O dia em que li Henry & June
de Anaïs Nin
Ana Ferreira: Illusionary
Pleasure
Estava no primeiro ano de faculdade quando a minha
querida amiga Ana Lúcia Sousa me falou de Henry Miller. Nunca tinha lido
erótica na vida e, a meu ver, era bastante púdica em relação a ler erotismo. Ao
ler uma passagem mais gráfica sentia as bochechas a ficarem vermelhas e
arregalar os olhos. Mas a minha amiga continuava “Tens de ler Miller! A maneira
como ele diz “cona”, ele não é badalhoco. Ou melhor é... mas entendes, não te
sentes ofendida. É poético.” Não sabia onde tal palavra poderia encaixar em
algo poético. Sei que demorei pelo menos mais dois anos até conseguir pegar em
livros eróticos, talvez por pudor, ou por estereótipo. Só este ano consegui
pegar em Nin, tendo já lido Henry Miller, o Decameron, Fanny Hill ou Maria
Teresa Horta. Só este ano consegui pegar no livro de Nin “Henry & June” da Editorial
Presença, no qual destaco a tradução. O tradutor poderia ter arruinado o livro.
Sim é muito fácil arruinar um livro erótico com uma tradução, mas não. A
tradução está tal e qual perfeita, que se Nin falasse e escrevesse português
teria certamente aprovado.
É-me impossível falar deste livro sem ter um desejo
profundo de o reler e querer escrever. Nin inspira-me a escrever o que nunca
pensei vir a querer colocar num papel. “Henry & June” é escrito com
verdadeira alma, qualquer livro erótico que não é escrito à flor da pele, com
as imagens a passar na cabeça, não consegue transmitir ao leitor o desejo das
personagens. Provavelmente este é o melhor diário que alguma vez lerei. A prosa
de Nin não é complicada. Não são precisas flores para descrever o quanto Nin
queria beijar e possuir June, ou então o quanto ela amava Miller, ou a
felicidade que é estar casada com Hugh. Nin foi de facto uma mulher de rara
sensibilidade, com tacto para as palavras certas e um coração grande demais
para amar só um homem. Por entre divagações filosóficas, incertezas sobre os
seus sentimentos ou sobre o rumo da sua vida, Nin dá a mão ao leitor para que
este a acompanhe a partilhar tudo o que escreve. As palavras de Nin vão
directamente para o coração do leitor. Como ela fez isso? Não sei.
Muito sinceramente não há elogios suficientes para este
livro. O ano passado não consegui escrever uma crítica para o livro da autora
Ursula Le Guin “A mão esquerda das Trevas”. Qualquer palavra referente ao livro
que não fosse “perfeito” parecia-me escusada e grosseira. Com este acontece o
mesmo. Tremo só de pensar que um dia vou voltar a ler Nin e a ver os meus demónios
outra vez abertos. Sim, também eu quero escrever sobre aquela mulher que quis
beijar e nunca tive coragem. Quero beijá-la no papel. Tenho inveja da Nin! Ao
mesmo tempo sei que a autora criou na sua vida tantas mentiras que precisava de
as escrever para não se esquecer delas.
É-me impossível de todo escrever uma crítica objectiva
sobre Nin. Depois da leitura do livro a minha escrita não será a mesma, a minha
vida não será a mesma. Pensarei sempre na forma como Nin escolhia as palavras
sem se aperceber, na forma como ela conseguia amar e dar o seu coração a
diversas pessoas. Talvez muitas pessoas não irão conseguir ler o livro até ao
fim. Talvez nem sequer entendam muito bem a obsessão que Nin se tornou na minha
escrita ou, quiçá dirão que a autora era uma “puta” que traía o marido. Encaro
a Nin como uma pessoa honesta para si própria. Não podemos pensar que a maioria
dos modelos dos livros eróticos de hoje em dia que visam uma mulher aborrecida
que se apaixona por um homem lindo e é correspondida, são verdade. Nin
precisava do amor de um homem mais velho. Miller foi esse homem. Amaram-se,
fizeram sexo. Não era preciso serem bonitos ou ricos, Miller era charmoso e
inteligente, Nin era a correspondente literária de Miller, a mulher que
conseguia compreende-lo e ajudá-lo na sua escrita. Talvez precisemos de vez em
quando de deixar o mundo imaginário perfeito, onde todos somos correspondidos,
para descer à realidade. A relação de Miller com Nin foi conflituosa, a sua relação
com June cheia de incertezas, mas a vida é assim. Um diário retrata as
experiências da vida real e, como todos sabem na realidade não há espaço para
contos de fadas ou, muitas vezes finais felizes.
NOTA FINAL: Anaïs Nin engravidou mais tarde de Miller,
segundo ela. Nin sofreu um aborto aos 6 meses. Eventualmente a sua relação com
Miller terminou e mais tarde com Hugh. Nin ajudou Miller durante este período
com o seu livro “Trópico de Câncer”.
NOTA DA REDACÇÃO DO BLOG OS LIVROS NOSSOS:
A nossa leitora convidada de Hoje - Ana Ferreira - é autora e Administradora do blogue Literário Illusionary Pleasure, que desde já vos convidamos a vir conhecer. Crítica Literária, Licenciada em Línguas (Alemão e Inglês), está a concluir o Mestrado na área de Ensino Básico e Secundário.
A escrita e a leitura são duas enormes paixões, e além de blogger é ainda responsável pela revista Nanozine.
A escrita e a leitura são duas enormes paixões, e além de blogger é ainda responsável pela revista Nanozine.