11.10.10
escrever um livro como quem anda a pé
começa assim e vai acabar dentro de seis meses
Não tinha de ser
Última chamada com destino ao verão.
O 58º Festival de Cinema de San Sebastian
Azulejos brancos
Botanomância
Os loucos dizem coisas
30.6.10
O esqueleto do morto
No mundo inteiro passou a haver apenas bocas. Milhões de bocas com dentes de fora. Trincavam a pele, trincavam a carne, rasgavam os músculos, rasgavam as veias, bebiam o sangue. As bocas que já não eram bocas mas eram dentes vinham de todas as casas de todas as ruas, vinham dos parques de adeptos de futebol, vinham nos comboios, nos aviões e nos carros. Estavam no exterior do estádio, em todas os lugares sentados da bancada e nos lugares de pé. Estavam até dentro do balneário.
No dia da morte de uma equipa de futebol, o cadáver não tem tempo de chegar a ser cadáver. O tempo que o tempo precisa para estalar dois dedos é o tempo que o morto demora a ser transformado em esqueleto. Este é o da selecção portuguesa de futebol e ficou assim estendido num relvado africano:
Junto a uma das balizas está um crânio. O cérebro da equipa foi Eduardo. O guarda-redes foi guarda-redes e foi guarda-costas de toda a equipa. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Vezes de mais. As vezes todas.
No lugar onde jaz o ombro direito da ossada esteve Ricardo Carvalho. Aquele ombro morreu sem dores. Dali não veio a causa da morte. Nem veio dali, nem veio do ombro esquerdo. No sítio do ombro esquerdo esteve sempre Bruno Alves.
Vamos aos braços do morto: do lado esquerdo, uma saúde de ferro, sendo esse o membro mais forte do corpo inteiro. No braço esquerdo, Fábio Coentrão esticava os dedos da "asa" até ao joelho e até aos pés. Ao passar a autópsia para o braço direito, não passamos, por que não há braço direito. Por aquele sítio andaram Paulo Ferreira, Miguel e Ricardo Costa. Foi como se não tivesse por lá passado ninguém. Escreve-se no bloco de notas que está no chão um corpo maneta.
No fundo da coluna vertebral, a zona pélvica está bastante desgatada. Foi ocupado por um jogador cansado, Pepe, e por outro sem rotinas do lugar em dez anos de carreira, Pedro Mendes.
Nos dois lados da bacia existem as marcas dos pitões de Raul Meireles, Tiago e duas ou três pegadas de Deco. O futebol transbordou algumas vezes a partir daquela região, mas não trasnbordou as vezes suficientes.
Este corpo só utilizou um joelho na passagem por África. Umas vezes na direita e outras vezes na esquerda, quase sempre com Simão e uns minutinhos com Danny, as pernas quase nunca flectiram como estavam obrigadas a flectir se o caminho era o tíutlo de campeão do mundo.
E chegamos aos pés. Um é lança-misseis e sabe de cor e salteado todas as ruas, vielas e avenidas de uma terra chamada fundo da baliza. O problema português também esteve no facto de esse pé não ter chegado a tocar chão africano. Esse pé foi Cristiano Ronaldo. No outro, houve momentos de ocupação terrena com Liedson e momentos de ataque em riste com Hugo Almeida. Nenhum garantiu passadas seguras, firmes e tranquilas.
A causa da morte de uma equipa encontra-se na soma de todas as partes. É hora de fazer o funeral ao morto. Sem colocar o treinador no papel de coveiro.
28.6.10
A estupidez azul do olhar
- Já tem o cartão fnac?
- Não, mas quero ter.
- Dirija-se ali à minha colega.
- Obrigado.
Existe agora uma entrega voluntária de documentos a troco de um cartão cultural provisório que no futuro há-de ser permanente e garante a acumulação de verba suficiente para descontos. Documento vai, fotocópia vem e a super-mulher da banca exibe a certeza de estar a vender cartões como nunca ninguém antes o tinha feito. Temo que ela possa dizer a seguir que é a fundadora da loja. Mas não. Ela aponta o caminho da conversa na direcção azul da cor do olhos:
- Consigo tudo com estes olhos!
Exclamo a repetição que faço da frase dela porque ela tinha os olhos arregalados. Está bem eram azuis, mas não eram bonitos. Está demonstrado à evidência que no dia em que nasceu o céu caiu com toda a força e entrou na íris e fez uma ocupação vitalícia do terreno visível. Causou no entanto, essa queda abrupta, danos irreversíveis nas terras altas dos glóbulos oculares.
Hoje voltei à loja e lembrei-me da estupidez azul do olhar. E fui muito bem atendido por uma rapariga com olhos castanhos e um sorriso. Boa tarde.
17.6.10
A volta ao mundo em 25 dias (7)
A volta ao mundo em 25 dias (6)
16.6.10
Os diários da bicicleta (5)
A volta ao mundo em 25 dias (5)
A volta ao mundo em 25 dias (4)
A volta ao mundo em 25 dias (3)
14.6.10
A volta ao mundo em 25 dias (2)
A volta ao mundo em 25 dias (1)
Os diários da bicicleta (4)

13.6.10
O amor dança aos pares
Quero bilhetes para dois lugares na fila frente, ao centro. Quero entrar nesse teatro antes da hora. É para ensaiar. Não, não sou actor, nem bailarino. Quer dizer às vezes sim. Sim o quê? Os dois. Bilhetes? Não, actor e bailarino. Sei chorar quando penso que o dia vai doer muito. E também sei fazer de conta que não sei de nada disso e saio de casa com dois braços bem educados e um par de olhos felizes. Digo-lhe de resto que a minha parte de bailarino vem precisamente daí. Do sítio onde as lágrimas se escondem no segundo em que as pálpebras abrem e as pálpebras fecham, fazendo as duas o paso doble e claro que isto tudo só se passa nas vezes em que a vida é uma tourada.
Quero dois bilhetes para ver a loucura de perto. Aproximem o espelho. Consigo ver nele um palco. E no chão do palco vejo os meus pés dentro dos sapatos oferecidos pelo mágico que se cansou de olhar para a cartola e de esperar que amor de lá saísse no próximo truque. Deu-mos no dia em que se reformou e morreu sem saber que o amor a meio da magia se tinha divido em dois e estava há décadas perdido nos atacadores destes sapatos pretos. Os bilhetes são para ver os dois lados do amor. Era de se lhe tirar o chapéu, se o amor fizesse dançar uma perna e depois a outra. E tomasse conta do movimento das ancas.
12.6.10
A história da vida de um disco
A música Fake Plastic Trees entrou na minha vida pela porta do lado esquerdo do meu Fiat 127 azul escuro. Estava escondida dentro de uma cassete BASF preta, onde eu tinha gravado, por milagre, o The Bends de uma ponta à outra, sobre uma fita com a história dos anos 80, uma fita com gravações e re-gravações de jogos do ZX Spectrum.
Nesse dia tinha acordado cedo. Apanhei o autocarro da Sequeira, Lucas & Venturas para poupar dinheiro porque tinha o passe. Demorei duas horas e ir ao e a vir do Porto. Tinha gasto quase todo o dinheiro que tinha juntado nos meus anos. A viagem de regresso a Serzedo foi como se estivesse a regressar da Nova Zelândia: o cd The Bends ardia-me nas mãos. Li e reli a capa e contra-capa. Fiquei feliz por não ter saído na noite anterior e por ter poupado mais um dinheirinho com isso. Tinha dormido bem, estava fresco e ainda me tinha sobrado um nota de mil escudos e outra de quinhetos, como resultado dos cinco contos que tinha levado no bolso para o Porto.
O Fiat 127 foi durante uma fase da minha vida o meu relógio, o meu controlo emocional, o meu destino: saía à hora em que ele decidia pegar, aguentava-me à bronca que era o remédio e chegava onde ele decidia parar. Nesse dia fez-me as vontades todas. Arrancou quando eu quis, ouviu o disco comigo e por vezes acho que só não foi abaixo porque estava a cantar comigo e com o leitor de cassetes.Não muito longe casa, já estamos, eu e o carro, mais do que saciados quando começa a ser possível perceber que High and Dry está a chegar ao fim. Valeu! Valeu por tudo, valeu pelos três contos e quintentos em 1995, valeu pela viagem de camioneta ao Porto, valeu por ter ido e voltado a pé da discoteca à paragem dos autocarros.
O silêncio não deve ter demorado 5 segundos. A seguir veio Fake Plastic Trees… fui nadar e conseguia respirar debaixo de água. Pensei ter sido sugestão da capa do disco, mas não era. Cada acorde proporionava uma braçada para diante. Cada palavra dizia os segredos todos do fundo do mar. E depois havia ainda mais ao fundo uma luz que parecia verdadeiramente uma luz, mas não era, era o mundo. E a profundidade do mar tinha sido o regresso à barriga da minha mãe. E quando tudo parou, ali estava eu: um rapaz sentado num FIAT 127 , de frente para a praia num dia chuva com os dois vidros abertos. Certo de ter acabado de nascer. E quis nascer de novo. E voltei a puxar a fita atrás.
10.6.10
Confissões africanas

O árbitro foi o primeiro a ser avisado de todas as circunstâncias e decidiu ficar em casa. Sem o apito, vai ser preciso recorrer ao estrondo de um ponto final para terminar este encontro.
[photo @ VNGaia]
9.6.10
Os diários da bicicleta (3)
A morte do artista
Os diários da bicicleta (2)
Sentado no soalho de madeira, acompanhado pelo cheiro da madeira com bicho, retirei da arca um cartão com uma fotografia igual às outras fofografias do Belmiro, muito quieto, muito senhor de si. O cartão dizia Bombeiros Voluntários da Aguda. Com aquele chapéu imaginei logo o Belmiro como o comandante dos bombeiros. Li com mais atenção e vi que o Belmiro era o cobrador.
A família inteira lá me foi explicando que o Belmiro era o meu avô e quando perguntava por ele a facção extremamente católica da família, a minha mãe e a minha avó Emília, respondia que o senhor o tinha chamado para o céu. Eu acho que disse que também queira lá ir.
Soube dos detalhes da morte do Belmiro uns anos mais tarde. Ela tinha uma bicileta preta com um assento largo de couro castanho. Era uma bicicleta como as bicicletas todas daquela zona e daquele tempo. Imagino que também tivesse uma pasta em pele com o livro das cobranças e uma régua de metal para cortar as cotas. O Belmiro morreu em 1965, quando fazia o traballho voluntário para os bombeiros da Aguda. Ia na bicicleta e foi abalroado por um carro na EN109. O carro fugiu e nunca soubemos quem matou o meu avô. Eu nasci quase dez anos mais tarde. Por isso digo que ele nunca teve a oportunidade de ser avô de um rapaz chamdo António.
Peguei na bicileta à meia noite. Vesti um colete florescente e desci sem luz e sem mãos nos travões a estrada que vai atè à Granja. Entrei na EN 109, passei a estação dos comboios e cheguei até perto do cruzamento onde hoje há um semáforo e onde me disseram que o meu avô Belmiro tinha morrido. A estrada é muito movimentada a qualquer hora do dia. Durante todo o percurso não passou nenhum carro por mim, em nenhum dos sentidos. Gosto de pensar que avô Belmiro estava a olhar por mim. Olhei para cima e disse: olá, eu sou o António. Sou teu neto.
7.6.10
Os diários da bicicleta (1)
Como qualquer bom filho que a casa torna, este que regressa ao final de uma tarde de domingo vai levar um "dvd" para a mãe colocar no leitor do autocarro que há-de partir de Serzedo em direcção a Torremolinos na madrugada desta quarta-feira. Que filmes levou o filho? "As Confissões de Schmidt", com o Jack Nicholson, sobre um viúvo numa autocaravana à procura de um rumo na vida, e a "Vida é Bela", com o Roberto Benigni, sobre a segunda guerra mundial e os campos de concentração, para onde as pessoas eram transportadas em grupo e com os pés nos pedais da bicicleta aquilo tudo começou a parecer uma má escolha para quem vai em excursão. Mas chega de autocarros.
Mudo muito pouco de assunto. Saio do autocarro para me concentrar no camião de um vizinho que é motorista de longo curso. A carroçaria é da cor do vinho tinto. Tem letras amarelas a dizer Eleutério. Fico a pensar se um homem que passa tantos meses fora da porta, não começa a ler adultério ao fim de uns tempos e se aquele patrão não é afinal uma mensagem subliminar. Só o subsídio de desemprego pode salvar aquele casamento. Vamos mudar o meio de transporte. Mas vamos mudar pouco: do camião para a autocaravana. O condutor é o Jack Nicholson, nas "Confissões de Schmidt", e o condutor vai tentar impedir o casamento da filha. Olho pela última vez para o camião do Euleutério e volto a mudar de veículo. Da autocaravana para a bicicleta. Sem filmes.
4.6.10
Graças a deus
Deus veio na cauda de um enxame, já diz a música, e mal chegou pegou num copo de vinho e deciciu dançar. Dança bem, para quem anda no mundo desde o início dos dias. E que não venha com coisas, porque aquela pose de quem está sentado sentado ao balcão só é conseguida por quem já passou noites sem fim a ver a vida no fundo de um copo, à espera de falar com deus. Neste caso, a falar com ele próprio. Louvado seja deus.
Sobre a arte individual de usar um colete como peça do vestuário masculino, há só a dizer o seguinte: é coisa para não se fazer, porque não está ao alcance dos comuns mortais.
No resto deste projecto a dividir em partes iguais aulas de música e pela estudos teológicos, confirma-se que uma mentira repetida muitas vezes chega a ser verdade: ele tem barba. E voz de deus.
The National - Bloodbuzz Ohio
Os bastardos do ditador
Os três estão agora como nós todos, aos milhares, empatados a zero quilómetros por hora no asfalto da A28. A A28 mudou de nome, antes era IC1, e está à beira de oficializar a mudança de sexo, mas para tal é preciso dinheiro e para ter dinheiro e para ter dinheiro mandaram construir portagens na entrada e na saída da senhora.
Nós entretanto fomos transformados em caracóis e seguimos viagem devagarinho no dorso de asfalto do travesti inventado pelo governo. Mas vamos voltar aos três especialistas na arte de servente, deslocalizados em Viana do Castelo. Eles estão na carrinha aqui ao lado. O mais velho tem o cabelo a ficar branco, a cabeça a ficar impaciente com a demora e o juízo a ficar louco. Vem com o pescoço esticado para fora da janela a dizer que o protesto é uma vergonha e o que é preciso é um Salazar.
Falta muito para chegar ao Porto. O episódio repete-se. A democracia liberta a opinião, os lesados queixam-se do males que os conduzem ao papel de injustiçados e vem logo a seguir um fiel (tipo cão de fila) seguidor da ditadura. A este ocasional filho de Salazar, para não ter de lhe chamar filho de outra, convém lembrar que nos dias do coveiro da nação, ir de Viana do Castelo ao Porto era coisa para demorar umas cinco horas, ou até mais. A marcha lenta, se tivesse ido sempre a 40 quilómetros por hora, que não foi, só teria demorado duas horas. Afinal o tamanho "incómodo" da democracia é bem mais passageiro do que a perfeição ordeira do tempo do outro senhor. E o bastardo do ditador, lá chegou mais cedo a casa, no regresso do trabalho, mesmo tendo que aturar a insuportável velocidade do barulho da liberdade.
1.6.10
Conflito internacional
O último cantor de charme
No século anterior ao século do casamento entre as pessoas do mesmo sexo, o Reininho já casava nos textos as palavras homossexuais, palavras que nunca se tocariam na métrica dos poetas e dos trovadores anteriores, mas que nos cadernos dele nasceram e dos cadernos dele foram conquistando o país inteiro, com a força de um Afonso Henriques, mas com a graça de uma rapariga pronta para a colheita.
O melhor do Porto é a voz do Reininho. É o palco onde ele surge, esguio ao microfone, de colarinhos moles ao pescoço, com as calças curtas e os tornozelos com vontade de espreitar a plateia. O melhor do Porto é a alegria da músicas antigas. É uma voz rouca. Aguda. À beira de uma ataque de verbos. É o som das letras do último cantor de charme em português.
31.5.10
O homem que disse sou mais feliz quando estou triste
Pegou na mala e no casaco. Guardou o telefone. Trancou a casa. Desceu as escadas a sorrir porque não tinha mensagens nem chamadas por atender e isso era bom. Significava que não o tinham tentado aborrecer com qualquer detalhe inútil de qualquer vida individual ou colectiva. Quando aterrava solitário nos aeroportos baratos da Europa e ligava o telemóvel, voltava ficar contente por não ter sido importunado durante o tempo em que o telefone tinha estado desligado. A caminho das plataformas dos autocarros ou dos comboios sentia-se triste pelo tarifário ser de carregamentos e por ter o saldo a chegar ao zero e não poder ligar a alguém, uma vez que o roaming fazia uma chamada viajar a um preço mais elevado do que a pessoa dele tinha embarcado desde o Porto.
Aos domingos regressava na hora em que os dias por norma estão a fechar os olhos para dormir. Tinha até à meia-noite para escrever a primeira crónica da semana. Encontrou o título por cima das nuvens da Europa: "sou mais feliz quando estou triste".
Pediram-lhe para desenvolver o tema na terça-feira. As vendas do jornal tinham disparado. A crónica andava na boca dos programas de rádio e nos olhos de todas as televisões. E choveram todos os convites para o homem que escrevia às segundas, terças e quintas. Sorriu ao pensar no interminável número de pessoas com disponibilidade de olhar para as letras ensinadas por ele. E de imediato o rosto ficou com um qualquer adjectivo triste. Teve a certeza de que nunca mais iria ficar sozinho.
Os fantasmas
28.5.10
Homens que nos levam ao céu (I)
A música, esta manhã quando acordou escolheu vestir um xaile preto pelos ombros e para os pés quis umas sandálias pretas sem tacão a fim de os proteger, porque no coração do cantor ia já uma consumição da cor do inferno e as dores nos pés só iam a atrapalhar a dor da sua principal função e neste caso a sua função principal era a de dar nós invisíveis à volta do coração. Mas o cantor não é um homem? Então o porquê da sugestão da possibilidade de sandálias pretas com tacão no bilhete de identidade da mortalha? Talvez seja quem escreve a dizer que um homem quando escreve um texto com o título homens que nos levam ao céu, está a pensar um tudo menos em sexo, esbatido aqui o sexo à condição de relação entre corpos do mesmo género.
Bon Iver - Skinny Love
27.5.10
A extraordinária primeira pessoa do singular
Michael Beard é um físico galardoado com o prémio Nobel e é o protagonista de "Solar". Já o físico dele próprio é um desafio perdido. Engordado nos cinquenta e tal anos, é frequente começar a suar quando se vê confrontado por alguém fisicamente mais dotado. Estamos no ponto em que as páginas do livro colocam Beard na estação de Paddington. O velho redondo compra um pacote de batatas fritas, um dos seus vícios, e entra para o comboio. Algures na viagem, pega no pacote de batatas fritas que está em cima do banco e começa a comer as batatas. Em frente a ele está um homem forte e alto e isso vê-se sem sacrifício apesar de ele estar sentado. E qual não é o desplante do passageiro gigante: vai ao saco de batatas fritas que Beard segura com a mão esquerda e tira uma batata. E come a batata com ar de quem está deliciado. Beard fica tão incrédulo como colado ao assento porque o adversário é mais corpulento.
Num gesto de coragem, pegou na garrafa de água do outro e deu um gole. O outro carregou o semblante e nada mais fez. A seguir a esse momento de pânico, no fim da linha, o homem mais novo levantou-se e Michael Beard lamentou a ousadia. Com um gesto, o jovem puxou a mala de velho físico e colocou-a aos pés do dono. Foi cada um à sua vida. Já dentro do táxi a caminho de casa, Beard sentiu um estalido metálico no bolso do sobretudo, levou lá a mão e ficou vermelho de vergonha ao ver intacto o pacote de batatas fritas que tinha comprado em Paddington. Pensou no que o homem teria ficado a pensar dele. Tinha sido inocente, mas idiota chapado ao mesmo tempo.
Semanas mais tarde, durante uma conferência sobre os benefícios das energias alternativas em deterimento dos combustíveis usuais, Beard utilizou este exemplo numa palestra para dizer que em situações de crise, por vezes o problema não está nas outras pessoas, nem no sistema, nem natureza das coisas, mas em nós mesmos.
No final da palestra, na fase dos cumprimentos e dos elogios, o prémio Nobel Michael Beard foi abordado por um jovem que lhe perguntou onde tinha ido buscar a história do comboio. "Foi como disse", respondeu. O interpelador foi em frente no reaciocínio e explicou que aquela história era conhecida, mudadada aqui e ali, mas mantendo a mesma linha no essencial. "até tem um nome", disse. "É o ladrão involuntário".
Ontem ao fim da tarde dei uso pela segunda vez mensal do costume ao cartão de crédito do banco. Na operação de rotina bi-mansal parei numa das bombas de gasolina do Candal e atestei o depósito com gasóleo. Hoje à tarde abri a carteira e não vi lá o cartão de crédito. A minha cabeça passou por acusar mentalmente o homem das bombas, os clientes que lá teriam ido a seguir ou eventualmente alguém que tivesse visto a minha carteira e tivesse de lá retirado o cartão. Saio a correr da esplanada, ligo a ignição, ponho o carro a correr ainda mais depressa e em casa ligo-me à internet e ligo ao banco para cancelar o cartão. A meio da conversa com o senhor que em Lisboa procedia à anulação, levo a mão ao bolso dos calções e descubro lá o cartão de débito. Abro a carteira e verifico que o cartão de crédito esteve sempre lá dentro, embora estivesse numa ranhura que não a habitual. Naquel fase da viagem, já não havia marcha atrás possível. Anulei um cartão que tinha dentro da carteira. O problema esteve sempre na forma como os meus olhos (não) viram a acção e não nos outros. O erro vai custar-me cerca de 30 euros. Ladrãozito involuntário de mim próprio.
O réptil
Hoje o estádio está cheio, os jogadores está a marcar muitos golos, o futebol que a equipa tem para apresentar podia até ser vendido em pequenos frascos como um perfume. O barulho nas bancadas tem o cheiro da vitória. Estão todos surdos no estádio, menos um. No clube em que está, o treinador sabe que quanto mais longe do primeiro lugar, mais perto da porta de saída. Mais perto da selva.
Num passe mais largo rente ao chão, o som do couro da bola a cortar a relva entra nos ouvidos no treinador como o tal barulho da cobra prestes a engolir um homem inteiro. O animal que o devora, não o devora sem antes lhe deixar as pistas todas sobre a evolução da relações humanas. Os répteis não sobrevivem sem a renovação dos tecidos. Não crescem sem a mudança total e recorrente de pele. Uma pele velha que tenha resistido à substituição pode fazer apodrecer os novos tecidos ou pode causar necroses. Elementar meu caro treinador de futebol.
Nesta fase de peles em trânsito, a nova que está para chegar, mas que só chegará saudável se tiver havido a remoção total da anteriro, nesta fase a ciência aconselha: nada de stress e cuidados com parasitas externos.
Um clube de futebol sobrevive no jogo da imitação dos répteis. O treinador é a pele. A essa, já vimos o que acontece de tempos a tempos.
26.5.10
Gato Pardo
O dono do café, sempre depois do fecho, tirava o avental de dono do café e era o homem do assobio. Palmilhava a escuridão dos acessos a casa, empurrava arbustos para o lado, espreitava para lá dos muros, olhava com medo para a estrada, não fosse dar-se o caso de ver na estrada um animal anteriormente conhecido por gato, estragado e morto pelos pneus de algum carro.
Estou na ponta mais à direita da plateia de três. Estamos a assitir ao segundo acto de três. Ao fim de três semanas, o assobio fez eco. Bem, não era bem eco: o assobio teve resposta. Um gato miava come se estivesse rouco, com a falta de força de quem está doente. O homem deixou-se levar pelos ouvidos até um sítio com árvores rasas. Afastou-as todos e ganhou no campo de visão um buraco. Naquele plano picado, o gato pardo podia ser o dele ou não. Em camisa de manga curta, já depois da meia-noite, relativamente longe de casa e sozinho num baldio, sentiu medo e ficou a olhar para o gato, com pele de galinha nos braços. Foi a casa.
No terceiro acto, o dono do café já tem na mão um vara fina de ferro. Na vara amarrou um fio. No fio amarrou uma bola. Enfiou a invenção no buraco à espera que gato se lembrasse de cravar as unhas na bola como um guarda-redes e que viesse à boleia dela para a superfície. Aconteceu o que tinha de acontecer. O gato não era um peixe e por isso aquela espécie de cana foi atirada para o chão. E dono que foi a casa e com o calor da genial invenção nas ideias, nem lhe passou pela cabeça a ideia de um casaco para cobrir os braços.
Tornou a olhar para o gato e gato pareceu-lhe mais pequeno. Arriscou. Meteu o braço direito no buraco e rangeu dentes para o caso de vir por aí alguma dor arrepiante. Mas nada disso! O gato deixou que mão fosse um elevador e decidiu ficar sossegado à espera de ver onde a porta ia abrir. A porta abriu no colo do dono do café e do gato. Ao levá-lo para casa, sentiu-o mais leve no braços. Espantava-se com a façanha de um gato que viveu sempre dentro de casa ter conseguido resistir à morte sem a alcofa, o leite no prato, o fimbre e os enlatados. Como se o intinto animal fosse apenas uma coisa dos livros e nunca uma expressão que encerra realidades.
25.5.10
O chão que ela pisa
Vamos então ao chão que ela pisa, sendo que o chão que ela pisa, aqui, não poderá ser nunca o livro de Salman Rushdie musicado pelos U2 sobre a história de uma banda com um casal no meio. O chão que ela pisa é neste particular o caminho feito e a fazer pela selecção portuguesa de futebol. Sem recurso ao GPS, chego-me à frente para afirmar com estas letras todas que por este andar, mantendo esta rota, e nesta velocidade de quem vai em passeio, a África do Sul que vai surgir no horizonte é o fim de um continente numa falésia sobre o mar revolto e numa zona sem praia. Adivinha-se queda livre e inevitável naufrágio. E isso seria uma tormenta.
A selecção portuguesa que jogou e empatou a zero com Cabo Verde, essa de Queiroz, cabe na metáfora de uma mulher de século XVIII dentro do espartilho. O meio campo, está preso ao chão por cordas que podiam ser as cordas que esmagam a cintura. Com isso, lá em cima, no ataque, respira-se com dificuldade normal de quem tem falta de ar, de bola. Em baixo, na defesa, não chegou a dar para ver se junto à relva, a defesa portuguesa dá os sinais vitais que os meus pés dão sobre o frio confortável deste soalho. (professor, estamos na era do topless. Ponha lá os rapazes à solta.)
23.5.10
O alfaiate português
A mercadoria reprovada era atirada sem perder tempo para lá da porta estreitinha dos fundos e naquele lugar os fundos confluíam todos num beco com saída para um braço de rua onde haveria de passar o camião do lixo.
Aqui as grandes casas são clubes de futebol. A mercadoria é o jogador de futebol. Os juízes são os directores, os treinadores e os empresários. Milão podia ser uma finíssima escolha para falar de estilistas e arredores, mas não vai ser. Será o lugar onde o camião do lixo chega com a mercadoria, proveniente de inúmeras cidades europeias, com mercadoria que ninguém quis ter, nem sequer na prateleira.
Cambiasso e Sneijder estavam a mais nos catálogos madrilenos. Eto´o tinha conhecido o fim da linha em Barcelona. Diego Milito andou dez anos pelo velho continente sem conseguir convencer nenhuma agência de castings e por aí foi andando sem nunca ter o passe para os grandes desfiles mundiais. É assim parte da história dos jogadores de futebol a quem um dia a saída foi indicada pelo juízo absoluto.
Na capital da moda, o presidente, que era o Massimo, juntou os retalhos todos e mandou emissário à freguesia de Aires. O emissário, chegado ao concelho de Setúbal, encontrou um alfaite também ele atirado para a rua, na condição de milionário, mas para a rua, por um oligarca viciado na roleta russa. O português era o homem à medida do fato. Trabalhou durante dois anos, cortando aqui, cosendo ali, subindo uma baínha, retirando um bolso, acrescentado botões. Ganhou dois prémios anuais italianos. Saíu do quarto de costura e foi a Madrid apresentar o resultado. Os homens mais ricos da cidade, no lugar da criação, compraram o criador. Criaturas!
22.5.10
O comboio de Liège
Estou a fazer parte do caminho de regresso a Portugal. O táxi tinha chegado sem falta às 5 da manhãm ao hotel Dorint, onde fui jornalisticamente muito bem baptizado (Manuela Brandão, Eugénio Queiros, Jorge Monteiro, António Casanova; Paulo Duarte, Rui Gomes, Paulo Silva, etc, etc etc,). Fomos de Spa pelas luzes do carro e dos postes até Liège. No comboio era eu, a minha mala, o meu sono e belgas a caminho da ruralidade dos empregos. Tanto era o sono que já não me lembro se o comboio chegou perto do aeroporto ou se cheguei a seguir caminho noutro táxi. É indiferente.
À hora a que adormeço no avião para o Porto, nesse princípio de verão do ano 2000, Louis Van Gall é despedido do Barcelona e chega a seleccionador da Holanda. José Mourinho está para fazer a estreia como treinador principal no Benfica. Nesse mesmo defeso, um miúdo de 20 anos, Diego Milito, está começar uma época que vai terminar com o título de campeão argentino no Racing Avellaneda. O nome Robben só é conhecido nas camadas jovens do Groningen. Júlio César é um goleiro "minino" no Flamengo. Sneijder e Cambiasso ainda têm cabelo e jogam nas escolinhas do Ajax, um, e no Independiente, outro. A lista começa a parecer um comboio que não vai a lado nenhum. Já cá voltamos.
Meia dúzia de dias antes, uma sucessão de acasos leva-me ao sítio onde vou acabar esta história. O FC do Porto quer contratar Dimitri Alenitchev. Sei que é russo e que joga no Perugia de Itália. O Perugia está em Liège para jogar uma eliminatória da taça Intertoto. Apanho boleia dos camaradas de reportagem do jornal A Bola e consigo o exclusivo radiofónico da primeira entrevista do médio ofensivo russo para Portugal.
O dia seguinte é o dia do jogo entre o Standard de Liège e o Perugia. Conseguimos as acreditações necessárias e vamos para o estádio fazer a cobertura do encontro com o futuro reforço portista. Logo à entrada julgo que o Eugénio me chama à atenção para o Luciano D´Onofrio. Do nada reparo num personagem que à partida não devia fazer parte daquela história. Estavamos à procura de algum emissário do FC Porto e nada. Quem está em Liège para assistir ao jogo é o presidente da SAD do Sporting, o Luís Duque. Lá perguntámos se ele queria também o Dimitri. Ele sorriu e disse que não, que não. Estava à procura de um defesa central. Quem? "O Daniel". Quem é o Daniel? "O Van Buyten". Ouvi este nome pela primeira vez e depois disso confesso que acompanhei sempre à distância a carreira de um central que nunca chegou a vestir a camisola do Sporting.
Hoje voltei a reencontrar o Daniel, por via da transmissão televisiva. Tinha uma camisola vermelha com o número 5. Levou pela frente com o rapaz que um dia foi um miúdo do Racing de Avellaneda. E descarrilou como nunca descarrilaria um velho comboio belga.
PS: no resto da história, o treinador debutante ganhou ao seleccionador da Holanda.
21.5.10
Uma rua de levar para casa
59 segundos
Mostarda
1986
Lembro-me de ter os cabelos compridos com cheiro a fumo de cigarros. Lembro-me que era de manhã e estava frio, muito frio, frio ao ponto de ver na respiração o estilo dos fumadores. O meu pai e eu caminhavamos com a pressa dos que não querem mesmo mesmo chegar atrasados. O tabaco dele vinha sempre à baila nas conversas quando alguma senhora se chegava para me dar um beijo e dava mas dizia ó rapaz até parece que também fumas. E fumava, expelindo o ar quente dos pulmões entusiasmados em direcção à brisa gelada, afinal era um miúdo a quem o pai tinha levado para o acompanhar a um comício de uma campanha eleitoral. Neste primeiro ou segundo sábado de 1986, o rapaz de onze anos tinha a certeza de ser um homem informado, ciente das escolhas sociais adequadas à política que estava a fazer falta ao país. Um homem de sobretudo no palco pegou no microfone para chamar o Diogo Freitas do Amaral. Nesse dia vi pela primeira vez o antigo líder do CDS.
Uns meses mais tarde, no dia em que fiz 12 anos, a 9 de março, o Mário Soares tomou posse como Presidente da República, depois de ter vencido as terceiras eleições presidenciais desde o 25 de abril de 1974. Nesse dia atribuí parcialmente a derrota do Freitas ao facto de eu, e de tantos outros como eu na minha escola, não termos à data idade suficiente para votar. O melhor daquela manhã na praceta 25 de Abril, em Vila Nova de Gaia, foi ter passado o tempo todo de mão dada com o pai. Já nem me lembro da úlima vez em que o fiz.
E também não me lembro da última vez em que estive nas proximidades do Diogo Freitas do Amaral. Vou estar com ele esta noite. Gostava que no comício de 1986 ele nos tivesse dito que um dia ia ser ministro do negócios estrangeiros pelo PS. Depois o tabaco faz mal à saúde.
Memórias de uma quarta
A sanfona
A avenida da Boavista, nos dias bons, tem momentos iguais aos números de magia. Ela consegue ser aquele truque dos intermináveis lenços puxados pelo ilusionista. Aquilo nunca mais acaba. E isto também não, a capacidade de repetir os dias, repetindo rotinas às centenas de milhares, havendo em todos dias instantes que nunca tinham sido “publicados” antes.
Hoje andava um cão branco com um cesto pequenino na boca. Os dentes seguravam o arame. O cão estava sentado ao ombro de um homem moreno, extraordinariamente novo para aquele papel e invulgarmente baixo para quem já tem mais de 20 anos. O tacanho torso do pedinte não cumpria por ali a missão. Tinha na posição de uma mochila colocada à frente uma sanfona onde faltavam teclas. Os dedos dividiam tarefas entre a construção de um ruído pobre e o botão do semáforo que é como um requirimento para pedir verde para os peões e vermelho a travar as rodas do trânsito. O homem da sanfona nunca pedia dinheiro a quem passa a pé junto a três hotéis de cinco estrelas. Olhava na direcção dos carros como quem via mealheiros ambulantes. E batia nos vidros com o queixo. Tocava na sanfona com as mãos e ajudava ao balanço com um joelho. O cão esticava o focinho na mesma esperança dos pescadores quando a rede vai ao mar. Chamar um ilusionista era capaz de ser mais bem escolhido, se para ali estão com a ideia de ver moedas no ardil.