Ourique. Por que diabo é que alguém se lembrou de lhe dar o nome de um deus grego?”.

O Nuno parou, olhou para mim com um olhar trocista e disse: ”Pois não! Claro que nunca ouviste falar! É que a palavra Értilas é Salitre, lida ao contrário, não tem nada a ver com a mitologia grega”. E acrescentou: “... como aliás aquele tipo, que conheço vagamente, nunca teve nada a ver com o Értilas, não me recordo o ter visto por lá, é um mitómano. E para um mitómano, achei que nada melhor que uma lição de mitologia...”

Era assim o Nuno, para quem teve o privilégio de o conhecer. Pessoalmente, eu conheci-o tarde. Antes, era para mim um dos nomes da crise de 62. Depois, lembro-me de o ler na “Seara Nova”, onde me ficara na memória a sua “Carta a um tuaregue”, magnificamente escrita, mas tão críptica que eu, à época, nem sequer identifiquei a quem se dirigia. Aliás, a censura deve ter pensado o mesmo, razão por que a deixou publicar...

Depois do 25 de abril, e da histórica cisão dentro do MES, terreno político onde nunca falei com o Nuno, assisti, à distância, à sua migração, com uma pessoa que está aqui nesta mesa, bem como com outras que estão na assistência, para aquele andar no Flórida que ainda hoje é um mistério no mundo da papelaria: ali foi criado o único GIS que não se apaga nunca... Devo confessar que, para mim, à época, aquele grupo não era mais do que um “desvio de direita”, embora tendo gente que me era muito simpática e amiga, mas que eu acompanhava com a curiosidade crítica, e um pouco condescendente, que dedicava então aos reformistas incuráveis. Mal eu sabia que, anos mais tarde, todos acabaríamos no mesmo endereço do Rato.

Julgo que fui apresentado, pela primeira vez, ao Nuno, pela Margarida Figueiredo, já nos anos 80. Nos primeiros tempos, curiosamente, mantínhamos uma certa cerimónia entre nós. Um dia, cheguei à Mesa Dois, onde ele estava sentado sozinho (coisa rara!), disse qualquer coisa e o Nuno comentou: “Mas por que raio é que nós nos tratamos por você?” Tenho uma dificuldade imensa, quando começo a tratar alguém de uma certa forma, de mudar de registo, mas lá fiz um esforço e, no futuro, passámos a tratar-nos para sempre por tu.

Como disse, não sou um amigo antigo do Nuno, mas fiquei muito amigo dele. Numa noite do ano 2000 em que, por razões de doença de um familiar muito próximo, me fui abaixo, foi ao Nuno e a outro grande amigo que, a meu pedido, a Gina telefonou para virem a minha casa, apoiar-me. O Nuno era um amigo certo, daqueles cuja lealdade se tinha por adquirida.

Foi-o para mim, que era um conhecimento recente, como o foi para os seus amigos mais antigos, dos quais está aqui nesta mesa aquele por quem ele tinha uma dedicação para a qual só a palavra fraternal se adequa. Cansei-me, ao longo dos anos, de tentar explicar a muita gente que a relação entre o Nuno e o seu amigo Jorge Sampaio, comportando embora uma forte dimensão de solidariedade política, era de uma outra natureza, ia muito para além disso. Relevava de uma cumplicidade rara, assente numa forma comum de encarar o mundo e, essencialmente, de ser fiel a alguns princípios essenciais da vida. Só posso imaginar que deva ser muito reconfortante partilhar uma amizade tão intensa.

Mas, agora, como diria o Sérgio Godinho, “mudemos de assunto, sim?”. Porque hoje é um dia feliz. Estamos aqui por causa de um livro que a teimosia dedicada da Céu quis muito que fosse publicado, a que a Maria Emília emprestou o seu entusiasmo organizado, que outras pessoas ajudaram a concretizar. Estão aqui as crónicas do Nuno.

O Nuno já havia publicado, há muitos anos, o “Rumor Civil”, um livro com alguns dos seus textos. Às vezes, na feira do livro, compro três ou quatro exemplares do “Rumor Civil”, para oferecer a amigos. Alguns desses exemplares, cheios de sol, até já estão secos e “partem”, ao desfolhar-se. Mas não resisto, porque aquilo é uma preciosidade. E, quase sempre, acabo por não resistir a reler algumas dessas crónicas.

O volume que hoje é editado é muito mais completo. Abrange todas as crónicas publicadas no Expresso, entre 1974 a 2001, o último quarto do século passado, que nos mudou a todos. Ainda não o li, claro, mas posso imaginar o prazer que me vai dar reencontrar os textos do Nuno.

Digo reencontrar porque eu tenho quase a certeza de nunca ter perdido uma crónica de Nuno Brederode Santos, no Expresso. Mas não excluo que possa vir a ter surpresas. Faço parte de quantos, e estão por aqui alguns, se habituaram a esperar, com alguma ânsia, pela crónica do Nuno. Somos aqueles que, com algum orgulho geracional, nos podemos gabar de que fomos lendo esses textos à medida que iam sendo publicados. Os pobres mortais que não tiveram então esse privilégio - alguma vantagem há-de ter a idade! - vão ter agora a possibilidade de ler o Nuno, todo, de seguida. Far-lhes-á bom proveito, podem eles ter a certeza.

Ao longo desses anos, o Nuno foi realizando, com algumas pausas, em modelos de escrita por vezes diferentes, como que um filme bem animado da nossa vida política e social. Foi uma sequência de fotogramas geniais, num estilo que se tornou único, servido por um português invejável e invejado, onde ele usava como muito poucos vi fazerem, a ironia subtil com arma da crítica, para lembrar a expressão de um clássico.

Por ali se encontram “trouvailles” inesperadas, num léxico rico mas nunca pedante, na cultura que dali emanava - nos autores, nos livros, nos filmes, naquela memória que parecia não ter fim. Era sempre um olhar certeiro e muito fino, às vezes impiedoso, que deve ter causado imensos engulhos a alguns dos seus alvos. Principalmente a um, que me abstenho de referir.

As crónicas do Nuno foram uma espécie de novas “Farpas”, um verdadeiro novo “Álbum de Glórias” que caricaturou esses anos, um tratado de sociologia irónica de um certo Portugal. A escrita do Nuno ajudou muita gente a suportar tempos políticos adversos. Não raramente, eu e alguns amigos tinhamos o sentimento de que, com as suas crónicas, o Nuno nos vingava. Mas também por ali ficaram refletidas algumas das muitas alegrias políticas que, felizmente, pudemos viver - e o “culpado” por algumas delas está hoje aqui connosco.

Já esgotei os meus dez minutos. Mas ainda vou a tempo de dizer que espero que, depois deste que é o primeiro volume da obra completa do Nuno, não se esqueçam que ele escreveu um misterioso romance policial. Chama-se “Lama na boca” e estou certo que a sua edição poria o Simenon, a Christie ou esses modernaços nórdicos todos num canto!

Muito obrigado, Maria do Céu, por me teres dado o privilégio de poder participar nesta sessão. Gostava apenas de dizer-te uma coisa: o Nuno foi um homem com muita sorte, ao cruzar contigo a vida. É que poucos se podem gabar de terem tido Céu na terra!

2 de dezembro de 2019

Tratado de Lisboa - 10 anos depois

Começo por agradecer ao senhor ministro Augusto Santos Silva a amabilidade do seu convite para aqui estar, ao seu lado, nesta data que marca uma década desde a entrada em vigor do Tratado Reformador - era assim que se chamava originalmente o Tratado de Lisboa,

Devo confessar que fiquei um pouco surpreendido com este convite. Mas apenas por uma razão: é que nunca fui conhecido por ter uma grande simpatia pelo Tratado de Lisboa.

Em 2008, estava embaixador no Brasil, escrevi, numa revista de Relações Internacionais de S. Paulo, um artigo sobre o tema que estava longe de ser elogioso. Reproduzi esse texto mais tarde, sob o título “Um Tratado para outra Europa”, num livro que publiquei em 2009. Podem não acreditar, mas decidi não reler esse texto, para não ser influenciado pelos preconceitos que tinha à época.

Recordo, no entanto, que era uma análise política serena, muito centrada nas dúvidas sobre aspetos funcionais do Tratado, escrito com a disciplina que compete a um embaixador cujo governo se envolve empenhadamente num determinado projeto. Mas, em privado, devo dizer que chamava aos amigos portugueses que ajudaram a concluir o Tratado, “os tratantes de Lisboa”...

A verdade é que, com o tempo, fui melhorando a minha opinião sobre o Tratado de Lisboa. E mudei, desde logo, a ideia de que Portugal poderia ter feito diferente na gestão negocial do Tratado, em especial para colmatar os principais defeitos que eu então achava que ele tinha. Ora Portugal tinha herdado uma negociação que vinha das pesadas mãos da Alemanha, e isso conta muito, como todos sabemos. Além disso, já à época, tinha ficado para mim muito evidente que, sob a liderança política de José Sócrates - sei que não está na moda pronunciar este nome -, Portugal fez então um excelente trabalho, na sua Presidência, na fase final da conclusão do Tratado que viria a chamar-se de Lisboa. Aproveito também para relembrar aqui os nomes de outras pessoas envolvidas nesse trabalho: Luis Amado, Manuel Lobo Antunes, Alvaro Mendonça e Moura, Nuno Brito, entre outros.

Permitam-me regressar um pouco atrás no tempo, num brevíssimo bosquejo da atitude portuguesa perante a Europa. Sem isso, é difícil entender o porquê de certas posições. Eu tinha tido a responsabilidade de titular a representação portuguesa no grupo negocial dos tratados de Amesterdão e de Nice, neste último coordenando a parte técnica da CIG.

Ainda antes disso, tinha estado como substituto do professor Gonçalves Pereira, no “grupo de reflexão”, chamado “grupo Westendorp”, que, durante 1995, havia feito um inventário daquilo que eventualmente seria necessário mudar no Tratado de Maastricht, a fim de adaptar as estruturas comunitárias aos alargamentos que aí vinham e melhorar a eficácia funcional da máquina institucional.

Há nesta sala pessoas desse tempo e que se recordam, com certeza, que nesta casa se vivia alguma dessintonia entre uma tradicional perspetiva soberanista, muito ciosa da preservação da unanimidade e do poder de veto, com uma outra escola mais europeísta, aberta à ideia de que mais Europa, isto é, um projeto europeu mais aprofundado, significava um melhor terreno para a defesa não apenas dos nossos interesses, mas da própria eficácia de Europa - que também é, vale a pena lembrá-lo, um interesse nosso.

A negociação de Amesterdão e de Nice viria a ajudar muito o MNE a transitar da primeira posição para a segunda. E esta mudança tem uma cara e um nome: António Guterres. Foi António Guterres, com Jaime Gama, quem pilotou essa mudança, nos dois governos sucessivos que chefiou. Portugal passou então da sua tradicional atitude mais defensiva na Europa para uma posição muito mais pró-ativa, que não chegava ao ponto de ser federalista mas que era muito propensa, por exemplo, a aceitar bem uma questão que era vista, cada vez mais, como essencial para a funcionalidade da máquina decisória europeia: o aumento das matérias em que as votações se fariam por maioria qualificada, com o fim da unanimidade, com a consequente alargamento de poderes de co-decisão do Parlamento Europeu.

Devo confessar que, eu próprio, que estava muito marcado pela atitude soberanista, que estava muito na matriz desta casa, vim a interiorizar, numa evolução durante os mais de cinco anos em que fui secretário de Estados dos Assuntos Europeus, uma atitude mais europeísta do que aquela que originalmente tinha. Não tenho a menor dificuldade em assumir isto.

Amesterdão e Nice, como é sabido, foram tratados “tímidos”, naquilo em que conseguiram avançar. O espetro de Maastricht, dos referendos, da dificuldade das ratificações nacionais, esteve sempre presente, em especial na negociação do Tratado de Amesterdão. Eu recordaria que, em Maastricht, as instituições comunitárias haviam tocado aquilo que era o “core” da soberania dos Estados: a moeda, a política externa e de segurança, mesmo a justiça e assuntos internos.Terá sido isso que provocou o primeiro sobressalto em certas opiniões públicas. E o automatismo das reformas europeias nunca mais foi o mesmo depois de Maastricht.

Esse trauma esteve presente nas quase 350 horas que estivemos à mesa durante as negociações do Tratado de Amesterdão, um acordo que tinha já no horizonte o grande alargamento a Leste. Como se recordarão, esse tratado fechou e foi assinado deixando para trás os seus chamados “leftovers” ou “reliquats”: a dimensão da Comissão, a revisão do poder de voto de cada Estado, agregado ou não ao peso populacional, e uma maior dispensa da unanimidade em certas decisões, que se ligava à co-decisão com o Parlamento Europeu.

E porque havia uma pressão, insuportável, para resolver esses “restos”, abriu-se, algum tempo depois, a negociação do Tratado que haveria ser de Nice.E foi aí que os demónios se soltaram e a luta pelo poder de cada Estado, que estava um pouco disfarçada, se revelou em pleno. Deu-se conta de uma realidade muito clara: os países que tinham as rédeas das Comunidades desde a sua criação, e que tinham visto o seu poder relativo erodido com os sucessivos alargamentos, queriam garantir que, numa União muito mais alargada, com Estados de uma natureza diferente, não iam perder mais poder.Deixou de haver punhos de renda e Nice acabou por ser uma luta despudorada. Pela nossa parte, mostrámo-nos abertos aos principais avanços europeus, mas revelámo-nos indisponíveis para passar a ser irrelevantes no processo decisional futuro - em termos de votos no Conselho, de lugares no Parlamento europeu e no direito a nomear um comissário.

E tal como, depois de Amesterdão, tinham ficado os seus “leftovers”, dos turbulentos dias de Nice acabaria por sair a iniciativa de Laeken, desta vez a ideia de que era preciso dar um salto de aprofundamento, quiçá de sentido constitucionalizante - se a palavra existe. Daí viria a surgir a ideia da Convenção para o Futuro da Europa, pela constatação de que o modelo das Conferências Intergovernamentais tão conseguiam dar saltos suficientemente ousados para aquilo que alguns pretendiam. E foi da Convenção que nasceu o projeto de Tratado Constitucional. A França, que tinha conseguido impor Giscard d’Estaing à frente da Convenção, acabou por ser um dos primeiros países a dar cabo do trabalho desta, derrotando em referendo a ideia do Tratado Constitucional.

Que fazer?, então, como diria um clássico. A Europa bruxelense não se deixa derrotar com facilidade. Percebendo que não conseguia ter ambiente, a nível das opiniões públicas, para fazer aprovar essa espécie de Constituição Europeia, a máquina de Bruxelas fez um truque semântico: readequou o Tratado de Maastricht, que já tinha sido “remendado” em Amesterdão e Nice, e introduziu-lhe aquilo que considerava essencial no Tratado Constitucional, que tinha acabado de ser derrotado. Mudou palavras, reorganizou o texto e “vendeu-o” bem, sem necessidade de grandes legitimação popular, como se de um mera reformulação se tratasse. E não era. Foi a isso que se chamou Tratado Reformador e, depois, tratado de Lisboa.

Vale a pena dizer, com honestidade, que todos estes passos, que já vinham do Tratado de Roma e que passaram pelo importante Ato Único Europeu, um passo institucional a que muitos não deram a importância devida, representaram sempre, em maior ou menor grau, saltos qualitativos importantes, que foram melhorando a funcionalidade da máquina europeia, que trouxeram maior legitimidade e uma participação mais alargada à tomada de decisões, reforçando a democraticidade da União.

Mas, se assim é, por que diabo tinha eu dúvidas sobre o Tratado de Lisboa? Não vou aqui descrever o Tratado e os seus principais aspetos, que podem ser lidos na net, mas vou referir as minhas dúvidas e o seu porquê. Eram todas de natureza institucional. Na realidade, o Tratado de Lisboa trouxe muito pouco em matéria de novas competências, isto é, apenas mudou pontualmente o modo como certas competências da União eram exercidas. Porém, introduziu alterações sensíveis na estrutura institucional e na relação de poderes entre instituições.

A primeira grande dúvida que eu alimentava era sobre a ideia da criação da figura do Presidente do Conselho Europeu. A minha ideia era de que isso reforçaria a intergovernamentalidade, em detrimento do papel da Comissão, o que seria um importante retrocesso. Para mim, o presidente do Conselho Europeu iria acabar por ser uma espécie de “capataz” do diretório, em particular num processo decisório em que o fator populacional era reformulado.Além disso, os Estados membros de menor dimensão perdiam o destaque dado pelas presidências rotativas, que tinham sido sempre um fator de mobilização nacional para o projeto europeu.

Às vezes, nestas reflexões um pouco pessimistas que eu fazia sobre os perigos da intergovernamentalidade e o jogo grandes-pequenos na Europa, lembrava-me de uma frase que ouvira a António Guterres: “Não se preocupe. As coincidências de interesses entre os maiores países são sempre pontuais. Os seus interesses comuns nunca são suficientes para dispensarem a necessidade de alianças com alguns mais pequenos. E essa é a nossa força!”. Não sei se ele ainda pensa isto hoje, quando enfrenta os P5, nas Nações Unidas...

Mas, pela primeira vez, no Tratado de Lisboa, o Conselho Europeu era uma instituição, com orçamento e regras, poderes claros embora com preocupantes zonas cinzentas de intervenção. Eu podia perceber, contudo, as vantagens do fator continuidade, de um presidente a tempo inteiro, de haver um interlocutor permanente com entidades estrangeiras, de se evitar que a força da Europa pudesse ficar debilitada por figuras políticas menores ou em crise interna. Mas isso não me sossegava.

Uma outra questão neste domínio era a ausência dos MNE nas reuniões dos Conselhos Europeus, o que daria um poder desmesurado aos “sherpas” e aos gabinetes dos PM, que ficariam “à solta”. A autoridade externa dos MNE, na coerência da acção daquilo a que nós chamamos os ministérios sectoriais, ficava muito prejudicada.

Ligada com a questão do Presidente do Conselho Europeu, eu tinha a preocupação essencial de que pudesse vir a criar-se uma bicefalia competitiva com o Presidente da Comissão Europeia, fragilizando-o, bem como à própria Comissão. Nós tínhamo-nos batido pelo reforço dos poderes do Presidente da Comissão, que tinham vindo a aumentar, ao ter direito de distribuir pastas, de remodelar, até de demitir comissários. A Comissão Europeia fora, por muitos anos, o “bom da fita”, o nosso aliado preferencial. Os Estados mais frágeis não se importavam em conferir-lhe mais poderes. Mas descurámos um aspecto: com o Tratado de Lisboa, a Comissão, ao ganhar mais competências na União Económica e Monetária (UEM) iria mudar bastante a sua imagem pública, passando a ser vista como uma espécie de “ASAE do euro”. Se olharmos retrospetivamente para o modo como a imagem da Comissão Europeia evoluiu, parece-me evidente que a sua popularidade se esvaiu bastante com as novas competências. Entre nós, não tenho disso a menor dúvida!

Nas competências novas da Comissão havia igualmente um outro problema, em que o Tratado de Lisboa me não sossegava: as relações externas. Nós sabíamos que era um pouco incongruente a posição relativa do então “Senhor PESC” e do Comissário para as Relações Externas, a que se somavam ainda os MNEs nacionais nas presidências rotativas. Patten mais Solana - o modelo “Patana” - nem sempre funcionou bem, como sabemos. Mas o novo formato criado pelo Tratado de Lisboa tinha um pecado original, para os puristas institucionais: criava uma dupla tutela Conselho/Comissão, ofendendo a integridade de cada instituição. O Alto Representante era escolhido pelo Conselho Europeu, sendo igualmente vice-presidente da Comissão.Curiosamente, depois da experiência menos bem sucedida da baronesa Ashton, o tempo Mogherini viria a revelar-se bem mais positivo, mas continuo um pouco perplexo quanto ao futuro. Dito isto, não me parece que o Tratado de Lisboa tenha sido negativo nesta matéria das relações externas.

Estas eram as minhas principais preocupações. O tempo veio a fazer-me refletir mais sobre o Tratado de Lisboa e hoje olho-o de outra forma.

Para concluir, sobre aquilo que disse e sobre outros temas conexos, quero apenas deixar umas notas soltas, mesmo correndo o risco de estar a exceder um pouco o meu tempo:

· A emergência da crise internacional de 2008, com todas as suas decorrências, não ajudou a testar devidamente, num ambiente de “velocidade de cruzeiro”, as eventuais virtualidades do Tratado de Lisboa, na gestão do processo comunitário. Mas também não deixou a ideia de que o Tratado se constituísse, nesse contexto, como um problema.

· Numa Europa hoje condenada - eu diria mesmo, resignada - a ser tutelada por alguns escassos países, pode dizer-se, com alguma ironia, que o Tratado terá servido à perfeição esse objetivo. Sempre me pareceu, aliás, ser esse um dos seus propósitos.

· Num mundo em turbulência, com o principal aliado tradicional da Europa em rota de afastamento e mesmo de alguma hostilidade, com o espaço multilateral à escala global meio atordoado, em particular por essa razão, com o próprio quadro de relações externas da UE sem um sentido muito claro (Rússia, China, Médio Oriente), salvo na cada vez mais impecável “retórica declaratória”, acho que a ação externa da União acabou por revelar a coerência global que era possível.

· Depois de uma primeira fase de algum desnorte, o modelo unitário de representação externa criado pelo Tratado parece funcionar com aceitável eficácia. Mais dúvidas tenho quanto à operacionalidade e em especial ao prestígio futuro do SEAE, embora aí se tivesse confirmado o expectável, em termos da competição com algumas diplomacias europeias, que se sabia serem intraváveis na sua ambição de autonomia.

· A experiência desta década não parece dar ainda a certeza de que a bicefalia de representação Conselho/Comissão sobreviva para sempre sem grandes problemas. Um primeiro “ticket” mais cinzento, seguido por outro mais “colorido”, não foram ainda, a meu ver, uma amostragem suficiente para fixar doutrina nesta matéria. E temo que uma presidente da Comissão de um país muito forte e um Presidente do Conselho Europeu sem grande força política própria não ajudem, uma vez mais, a testar, com suficiente representatividade demonstrativa, a bondade do modelo.

· O modo como se processou a “marchandage” em torno da distribuição dos cargos europeus, há uns meses atrás, terá provado que o modelo do Tratado de Lisboa não trouxe, a esse nível, um suplemento de racionalidade ao funcionamento da União e apenas provou que “old habits die hard”.

· Ligado a isto, o fracasso do modelo do “spitzenkandidat” do Parlamento Europeu pode contribuir, no plano político, para enterrar a fórmula de governança interinstitucional partilhada que estava no espírito do Tratado de Lisboa. Estamos aqui perante um evidente falhanço, que pode ter consequências sérias.

· Finalmente, e embora correndo o risco de terminar com uma nota pessimista, gostava de dizer que me parece - mas espero bem estar enganado - que, nesta Europa que aí está, já não estamos todos no mesmo barco, muito em especial no terreno dos valores e de alguns princípios. 

· Mas a culpa não será do Tratado de Lisboa nem das suas instituições: é da falta de vontade política de alguns Estados membros, nomeadamente para “partirem a loiça” e “chamarem os bois pelos nomes”, Estados esses sem cujo empenhamento o projeto europeu, que naturalmente não desaparecerá, tenderá a fragilizar-se, a meu ver, cada vez mais. 

· Ah! E reparo nem sequer falei do Brexit!

Muito obrigado, mais uma vez, senhor ministro, pelo simpático convite e a todos pela vossa atenção.

(Intervenção apresentada no Palácio das Necessidades, no dia 2 de dezembro de 2019, data em que se comemorou uma década sobre a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a par de outra proferida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva)