22 de outubro de 2011

Eugénio Lisboa - o conselheiro cultural

Por décadas, li o nome de Eugénio Lisboa em textos críticos sobre literatura portuguesa que me iam passando à frente dos olhos. Como essa era uma “praia”, como agora se diz, que eu apenas tocava pela rama, tinha, acerca dele, alguma, mas não excessiva, curiosidade, apenas potenciada pela raridade do facto de se tratar de um “engenheiro”, qualidade que partilhava com o Jorge de Sena – mas isso num tempo em que os engenheiros ainda não assumiam a importância que, entre nós, viriam a ter…

A circunstância de ter raízes em Moçambique e de, mais tarde, ter andado por França e pela Suécia, situavam Eugénio Lisboa, no meu imaginário, na prateleira prestigiada dos expatriados da nossa cultura, essas figuras com cujas assinaturas eu tropeçava em livros e artigos e que, de quando em quando, entrevia em colóquios ou na televisão, saídos da sua habitual geografia. Mas eu nunca fui fã de José Régio (o Eugénio não me vai perdoar esta) e esse era o terreno de estimação do nosso crítico, pelo que não atentava, como seguramente deveria, ao que ele escrevia sobre o poeta – no “Colóquio Letras”, no JL e noutras folhas cultas e de culto.

Um dia, no início dos anos 90, ao ser colocado em Londres, tive oportunidade de pôr finalmente uma fotografia no nome do Eugénio Lisboa. E, simultaneamente, no de Rui Knopfli, com quem ele fazia um singular “par” de conselheiros da coisa escrita – o Lisboa, da cultura, o Knopfli, da imprensa – dentro da nossa Embaixada. Durante mais de quatro anos, convivi diariamente com ambos e, no meu saldo pessoal, julgo neles ter feito dois amigos. Era muito interessante observar a sua complementaridade, o sublinhar das comuns raízes moçambicanas, distintos no trabalhar de certas memórias, sobre figuras do passado frequentado e no modo de viver o presente de então. Porém, onde o Eugénio era uma formiga de trabalho, o Rui era uma cigarra, de cigarros seguidos e outros vícios, onde parecia assentar a alegria residual da sua vida e em que preparava, com uma certeza que íamos visualizando, o caminho apressado para a morte. Por mais de uma vez, fui aliado do Eugénio Lisboa – cuja óbvia ternura pelo Rui sempre mascarava – na tentativa de salvar o poeta de si próprio. E ambos sofríamos, cada um a seu modo, a inglória certeza, a prazo, desse esforço. 

Sou testemunha privilegiada de que, em Londres, Eugénio Lisboa desenvolveu um trabalho notável na promoção da nossa cultura. Para além de animar, frequentemente com a sua presença, muitas iniciativas, dedicava-se, com afinco, à edição de traduções de clássicos da nossa literatura, através da “Carcanet Press”. Com o Hélder Macedo e com Michael Collins, seus principais cúmplices em iniciativas a que, com pertinácia, se dedicava, o Eugénio procurou “furar” o complexo mundo do tecido cultural britânico, tendo, a seu lado na Embaixada, a ajuda entusiasta e atenta de Mercês Gibson. Olhando para trás, tenho consciência de que procurei ser útil, à medida do que me era possível, a esse labor, onde frequentemente nos deparávamos com boas vontades – como era o caso da Fundação Calouste Gulbenkian – mas, igualmente, com alguns egos de estimação, às vezes de natureza institucional, bem difíceis de contornar.

Foi pela mão do Eugénio Lisboa que vim a conhecer figuras como o jornalista António de Figueiredo, lendário representante de Humberto Delgado em Londres, o advogado Adrião Rodrigues, nome destacado dos “Democratas de Moçambique”, ou Alexandre Pinheiro Torres, um escritor cuja obra justificaria maior reconhecimento público. Em Londres, o Eugénio funcionava como uma espécie de “placa giratória” por onde passava muito do mundo cultural português, mas onde a África lusófona estava sempre presente.

Esse “carrefour” londrino nem sempre era tão pacífico como se poderia pensar – mas, com o tempo, habituei-me a perceber que o mundo cultural é um espaço onde, com alguma facilidade, as personalidades se chocam e as palavras podem desencadear grandes fogueiras. Recordo-me de uma polémica, que envolveu o Eugénio Lisboa e o José Saramago, a propósito de um almoço que eu havia oferecido ao escritor, com a presença do Hélder Macedo, da Paula Rego, do Bartolomeu Cid dos Santos, do Luís de Sousa Rebelo e do Rui Knopfli. O modo como Saramago relatou uma cena desse repasto, nos seus “Cadernos de Lanzarote”, criou uma fúria no Eugénio, que zurziu o escritor no JL. A diplomacia não exclui a indignação.  

Devo confessar que tenho alguma saudade das conversas que, aos fins de tarde, mantínhamos no meu gabinete, muitas vezes acompanhados pelo fumo e pela ironia do Rui Knopfli. Ouvia-os então cruzar memórias africanas, referências literárias, leituras pessoais de episódios comuns do passado, tudo envolvido na agudeza crítica que, quando inteligente, não faz mal a ninguém.

Homenagear o Eugénio Lisboa, como grande figura da cultura portuguesa – não esquecendo a imprescindível serenidade da Antonieta, a seu lado –, é um ato mínimo de justiça. E, para mim, é também uma oportunidade para lhe enviar um abraço de sólida amizade.

19 de outubro de 2011

"Cais das Necessidades" - Diário


27 de Agosto
Adeus, verão

O "Le Parisien" titula "On veut le soleil!". Lá fora, à parte umas nuvens, o gestor climático supremo parece fazer-lhe a vontade. Com a casa deserta e Paris em férias (“de Rodriguez”, como se diria em Espanha), nada melhor que assentar numa esplanada de brasserie, com os jornais da manhã à mistura. E com estacionamento quase em frente, felicidade terrena que vai acabar, com o regresso dos parisienses. A meio do repasto, uma leve chuvada. Corrida geral para o interior. Amansadas as iras celestiais, passeio pelas montras até uma livraria. No final da compra, a vendedora oferece-me um elegante saco de pano, cadeau do dia. Chegado à rua, cai uma bátega imensa. Afinal, é melhor recolher a penates, para acabar um Céline, agora que os tempos recomendam a revisita a alguns "malditos". No carro (afinal estava longe, caramba!), molhado como um pinto, olho para o saco-prenda. Escrito por fora: "L'été est là". Pois, pois - como os brasileiros acham que os portugueses dizem.


5 de Setembro
A mão visível

Tem imensa graça ouvir o canto dos reconvertidos próceres do novo federalismo. Depois de nos terem bombardeado, por décadas, com o paraíso da “mão invisível”, de terem entoado loas embevecidas às maravilhas do mercado, ei-los que chegam, novos e já velhos, a uma cada vez mais alargada comunhão na ideia de que se torna imperativo um salto político federal europeu para a sustentação do euro. Que grande ironia! Quem havia de dizer que seria a Europa financeira a "puxar" pela Europa política! Sejam muito bem-vindos ao Estado!


10 de Setembro
Vieille vague

Era uma senhora bonita, de sorriso radioso, com sessenta e tal anos. Fui-lhe apresentado hoje, no fim de um concerto, na baixa Normandia. Disse-lhe: "Lembro-me de si a passear de motocicleta, em Clermont-Ferrand". "Mas eu nunca vivi em Clermont-Ferrand!", respondeu-me, amável. "Pois não! Mas andou por lá, de motocicleta. Ou não?" Reação, alguns segundos depois: "Ah! no filme?!" e fez um largo sorriso: "Que simpático! Ainda se lembra?"

Era Marie-Christine Barrault. Em 1969, no seu primeiro filme, aos 25 anos, protagonizou momentos inesquecíveis do cinema da "Nouvelle Vague" francesa, no "Ma nuit chez Maud", com Jean-Louis Trintignant. Foi um prazer cruzar a memória com a vida, ainda que cinematograficamente virtual. E lá bebi, com Marie-Christine Barrault, uma cidra normanda, saudando, sem saudade, esses tempos em que ambos não éramos sexagenários. 


23 de Setembro
O novo bailinho

Não deve haver português com internet que, nestas últimas semanas, não tenha recebido uma anedota, um poster ou outra graça alusiva à Madeira e à respetiva gestão financeira. Às vezes pergunto-me como é que os estrangeiros olham para esta nossa propensão para aliviar as dores pelo humor. Uma coisa me parece bem clara: não convirá que a "troika" se convença de que, lá porque afivelamos um sorriso amarelo, andamos felizes.


25 de Setembro
Certezas

A conversa, à minha frente, entre dois amigos, ia animada, numa esplanada parisiense. Nesse final de tarde, tinha-lhes dado para a política portuguesa. Eu estava a ser um espetador algo distante do diálogo. Para imenso espanto deles (e, vá lá!, até de mim próprio), havia decidido não me imiscuir na conversa, enquanto falassem desse tema. Expliquei, simplesmente, que, como era fim de semana, tentava não me incomodar. 

Um dos amigos, que anda mais cético, dizia já não acreditar em nada. O outro, afirmativo, tinha certas coisas por adquiridas, de "fonte limpa". A certo passo, já nem sei bem a propósito de quê, disse: “Tenho a certeza absoluta!” Resposta pronta e indignada do outro: “Certezas absolutas?! Tu estás é doido! Hoje só há incertezas absolutas!” De facto.


29 de Setembro
Rosário

Estou certo que a Rosário teria gostado do momento que os seus familiares e amigos criaram, no Père Lachaise, na muito triste e emocionada despedida que hoje lhe fomos prestar. Com o Álvaro Vasconcelos, seu marido, a Rosário de Moraes Vaz foi a espinha dorsal do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais.

A Rosário era uma personalidade forte, frontal, com muitas ideias e com vastas razões para as afirmar. Muito culta, atenta às questões do mundo, iluminava as discussões e revelava a sua inteligência brilhante, num "tandem" sempre criativo com a serenidade profunda do Álvaro. Recordo, agora com saudade, a nossa última conversa, na sua casa, em Paris, ela com o seu inseparável cigarro e o seu entusiasmo transbordante. E, depois, o último dia em que brevemente falámos, no ano passado: ambos de muletas, fruto de acidentes, saídos de uma conferência sobre a Europa, na Gulbenkian de Paris. Ironizámos que estávamos ambos como o próprio projeto europeu...


3 de Outubro
O outro défice

Passo, às vezes, pelos blogues da política portuguesa, um espaço que se assemelha a uma guerra de trincheiras, onde os índios e os cow-boys se revezaram, há pouco. Com louváveis exceções, trata-se de um terreno virtual de guerrilha, às vezes muito pouco urbana, feita de uma imensidão de ressentimentos ou de vontade de "explorar o sucesso", de muito mau-perder e de muito mau ganhar. Velam-se espetros e incensam-se aparições, num mundo maniqueu, com os erros de uns a transformarem-se, patética e patetamente, no gozo dos outros. Esses uns agora esquecendo, como já antes essoutros esqueciam, que, no final da linha, há por aí um país e que, quando as coisas correm mal, correm mal para todos! Também isto faz parte do nosso défice.


6 de Outubro
Nobel

Confesso que nunca tinha ouvido falar do novo prémio Nobel da Literatura, hoje anunciado, o poeta sueco Tomas Tranströmer. O que, aliás, já me sucedeu, no passado, com alguns outros nomes galardoados com idêntico prémio. Fiquei a pensar se isso não seria uma imperdoável lacuna cultural da minha parte. E, pelo sim pelo não, durante um almoço de trabalho, perguntei ao meu colega sueco se os nomes de António Ramos Rosa ou de Herberto Hélder lhe diziam alguma coisa. Disse-me que não e sosseguei. Ótimo! Também ele não conhecia dois génios da poesia portuguesa. O meu descanso durou pouco, ao ouvi-lo dizer, logo de seguida, que, como poetas de Portugal, apenas conhecia Pessoa e Camões. Ora eu não recordava nenhum poeta sueco (lembrei-me, depois, mas só lá cheguei com ajuda do Google, do nome, mas não da poesia, de Pär Lagerkvist)! Aquietei finalmente o espírito com a reconfortante ideia de que, se isso acontece, é seguramente porque a nossa poesia é bem melhor do que a sueca. Deve ser isso! Pena é que a literatura não conte para o nosso PIB.


8 de Outubro
Sermão dominical

As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Em particular, acreditam no que lhes prolonga as ideias feitas, no que entendem como sendo "lógico" e no que lhes aparece como podendo desenhar-se como "óbvio". E se o que lhes é servido como verdade tem o condão cumulativo de adubar sentimentos pré-existentes, então o processo de convicção pode dar-se como adquirido. Essa é a glória do criador da crença, para quem o supremo objetivo é construí-la, dá-la como evidência e vê-la partilhada, difundida e aceite como "a verdade". Ingenuamente, pode argumentar-se que, para além da crença, haverá que ter em conta esse pormenor, quiçá marginal, que são os factos. E que, às vezes, os factos apontam, de forma cristalina, no sentido de infirmar, em absoluto, a crença entretanto estabelecida. Neste caso, "tant pis" para os factos. Se eles não acompanham o rumo da crença, esta dispensa-os, por irrelevantes e incómodos. É dos livros. Pirandello dizia que "a cada um a sua verdade". É verdade, cada um fica na sua. Apesar da verdade, na verdade, ser só uma. E, às vezes, a crença nada ter a ver com ela. Mas que importa? As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar.    


11 de Outubro
Mail diplomático

Com uma excitante irregularidade, todos (mas todos!) os funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros recebem, de tempos a tempos, num "block-mail" (que não discrimina quem está em Sidney de quem trabalha em Lisboa), mensagens, muitas vezes pessoais, sobre as mais variadas questões práticas. Já houve anúncios de falta de água ou de luz numa certa tarde, de óculos encontrados junto à casa de banho das Necessidades (decisivas informações, como se imagina, para quem está em serviço em Toronto ou Windhoek), até à abertura de cursos de francês em Lisboa (bem úteis, especialmente para quem está colocado em Paris e Bruxelas, apenas com a dificuldade dos horários dos aviões, para ir e vir no mesmo dia). Um dia, um guarda da Securitas deixou o serviço do MNE. Logo, carinhoso, escreveu-nos a todos, espalhados pelo mundo, para benefício dos administrativos da cidade do México ou de Tripoli, bem como dos embaixadores em Zagrebe, Montevideu ou Seoul - lembrando, com frases sentidas, as boas horas em que tinha tido à sua cuidadosa guarda a sede da nossa diplomacia. Calou fundo.

Alguns anúncios são verdadeiros ícones. E a sua falta ou atraso induz angústias, porque faz presumir que alguma coisa de grave se está a passar. Foi por isso, que, ontem, respirei de alívio ao receber uma circular relativa à disponibilização dos bilhetes para o circo de Natal. Uhf! Pensei que nunca mais chegava! 

(Publicado no nº 1071 (19.10.11 a 1.11.11) do "Jornal de Letras, Artes e Ideias")

17 de outubro de 2011

Homenagem à Fundação Calouste Gulbenkian

Permitam-me que comece por saudar o senhor ministro Nuno Crato, que temos o gosto de receber nesta sua casa pela primeira vez. Não vale a pena falar das dificuldades do lugar que exerce: outras pessoas aqi presentes, nomeadamente anteriores titulares da pasta que hoje ocupa, estariam bem mais qualificadas para o fazer. Apenas quero aproveitar esta ocasião para lhe desejar, com toda a sinceridade, as maiores felicidades para as tarefas que tem pela frente. É do sucesso da sua ação que vai depender muito do futuro do nosso país.

Hoje celebramos o primeiro dia do resto da vida da Fundação Gulbenkian em Paris. Foi por isso que fiz chegar à Fundação o meu desejo de associar a representação do Estado português em França a este dia, com a organização deste almoço.

Este poderia ser uma espécie de almoço de amigos, porque tenho o privilégio de contar com muitos bons amigos na Fundação Calouste Gulbenkian, na sua administração como em vários dos seus colaboradores, desde logo, a começar pelo seu presidente, Dr. Emílio Rui Vilar.

Mas esta é uma ocasião um pouco mais formal, em que, como Embaixador de Portugal em França, tenho a oportunidade de relevar o excelente trabalho que a Fundação leva a cabo, desde há muitos anos, neste país.

A Gulbenkian é uma outra embaixada nossa em Paris, é uma bandeira da cultura portuguesa em França e é um nome que consigo acarreta um grande prestígio para Portugal. Digo-o como embaixador, mas digo-o também como cidadão, pelo grande orgulho que sempre sinto ao notar o modo como a Fundação Gulbenkian se e nos prestigia, um pouco por todo o mundo.

Tenho pena de não ter aqui espaço, nesta ocasião, para poder homenagear, várias pessoas que, como diretores do Centro Cultural Gulbenkian em Paris, honraram a Fundação e nos honraram a todos. Algumas já desapareceram, outras estão, felizmente, entre nós. E não podendo fazê-lo a todos, permitam-me que o faça, em sua representação, na pessoa do seu atual diretor, o Dr. João Pedro Garcia.

Para além de um estimado amigo pessoal, o Dr. João Pedro Garcia foi para mim, ao longo destes quase três anos que levo de Paris, uma figura que soube estabelecer com a embaixada uma relação de extrema lealdade e colaboração. A vida dá muitas voltas, mas as voltas da vida não nos devem afastar do dever de ser gratos a quem se manteve solidário e colaborante conosco. Por isso, ao Dr. João Pedro Garcia, quero expressar o meu muito obrigado por tudo.

O senhor presidente vai-me permitir que tenha, nesta ocasião, uma palavra especial sobre a residência André de Gouveia. Falo dela hoje, porque o seu nascimento, explícita ou implicitamente, está ligado ao Centro Cultural, que hoje muda de endereço. A residência André de Gouveia, que hoje, na Cité Universitaire de Paris alguns já tratam apenas por RAG, mas que eu teimo em designar por Casa de Portugal, tem uma história e uma memória que nos deve orgulhar a todos. O seu destino evoluiu, entretanto, no plano administrativo, mas gostava de deixar claro – e o senhor presidente da Fundação sabe isto bem - que, pelo menos durante o tempo em que eu ainda vier a permanecer em Paris, manterei a firme determinação de tentar que ela conserve bem viva a sua matriz portuguesa. A colaboração que, por intermédio do Instituto Camões, tenho procurado assegurar à atividade cultural da Casa de Portugal, pode ser testemunhada pelos dois diretores com os quais, sucessivamente, tenho cooperado, o dr. Manuel Rei Vilar e a Dra. Ana Paixão. E ela vai continuar, sem falhas

Para além da administração da Fundação Gulbenkian e de alguns dos seus colaboradores, tenho hoje o grato prazer de ter aqui comigo alguns colegas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que saúdo, nesta ocasião

Começaria pelo chefe da carreira, o secretário-geral do MNE, o embaixador Vasco Valente, que, bem melhor do que eu, aqui representa a nossa “casa”. Se há colaboração entre instituições que julgo que tem funcionado de forma exemplar no nosso país – e os exemplos não são assim tantos como isso… - creio que essa é a ligação entre a Fundação Calouste Gulbenkian e a diplomacia portuguesa, pelo que é para mim um grande prazer que a presença do embaixador Vasco Valente a possa aqui simbolizar.

É também uma feliz coincidência que esteja hoje colocado em Paris o embaixador Luís Castro Mendes, como representante português junto da UNESCO, uma figura consagrada da nossa literatura, que acumula com a circunstância de ser um dos mais qualificados diplomatas da sua geração – que, por acaso, é também a minha. Num dia em que homenageamos a Fundação Gulbenkian, é-me grato ter a meu lado o embaixador Castro Mendes, alguém que muito dignifica a dimensão cultural da nossa diplomacia.

Deixei para o fim uma menção à presença do embaixador Leonardo Matias. Fiz isso de propósito, porque quero que as minhas últimas palavras sejam sobre os primeiros tempos. Para além de ser uma reconhecida grande personalidade da nossa história diplomática recente, a presença do embaixador Leonardo Matias dá-me o ensejo de evocar aqui um tempo importante desta bela aventura que é a Fundação Gulbenkian. É que foi graças ao seu pai, uma figura ilustre da diplomacia portuguesa, ao seu génio negocial e ao estatuto que soube ganhar, ao longo de anos, na sociedade política francesa, que foi possível concluir o difícil acordo que permitiu transferir, de França para Portugal, o espólio artístico com que se iniciou o museu Gulbenkian em Lisboa. É um grande gosto poder ter ocasião de homenagear, desta forma simples, mas com grande sinceridade na minha admiração, o diplomata ilustre que foi Marcello Mathias, também ele – convém lembrá-lo - um homem da cultura e da literatura.

Estou certo que todos desejamos que a nova Gulbenkian de La Tour Maubourg tenha um sucesso pelo menos tão grande como aquele que viveu durante tantos anos na avenue Iéna, de que eu, confesso, já tenho algumas saudades.

(Intervenção proferida no almoço de homenagem à Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 17.10.11)

16 de outubro de 2011

Carta ao diretor do "Correio da Manhã"*

O “Correio da Manhã” publicou, na passada semana, uma notícia relativa à admissão do Engº José Sócrates no Instituto de Estudos Políticos, na qual se afirmava que o embaixador de Portugal em França “mexeu e remexeu os cordelinhos para permitir a entrada do ex-chefe do governo na universidade”, após uma suposta “terceira recusa” à sua admissão. 

Isto não corresponde à verdade. Nunca me foi pedida, nem eu levei a cabo, qualquer diligência para facilitar o acesso do Engº José Sócrates ao Instituto de Estudos Políticos, nem nunca chegou ao meu conhecimento que tenha havido qualquer dificuldade na respetiva admissão naquela escola. 

No que me toca, e sobre este assunto, os factos são muito simples e não admito que sejam contestados. 

Em inícios de Julho, o antigo Primeiro-Ministro contactou o embaixador de Portugal, porque gostaria de obter uma informação sobre os cursos existentes em Paris, numa determinada área académica que estava a pensar frequentar. Como na altura veio publicado na imprensa portuguesa, foi-lhe proporcionado um contacto com dois professores universitários, que melhor o poderiam elucidar sobre o assunto. A intervenção do embaixador de Portugal neste processo começou e acabou ali. 

Só no final de Agosto, quando regressei a Paris, é que vim a saber que o Engº José Sócrates havia escolhido aquela escola e que nela fora admitido. 

* Publicado no "Correio da Manhã" em 16.10.11

4 de outubro de 2011

Os portugueses em França

Entrevista concedida à revista "Portugal Mag", nº 21, outubro de 2011

Que posição tem a França tomado, no que respeita à crise em que se encontra o nosso país ?
Como é sabido, a França tem estado, juntamente com a Alemanha, no centro das propostas de decisão que, ao nível europeu, têm vindo a ser sugeridas para tentar ultrapassar a presente crise – que, como se sabe, esta é uma crise à escala internacional, nomeadamente europeia, e não apenas uma crise portuguesa. No que respeita especificamente ao nosso caso, posso afirmar que a França tem mantido uma grande solidariedade com os esforços que Portugal tem vindo a fazer, no sentido da recuperação do equilíbrio das suas contas públicas. Ainda há dias, durante a visita a Paris do Primeiro Ministro, Dr. Pedro Passos Coelho, quer o Presidente Nicolas Sarkozy, quer o Primeiro Ministro François Fillon, sublinharam o seu apreço pelo trabalho que Portugal está a desenvolver, no plano interno, para encontrar formas de ultrapassar os problemas que afectam a sua economia e as suas finanças. Temos sempre podido contar com a compreensão da França e, estamos certos, essa atitude de simpatia vai manter-se no futuro. Ela insere-se, aliás, no quadro da grande proximidade que os dois países mantêm entre si.

Nessa recuperação que Portugal procura fazer, nos dias que correm, que tipo de assistência está a ter pela parte das instituições internacionais?

Há alguns meses, Portugal fez um acordo com a FMI, com o Banco Central Europeu e com a Comissão Europeia. Esse acordo destinava-se a aliviar as necessidades de financiamento do país, num momento excepcional de crise. Através desse acordo, o nosso país teve acesso empréstimos com taxas de juro mais favoráveis do que aquelas que o mercado internacional de capitais nos proporcionava. Não se tratou de nenhuma dádiva, tratou-se simplesmente de um empréstimo, com datas de reembolso bem previstas. Em contrapartida, o nosso país comprometeu-se a levar a cabo um conjunto de reformas, quer na nossa economia, quer em áreas que têm directa incidência no funcionamento do nosso sistema económico-financeiro. Isso inclui mudanças no sistema judicial, nas leis de trabalho, na forma de gestão das empresas públicas e em muitas outras áreas da actividade do Estado que podem ter contribuído para as dificuldades com que nos defrontamos. O objectivo é tornar mais saudável o funcionamento da nossa economia, procurando que Portugal se converta num país mais competitivo e atractivo para o investimento estrangeiro, por forma a que a nossa economia possa ganhar competitividade e crescer. A aplicação dessas medidas será, para o nosso país, um período complexo, com custos sociais fortes, mas que tem como objectivo, a prazo, criar um Portugal mais rico e mais próspero.

Como é que a Embaixada acompanha esta problemática?

A Embaixada tem como obrigação manter uma estreita articulação com o Governo francês, com vista a dar conta da evolução do trabalho que desenvolvemos, para além de lhe competir, no diálogo com a sociedade e a imprensa francesa, esclarecer o sentido e os objectivos das medidas que são tomadas em Portugal.

Vamos falar um pouco de emigração. Como é que o Sr. Embaixador vê a evolução da comunidade, em especial nos novos dos emigrantes portugueses que procuram a França, à procura de um futuro melhor?

Infelizmente, estamos a assistir àquilo que parece ser uma nova vaga de emigração portuguesa, que é um produto das dificuldades que Portugal atravessa internamente no seu sector económico, com o aumento do desemprego e o encerramento de empresas. Como se sabe, Portugal é um país de onde, desde há muito, partiram, ciclicamente, vagas de emigração, sempre que a fragilidade da sua economia se fez sentir de forma mais acentuada. Nunca é uma boa notícia os portugueses terem de emigrar. Pelo contrário, quando isso acontece, é sinal que a sociedade portuguesa não é capaz de dar oportunidade aos seus filhos e que os obriga a sair do pais para encontrarem soluções para o seu futuro. Esta é a sina de um país que é pobre de recursos e que, até hoje, não pôde ou não soube encontrar o caminho para uma prosperidade sustentada. Ainda não temos dados muito concretos e quantificados sobre estes novos fluxos migratórios, mas há a ideia que a Europa é, manifestamente, um dos destinos desta nova emigração mais procurados. Verificamos também que, em certo tipo de profissões, há fluxos migratórios recentes para Angola, Brasil e Estados Unidos. Mas a Europa, até pela facilidade de movimentação dos cidadãos, continua a ser o destino mais fácil. E a França, como é óbvio, é um desses países. Esta nova imigração tem algumas características diferentes daquela a que se assistia, nos anos 60 e 70 do século passado. Em muitos casos, estamos perante pessoas já com melhor qualificação académica e profissional, que muitas vezes se deslocam, desde o início, acompanhados das famílias e que, muito mais do que no passado, mudam com frequência de local de trabalho, em busca rápida de uma melhoria de vida. Os nossos consulados em França têm instruções para estarem atentos a esta nova vaga migratória, para procurarmos ser úteis a esses cidadãos e dar-lhes, por parte do Estado, todo o auxílio que for possível.

Nesse sentido, o que é que está a ser feito para ajudar esses novos imigrantes a enfrentar os seus problemas, a trabalho, alojamento e ensino para os seus filhos?
    
Como se compreenderá, não nos compete tomar iniciativas de enquadramento sócio-profissional desses novos imigrantes, que vêm a título individual e cuja movimentação pessoal desconhecemos por completo. Porém, a partir do momento em que essas pessoas se fixam, logo que se inscrevem nos consulados, passam a poder dispor de uma maior protecção nacional, para além daquela que lhes advém pelo facto de serem cidadãos da União Europeia. Estimulamos, por isso, que essas pessoas façam a sua inscrição consular. Quanto ao ensino das crianças portuguesas, e para além daquilo que o Estado francês já proporciona, Portugal contribui, desde há muitos anos, com um largo contingente de professores, destacados em França, para o ensino da língua portuguesa. Neste momento são cerca de 130 profissionais pagos pelo Governo português, um pouco por toda a França. Pode-se argumentar que talvez essa malha de ensino esteja aquém do que seria necessário, mas, atendendo às nossas limitações orçamentais, creio que esse é já um esforço muito significativo.

Ainda no que respeita ao ensino, como está a decorrer a passagem do ensino do português no estrangeiro para a responsabilidade do Ministério dos Negócios Estrangeiros? Houve alterações significativas nesta área?
     
Não me parece. Houve apenas uma mudança de tutela. Aquilo que antes era feito pelo Ministério da Educação passou a ser feito pelo Instituto Camões, que pertence ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Mas nada se alterou no perfil de funcionamento do ensino do português no estrangeiro. Esperamos que, a prazo, essa mudança possa ter efeito benéficos, quer para o ensino, quer para o trabalho dos profissionais nele envolvidos.

Como está actualmente o Instituto Camões? Temos visto poucas iniciativas da sua parte. Ao que se deve esta situação?
Não me parece que haja poucas iniciativas, o que pode é haver alguma menor visibilidade naquilo que o Instituto faz em França. O Instituto Camões apoia muitas acções culturais, ligadas a Portugal e à cultura portuguesa, que têm lugar por toda a França, organizadas por entidades francesas ou com ligações a Portugal: ciclos de cinema ou teatro, exposições, seminários e palestras, edição de livros, espectáculos musicais, etc. O Instituto mantém igualmente uma forte ligação às universidades onde se trabalha em temas de cultura portuguesa, promovendo e apoiando muitas das suas iniciativas, financiando cátedras, mantendo leitorados, etc. Além disso, aqui em Paris, o Centro Cultural que o Instituto Camões tem na rue Raffet, perto da Porte d’Auteuil, ministra cursos de português para adultos que têm uma grande procura. E, por exemplo, ainda recentemente levámos a cabo, na Embaixada em Paris, mais um concerto musical, de uma série que temos vindo a manter, com alguma regularidade, para a apresentação de artistas portugueses. Gostaríamos de poder fazer mais coisas, claro, mas os meios financeiros disponíveis são limitados.

Na área cultural existe também a acção das nossas associações. Como é que vê a vida associativa em França e que papel pensa que ela pode ter para a imagem da nossa cultura?
As associações portuguesas existentes em França têm um papel insubstituível e Portugal tem, para com elas, uma imensa dívida de gratidão. Graças a elas, e ao longo de muitos anos, foi possível proporcionar aos cidadãos portugueses espaços de convívio e ligação, fazendo subsistir na memória colectiva as expressões culturais do nosso país. Se os portugueses são, em geral, muito propensos a manter uma ligação afectiva ao seu país, a verdade é que foram e são as associações quem estruturou essa sua vocação e lhes deu expressão colectiva. Muitas associações, com escassez de meios mas com uma inquebrantável boa vontade, conseguem ter programas culturais muito ricos, que vão desde o ensino do português às manifestações musicais, do cultivo do folclore à promoção de actividades artísticas. Só podemos esperar que o movimento associativo português em França saiba ligar-se melhor entre si, sem rivalidades ou divisões, por forma a melhor afirmar a sua força. A Embaixada e os consulados portugueses terão sempre a melhor boa-vontade e disponibilidade para colaborarem com o movimento associativo dos portugueses em França. E, voltando àquilo de que falámos há pouco, contamos muito com as associações para ajudarem à integração dos novos migrantes que se deslocam para França.

Há dias, teve lugar na Embaixada uma cerimónia da Confraria dos Vinhos Transmontanos. Porque razão decidiu apoiar essa iniciativa?

Porque houve um pedido por parte da Confraria dos Vinhos Transmontanos para poderem organizar aqui uma promoção dos seus produtos regionais. Noto que, além do vinho, foram mostrados outros produtos alimentares portugueses, tendo podido contar com a presença de importadores de produtos portugueses, de proprietários de restaurantes e de outras figuras que podem ajudar a potenciar o comércio em França desses mesmo produtos. Mas esta não foi a primeira iniciativa do género. Já por cá tivemos acções promocionais do Alentejo, de Lisboa, do Douro, dos Açores. Outras haverá, no futuro, como uma sobre o Minho e, muito proximamente, uma outra ligada ao Porto. A Embaixada está aberta a ser utilizada para a promoção de todas as regiões portuguesas. Estimulo que nos procurem.

O Senhor Embaixador deseja deixar alguma mensagem para a nossa comunidade e, em particular, para os leitores da Portugal Magazine?

Apenas uma mensagem simples. Dizer-lhes que Portugal atravessa um tempo de grande exigência, por virtude da sua situação económica, num mundo que está, ele próprio, a atravessar um momento complexo. Estamos a viver um período que exige de nós um grande rigor, um grande controlo no modo como são gastos os dinheiros públicos. É uma crise face à qual se exige de todos os portugueses serenidade, coragem e um grande sentido patriótico. Esperamos poder sair dela, daqui a uns tempos, com um país mais moderno, mais atractivo para o investimento, onde os portugueses se possam sentir felizes e realizados. Até lá, todos temos de ajudar, de incentivar a exportação dos nossos produtos, de incrementar a ida de turistas, de captar novos investimentos. Portugal merece o esforço de todos, porque continua a ser uma terra de oportunidades, onde vale a pena investir, criar riqueza, adquirir propriedades. Os portugueses que vivem no exterior, que sempre deram mostras de grande patriotismo, devem também ajudar a este esforço, como sempre fizeram no passado. Somos um país com quase 900 anos, uma das mais antigas nações do mundo, já passámos por crises bem piores do que esta. Essencialmente, o que gostava de deixar aos leitores do Portugal Magazine é a ideia de que continua a valer a pena acreditar em Portugal.