Para quem não sabe, as rolhas tradicionais são feitas de cortiça. A cortiça é a casca de uma árvore chamada sobreiro. E Portugal é o maior exportador de cortiça a nível mundial. A cortiça é um material versátil e 100% natural. Com um vasto leque de possíveis utilizações, podemos encontrá-la tanto nas garrafas de vinho, como em nossas casas, em
peças de vestuário e acessórios de moda e até mesmo no isolamento térmico dos tanques de combustível externos do
Space Shuttle Columbia, utilizado pela NASA.
Segundo dados da APCOR (Associação Portuguesa de Cortiça), referentes ao ano de 2007, o valor gerado pelas exportações nacionais de cortiça representa cerca de 0,7% do PIB (a preços de mercado), aproximadamente 2,3% do total das exportações portuguesas e cerca de 30% do total das exportações portuguesas de produtos florestais. Isto só para dar uma ideia da importância deste sector.
A indústria corticeira nacional tem um rosto de destaque de quem toda a gente certamente já ouviu falar, especialmente desde que, em 2008, a revista
Forbes o classificou como o homem mais rico de Portugal e um dos mais ricos do mundo. Refiro-me obviamente a Américo Amorim, presidente do Conselho de Administração do
Grupo Amorim, ao qual pertence a sobejamente conhecida
Corticeira Amorim, que é a maior empresa mundial de produtos de cortiça e está organizada em cinco unidades de negócio: Matérias-Primas, Rolhas, Revestimentos, Aglomerados Compósitos e Isolamentos.
A crescente procura de soluções alternativas ao uso da rolha de cortiça em alguns mercados internacionais (especialmente em países como os EUA, a Austrália e a Nova Zelândia), optando por
rolhas sintéticas ou tampas de plástico, tem comprometido e ameaçado de forma séria todo o sector corticeiro. Recentemente, numa tentativa de contrariar esta tendência, o Grupo Amorim financiou uma curiosa campanha internacional em defesa da tradicional rolha de cortiça, usando para o efeito o actor humorístico Rob Schneider que, segundo o breve filme criado para o efeito, tem como missão viajar até Portugal na nobre demanda de "Salvar o Miguel" (no título original:
Save Miguel), sendo que "Miguel" é um sobreiro, o que neste caso é sinónimo de "Cortiça".
Pelos vistos o resultado desta campanha e de outras eventuais medidas (se é que as houve mas pretendo acreditar que sim) tomadas em defesa desta matéria-prima, símbolo de Portugal no mundo (apenas o fado e vinho do Porto terão uma conotação tão imediata com a Lusitânia), não têm tido o sucesso esperado. O sector corticeiro está em crise e começam finalmente a surgir nos meios de comunicação social algumas notícias que revelam a delicada situação em que se encontra.
No caso da Corticeira Amorim, podia ler-se hoje no
Jornal de Negócios que foi anunciado o despedimento de 193 trabalhadores, o que é grave. Mas ainda mais grave é o que se passa com a
Suberus, grupo detentor da segunda maior corticeira nacional. Para além da actividade corticeira, a Suberus tem ainda ramificações na área da metalurgia e não sei se noutras mais (neste momento a maioria dos sites do grupo estão suspensos ou inactivos, sendo portanto difícil reunir informação mais detalhada). No que toca à cortiça, a Suberus detém duas fábricas no norte do país a
Vinocor e a
Subercor, em Mozelos, Santa Maria da Feira e uma outra, a
Subercentro, em Ponte de Sor, no Distrito de Portalegre.
Desde o dia 21 do passado mês de Janeiro que os cerca de 160 empregados das fábricas Vinocor e Subercor iniciaram uma
greve de protesto, devido aos salários em atraso de Dezembro e respectivos subsídios de Natal. Hoje foi anunciado nos diversos meios de comunicação social que a Suberus apresentou em tribunal um
pedido de insolvência para as suas 4 empresas do ramo corticeiro, Vinocor, Subercor, Subercentro e Subergal Trading, que empregavam no total cerca de 300 trabalhadores.
Escusado será dizer que lamento profundamente a situação, não só do sector (relativamente ao qual tenho uma profunda ligação de proximidade afectiva) como em especial a dos trabalhadores que vêm agora uma nuvem ainda mais negra a surgir no horizonte.
Mas não posso deixar de fazer uma referência sentida àqueles que neste momento sofrem talvez os dias mais angustiantes das suas vidas e de quem nunca se ouve falar (o que demonstra o desinteresse absoluto por parte dos media por tudo que não seja populista e notícia "fácil"). Refiro-me aos pequenos intermediários e produtores que, no último ano, venderam todo, ou a maior parte do seu stock de cortiça a qualquer uma destas empresas e até hoje não viram um tostão.
Falo de pessoas cuja vida é dedicada exclusivamente a este negócio e, em muitos caso, vivem há meses a fio numa angustia atroz, consumidos diariamente por sentimentos contraditórios que oscilam entre a esperança e o desespero, a boa-fé e a desconfiança, a revolta e o arrependimento. Assistem impotentes ao consecutivo adiar de uma solução, que vai tardando e nunca mais chega. Sujeitam-se às promessas dos devedores de que tudo está a ser feito para resolver a situação, de que não serão esquecidos, de que assim que o problema esteja resolvido serão eles os primeiros a receber o seu dinheiro. E eles, movidos por uma fé que, antes de mais só existe porque perdê-la seria sinónimo de assumir que perderam tudo, lá vão acedendo, esperando, dizendo que sim a tudo o que lhes é pedido.
Muitos destes homens não acompanharam a evolução dos tempos, não têm escritórios, nem computadores, nem internet. Não contratam advogados, nem secretárias, nem assistentes, nem analistas para os ajudar nos seus negócios e alguns nem sequer lêem o jornal mas seguem religiosamente os noticiários televisivos, mesmo que não percebam na íntegra tudo o que lá se diz. Não dispensam no entanto um bloquinho de notas, onde fazem contas e apontam números de telefone. E um lápis, que muitos afiam com o mesmo canivete que usam para retirar uma lasca das pranchas de cortiça nova, para verificar a quantidade de "verde" (que resulta da humidade por evaporar ainda "presa" no interior da mesma) e poder assim calcular quanto tempo falta para a poder pesar já seca. Igualmente indispensáveis são os dois livros sagrados, o dos cheques e o dos contratos, preenchidos sempre à mão e em triplicado, sabe-se lá quando é que um bom negócio pode bater à porta. Pesam as pilhas (de cortiça) a olho e raramente se enganam (confirmando-se a sua extraordinária precisão sempre que alguém insiste em usar a balança). Calculam a cubicagem com uma fita métrica e umas contas de cabeça. Trazem na memória o extenso mapa da planície, dos montes e vales, conhecem as corgas e os caminhos de cor, assim como os nomes das herdades e daqueles a quem pertencem. Nunca precisaram de um GPS, a maioria nem sabe o que isso é. São homens do Sul, esta raça em vias de extinção. Uma espécie de cowboys à portuguesa, cavaleiros solitários que trocaram os cavalos por jipes e percorrem diariamente centenas de quilómetros pelos montes alentejanos, à procura do negócio. Homens para quem a palavra é sempre de honra e um compromisso fica selado com um aperto de mão.
São portanto presas fáceis neste jogo em que no outro extremo do tabuleiro, no Norte, estão as modernas e organizadas empresas, com as suas unidades fabris, os escritórios, as secretárias, os advogados e a internet. Muitos destes homens têm idades avançadas, que já não permitem o fôlego necessário para lidar com esta montanha-russa de emoções que os depara agora, no fim da linha, com a hipótese de ver tudo aquilo porque lutaram uma vida inteira esfumar-se em nada. Porque o risco que correm é mesmo esse, ver o "tudo" transforma-se em "nada".
É nesses que mais penso e por quem o meu coração mais pesa. É a esses que deixo aqui uma palavra de solidariedade e coragem. Salvem o "Miguel" mas salvem primeiro aqueles que desde sempre deram o seu contributo para que, em boa parte devido ao seu esforço, o "Miguel" seja hoje aquilo que é.