26.7.17

Por um instante, as formigas


Laura Makabresku

Era uma floresta fantasiada.
Era um carnaval de gestos
na metamorfose dos corpos,
delineando o próprio rosto.
Eram animais míticos e reais.
Por um instante, as formigas
saíram-me do olhar, em ondas vagarosas.
A cegueira arredondou-lhes o espaço
com fios impalpáveis.
Agonizaram à procura do sulco dos meus olhos.

Graça Pires
In: A CNB e os Poetas, 2016, p. 46

Poema feito na sequência de ter assistido ao bailado “Carnaval [dos Animais]”, coreografado por Victor Hugo Pontes, a convite da direcção da CNB, através de João Costa, Jun. 2016

19.7.17

No estio da terra

Ricardo Nascimento

De súbito, um submerso silêncio a ocidente das manhãs
entretece o cúmplice coração das searas no estio da terra.
Adivinha-se a quentura das águas através da brisa
que desliza pelos cabelos das crianças, num aconchego
quase tão delicado como o chamamento das mães.
Apetece resgatar alegrias e dar às coisas
nomes de flores, de anjos, de amigos.
Para lá do espaço há uma linha inclinada que não perturba
a curva do sol no recanto mais sensível do horizonte.
Os dias resguardam longamente a luz, e o crepúsculo
até dói no olhar desprevenido dos que esperam da noite
a transparência das sombras.

Graça Pires
In: Solstícios e Equinócios: antologia. Coord. de Emanuel Lomelino. Lisboa: Edições Vieira da Silva, 2016, p. 62

10.7.17

Em seara alheia


Rasga o Poeta as Vestes

Rasga o poeta as vestes. E clama seus passos
Ousando, de queda em queda, o fogo do milagre
E os caminhos de Damasco
E a Iluminação perene
Que o redima.

Não a prece, nem a tempestade. Nem o anjo.
Nem a espada - são de pedra seus passos
E inóspitos seus caminhos.

E é de areia o rosto das miragens.
E é de fel o colapso de seus dias.
E de amargura a água dos rochedos.

Ousa porém o poeta o milagre inscrito
Nas humaníssimas dores da Humanidade
E nelas lava o seu corpo místico
Como se rio fossem.

Manuel Veiga
In: Caligrafia Íntima. Braga: Poética Edições, 2017, p. 15

1.7.17

Nu sentado no divã

Amedeo Modigliani

Agora, que tomei banho
e me perfumei com infusão de rosas,
podes vir pintar o meu retrato.
Sento-me de lado.
Não quero que mostres
as curvas todas do meu corpo,
nem que desvendes a mais íntima
nudez de minhas sedes.

Tenho sob a pele a máscara da inibição
onde escondo o anseio mundano
de colorir o desacerto dos meus passos.

Por isso, retoca devagar o recorte dos lábios,
o desenho dos olhos e este quase pudor
que o gume do tempo teceu em meu sorriso.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017

Informo todas as minhas Amigas e todos os meus Amigos que vou estar no Forum da Feira do Livro de Braga no dia 7 de Julho, a partir das 17 horas. É um gosto enorme que apareça quem estiver por perto.