28 de abril de 2007

Carta ao Alvarito

Pela voz amiga do Elísio, chegou-me há pouco, numa rua do Rio de Janeiro, a notícia de que havias partido para uma nova viagem. Por uma qualquer razão, tive vontade de te ter comigo, logo ali, para falarmos do muito que nos faltou dizer. Mas quem, como eu, sempre te conheceu o gosto eterno pela itinerância já não estranha mais esta tua partida. Só posso esperar que faças a viagem em serenidade e em paz.


Usei o “Alvarito” no título deste texto e tu estarás a perguntar-te porquê. De facto, nunca deixei de te chamar Álvaro, poupada que estava, pela intimidade de sempre, a necessidade de um cerimonioso Dr. Magalhães dos Santos. O Alvarito veio-me agora da forma carinhosa com que a minha Mãe, que irás encontrar pelas paragens desta tua nova viagem, sempre se te referia.


Desde há muito que me habituei à certeza de que, tu e eu, tínhamos precisamente a mesma idade, não obstante nos separarem bastantes anos na aritmética cronológica. Alguns não perceberão isso, mas tu sabes bem ao que me refiro: à cumplicidade que tínhamos em tantas e tantas coisas, às ironias que partilhávamos, às historietas que trocávamos – em especial depois de, nos últimos anos, teres descoberto as virtudes do e-mail. Nunca te senti mais velho do que eu; pelo contrário, nos últimos anos via-te cada vez mais próximo da irrequietude adolescente, do gosto pelo chiste, no teu humor provocatório, na tua forma solta de encarar a vida e até as grandes partidas que ela às vezes te pregou.


Não me conheço sem te conhecer. Lembro-me de me falares da imagem do meu Pai, ainda solteiro, hóspede do teu, recém chegado ao seu “exílio” vilarealense, com a sólida amizade e as saudades de Viana a juntarem-nos, como se ainda estivessem no Américo ou no Café Bar (ninguém vai perceber isto, em Vila Real), mas agora já na tertúlia relojoeira do Salgueiro ou aos jantares em vossa casa, na Rua Direita.


Foi aí, da Capela Nova ao Cabo da Bila, que tu aprendeste a alimentar o intenso afecto por uma cidade que nem sempre te retribuíu como devia. Logo a ti, Álvaro, que tens no jardim da tua casa, em Oeiras, um velho candeeiro da Avenida Carvalho Araújo, a iluminar-te as saudades da terra. Quando escreveste “A Rua Direita – Uma Janela sobre Vila Real”, o livro para que me pediste sugestões e sobre o qual trocámos tantos e-mails, percebi melhor que essa rua nunca saiu dentro de ti, continuavas a morar nela, onde quer que estivesses no mundo. E lá ficarás a morar.


Por ocasião desta tua viagem, porque será que me lembro de tantas coisas, Álvaro ?


Estou a ver-me entrar no jornal “A Capital”, aí por 73, com o Zé Aguilar, ambos fardados de tropas por empréstimo, numa visita de estudo, e de recebermos de ti um sonoro: “Afinal, isto é só vilarealenses! E então, o padre Henrique e o Bertelo, não vieram ?”. Essa “A Capital” onde um tal Vicente Gil nos trazia um tipo de humor, saudável e limpo, que, às vezes, julgo ver renascer agora no “Gato Fedorento”.


Encontrámo-nos várias vezes pelo mundo, um mundo que tu palmilhaste como poucos, colectando notas e comparando vidas, com argúcia e graça. Um dia, demos de caras um com o outro, numa bancada de um estádio em Glasgow, cachecóis verdes à volta do pescoço, gelados pelo frio escocês e ainda mais pela derrota inglória do nosso Sporting contra o Celtic. Por horas perdidas, em cidades diversas, jantávamos episódios do passado e bebíamos recordações mútuas, com a Gina, como tu dizias, sempre a gabar-se de ter sido tua explicanda de inglês. Em Oslo, lembro-me de inventariarmos figuras femininas da “Bila”, as quais, no nosso comum entender, se renderiam à virilidade das estatuetas do parque Vigeland. No meu carro, numa viagem entre Londres e Bruxelas, a caminho da Europália, tivémos que pedir-te para suspender a enxurrada de anedotas, para não morrermos de uma barrigada de riso.


Na política, ao longo de muitos anos, partilhávamos uma discordância quase abissal, que muito nos divertia. Nem por um segundo, porém, esse olhar diferente nos toldou a amizade, o entendimento e, o que é mais importante, a possibilidade de nos encontrarmos sempre no que era essencial – nos valores e no respeito pelos outros. Quando essa mesma política me tentou mais de perto, tive-te sempre a meu lado, no carinho das tuas crónicas semanais, com a amizade a apagar-te as naturais discordâncias. Ainda há meses, quase num dos teus últimos textos, me davas conselhos amigos na matéria.


As tuas viagens são sempre muito bem preparadas, estudadas ao detalhe, poupadinhas nos gastos – hábito teu com que, como sabes, o meu sentido esbanjador sempre embirrou. Mas, reconheço, são viagens seguras, sabes ao que vais, confias no caminho e tens a certeza do que encontrarás. Do lugar onde te escrevo, estou a olhar o Cristo do Corcovado iluminado e, parafraseando o título das tuas crónicas, quero mandar-te um imenso e eterno abraço, do Brasil, com saudades...


Francisco