Ninguém o viu nascer.
Ortografia do olhar
Seleccionar o ângulo de um rosto, sem lhe macular a luz, como se, a meia voz, pudéssemos reter os múltiplos reflexos do júbilo e das mágoas.
15.12.24
9.12.24
Interação fraterna de Natal 2024
A convite da Amiga Rosélia aqui deixo a minha participação nesta fraterna interacão de Natal
Foi em Belém que se cumpriu o milagre
O mistério da luz que há em nossos sonhos
Ajoelhamo-nos sobre a terra
2.12.24
Memória dos sentidos
Olho para além dos sinais visíveis do horizonte.
Há um caos na trama dos dias apressados.
O pão há muito não tem o sabor da seara.
No verão o aroma dos figos e da urze
já não transpõe a ombreira da porta.
Nos muros caiados a violência do sol
atinge o olhar incauto dos que amam as sombras.
As vozes caladas das mulheres são um áspero bulício
contra as casas com frinchas nas janelas.
Nas mãos de toda a gente lateja um ritmo veloz
um impulso extraviado um gesto evasivo.
Instantes que perturbam a incerta imensidade do tempo.
25.11.24
Em seara alheia
Olho-te e o outono acontece.
Sonhos que não realizámos...
iluminam o teu olhar.
Sonhos quietos, ideais, paisagens
de um ser pós-Moderno à deriva.
Fragmentação e ilusão que velejam
num mar interno e pesado...
A peste, as guerras, quiçá, a fome
espreitam nas noites em que vagueias.
Os predadores afoitam-se nas esquinas
e as urbes esfriam o bafo do verão.
Olho-te e outono acontece
no teu passo mais lento,
no teu olhar mais terno.
Sonharemos juntos, este inverno!
Ana Tapadas
In: Sul Sereno. Lisboa: Europa Editora, 2024, p. 18
18.11.24
Atraem-me os astros
Atraem-me os astros em mutação constante.
Um universo quase encenado na dimensão da vida.
11.11.24
No branco baço dos crisântemos
4.11.24
Pouco a pouco
Fotografia em negativo.
O inverso das cores.
A imagem da imagem
na impossível inclinação
do brilho sobre o tempo.
Pouco a pouco emudeceram
os nomes ausentes da vida.
Nomes demorados na voz
que perduram na suspeita
do olhar do riso do pranto.
Feridas visíveis na luz.
Flores do luto.
Lugares vazios.
28.10.24
Em seara alheia
Segui-te pelas veredas
para me dares a provar
as bagas brancas do bosque.
Desejava os refúgios silvestres
a caruma a suster-nos os corpos
e a longa distância da civilização
à espera de podermos revelar
as pérolas ocultas
nas nossas bocas.
E na surdina do tacto sabermos
que as coisas mais preciosas
só afloram nos lugares furtivos.
21.10.24
Até quando?
Recuam até ao lodo do silêncio.
Sangue engolido devagar.
Escorregadio como algas.
Difuso e seco como o medo.
São palavras sempre sujas
as que lhes agridem o corpo
e lhes laceram a alma.
A fuga é o único recurso
mesmo que o desenredo
seja a solidão ou a morte
tantas vezes inevitável.
Até quando?
14.10.24
Quando os relâmpagos estremecem a terra
7.10.24
Em uníssono
Indagamos, em uníssono,
retalhados por mãos adversas,
para não nos equivocarmos
com o rosto deste mundo
em constante calafrio, em arriscada deriva.
Porque estes são tempos exasperantes
de perder as pátrias e as casas
e os pais e os irmãos e os amigos
e os nomes e a memória.
E nas imensas planícies enegrecidas
é desabrido o som dos que bradam
quando as crianças ensurdecem no silêncio.
A meia-haste, arvoramos a rugosidade
das cinzas e o rasgão do medo,
para não permanecermos alheios
à saturação dos que sangram,
dos que tombam, dos que resistem.
30.9.24
Música
Convoco o rumor das teclas de um piano
em sonata de beethoven.
E ouço o grito intenso do silêncio
o vento enlouquecido
um inaudível lamento
uma luz no secreto rosto de deus.
É o coração seduzido
pela sublimidade da música.
Como se fora água pura
em diálogo com a terra fecundada.
Como se fora prece
a implorar o valimento da vida.
23.9.24
Morte
Em memória dos que pereceram nos incêndios
Identificamos de forma evidente
os detalhes secretos
em que os corpos
sangram cinza sobre a terra.
É o eco mudo de um futuro
em queda ou em voo
concha de vento
vidro frangível
corda imperfeita da vida.
16.9.24
Serão de lume as palavras?
A lua cheia incide-me inteira sobre a face.
As margens das páginas incendeiam-se.
Em movimento estranho,
Na ressonância do silêncio
8.9.24
Atrás do vento
Ainda que não sejam lineares
os caminhos percorridos
já esquecemos aquilo
que em cada etapa
foi tropeço queda
viagem inacabada.
Fincamos os pés sedentários
em avanços e recuos
até que o movimento da vida
nos torna viajantes e aventureiros
sem recear distâncias.
Às vezes corremos atrás do vento
numa espécie de estonteamento
sempre próximos do começo
dos primeiros passos
à procura do lugar onde fica
a casa em que nascemos.
Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 62
2.9.24
Em seara alheia
Lembras-te dos tempos azuis
intermináveis e belos?
Inesquecíveis nos corpos
um só momento e o azul
bêbado de nós;
eram tempos de florir
de partir à descoberta
de dizer sim quando foi sim
a palavra de dizer.
no embalo terno e ousado
dos nossos mistérios?
In: A tempo do tempo. - Lisboa: Poética, 2024, p. 16
26.8.24
Com uma praia na lembrança
quando era absoluta a cintilação do dia.
Havia uma praia com areia muito fina
Havia toldos brancos às riscas azuis.
Havia o prego e as cinco pedrinhas
que divertiam as meninas.
Havia o som de risos e brincadeiras.
Contra o vento flutuava o rigor da luz
em meu olhar tão cheio de candura.
Os rapazes faziam do jogo da bola
o gozo e o pretexto de espreitar
as mais distraídas a vestir o fato de banho.
O mar com ondas sempre enormes
era demasiado belo não fora o banheiro
a enfiar-me a cabeça na rebentação
como num cerco escuro
indiferente ao meu berreiro.
A água que eu engolia fazia descer a maré
tinha a certeza porque depois
a ondulação acalmava dilatando o areal.
E o sol sem pressa tornava os dias
mais longos e memoráveis.
29.7.24
A ociosa lentidão dos sentidos
Retomo pedaços de uma narrativa
em que me reconheço despida de artifícios.
Minhas Amigas e meus Amigos, vou fazer uma pausa. Voltarei a
26 de Agosto. Desejo que passem uns dias tranquilos, com saúde, paz e conforto.
Beijinhos.
22.7.24
Avistamento
a pulsação da mulher
impelia o veleiro.
ulisses avistava ítaca.
Sentia o coração de penélope
e o faro do cão
quase exauridos de esperar.
homero nesta página.
Come se fosse possível escapar
de um malogro inevitável
ou culpar o primeiro silêncio
pela inabilidade da voz inicial.
15.7.24
Inclino o corpo sobre a terra
8.7.24
Em seara alheia
Sabem que cumprem o ofício das amoras:
sangram para o interior.
Depois de cada filho, compõem lentissimamente
o seu chão ainda incendiado pela vida.
Só existem filhos amados demoradamente
se escutarem o apelo vital
vindo das entranhas do coração.
1.7.24
A imperfeição da luz
No rigoroso itinerário da lembrança
a sombra de um lobo espera
instintivamente em teu olhar
que a montanha se erga intacta e branca.
A mesma que trouxeste da infância
e perpetua dentro de ti a neve imaculada.
Contudo foi com um sorriso
deslumbrado e breve
que começaste a amar
a imperfeição da luz perto do mar
enquanto o verão
De O improviso de viver, 2023, p. 30
24.6.24
Intacto azul
17.6.24
Em seara alheia
3.
Ninguém sai ilesode uma claridade prematura.
Este quarto,
insurrecta metáfora
que espreita
a grelha costal do ébano.
O corpo, alambique de harpas taciturnas.
A pele alumiada
pelas habilitações literárias do gume.
Caducou
a biografia de antídotos
que expatriava o limbo.
Ser agora um homem
na potência crucial da bruma.
Arquivo de mitologias nefastas.
Mapa sem alvéolos.
Hora de ponta
no espaço tumoral.
Alberto Pereira
In: Tarkovsky: o sacrifício. Costa da Caparica: The Poets and Dragons Society, 2024, p.68
10.6.24
Noite
Em plena noite delineava-se no chão
a luz derramada pela lua.
3.6.24
O lugar definitivo do silêncio
24.5.24
Adeus, meu irmão, meu amigo
Voltarei quando puder
20.5.24
Em seara alheia
III - 2
Trazes cravado no ventre o amor como um búfalo
uma memória-casa que cresce rente ao rumor dos
moinhos
Trazes o mar / uma pétala / um saguão de Julho
e vazados os olhos em afluentes de espuma
Trazes aberta como um pão
a construção da infância
e no coração / uma casca de tília / uma flor sepulcro
Trazes / no fim do Verão
uma meda de lume
um molusco / uma falésia-gávea
e
campainha-templo de pedra em calma
habitado de estorninhos e de diurnos cálices de vento
distante da cal e da ferrugem
o escafandro-tempo do poema
13.5.24
Sedução azul
Quando
tudo parece sitiar o coração
há
barcos que passam sobre o vigor
da voz
a resgatar aqueles
que
soçobraram nos sonhos.
E os
barcos fazem-se pássaros de fuga
abrindo
o espaço à sedução azul.
É de
pura maresia o ar que se respira
como
se houvesse um sopro cristalino
a
roçar a amarração de âncoras libertadas.
Graça Pires
De O improviso de viver, 2023. p. 43
5.5.24
Um mistério maternal
29.4.24
Uma luz intensa
mistério da luz por entre as casas,
como se em cada casa batesse
um coração a par de outros corações,
ansiosos de caminhos livres.
Agora pertencem ao silêncio
mais nítido as canções, os gritos,
as lágrimas, os detalhes de uma festa
De Era madrugada em Lisboa: louvor a um dia com tantos dias dentro, 2024
22.4.24
Era madrugada em Lisboa
Sem prazo, sem aviso, sem detença,
aconteceu em abril
o mais esperado tempo
e, com ele, o cheiro
da terra que nos pertence.
No contorno deste chão
um grito abraçou o povo comovido
com o assombro e com os cravos.
Reinventaram-se os sonhos
e as palavras fraternas.
Era madrugada em lisboa.
E o dia captou a dádiva da luz matinal
para que cintilasse no olhar de toda a gente.
No clamor de cada rua,
a palavra liberdade
passou de boca em boca,
até ao enrouquecimento da alegria.
15.4.24
Convite para o lançamento do meu novo livro no Barreiro
Para quem mora por perto do Barreiro, convido para partilharem comigo a celebração dos 50 anos do dia 25 de Abril de 1974, no espaço cultural Terceira Margem, com o lançamento deste livro. Vai ser uma festa linda.
Fica aqui um poema do livro:
Era cada vez maior o número
de pessoas em toda a parte.
Em frente do rio, hordas de jovens,
em absoluto desatino,
dançavam como se o corpo possuísse
a extensão de todas as ruas.
Tinham nos pés sem disfarce
o ritmo dos cantares do povo.
Sabiam de cor as quadras, os refrãos
que tinham escutado aos pais e aos avós.
Entoavam-nos em contentamento,
em deslumbre, como se voltassem
à infância e a cidade fosse o colo imenso
onde cabia a vida toda.
Graça Pires
8.4.24
Nunca se tinha visto uma festa assim
O amanhecer foi tão inesperado
que lisboa vibrou em todos os lugares
antecipando o regozijo.
Nunca se tinha visto uma festa assim,
com carros de combate, chaimites,
com os militares e o povo em euforia
a encher cada rua, cada jardim, cada árvore.
E a cidade era de toda a gente.
Havia palmas, vivas à liberdade
1.4.24
Convite para o lançamento do meu novo livro em Lisboa
Foi uma festa de Poesia muito bonita. Muito obrigada a todas e a todos os que estiveram lá. Obrigada aos que quiseram ir mas não puderam. Foi um final de tarde feliz. Bem-hajam.
O livro está em pré-venda através do link:Eram militares.
Eram jovens.
Carregavam no peito
o peso da arma e do receio.
Quantos rezaram?
Quantos choraram?
Quantos vacilaram?
O retrato dos filhos perto do coração.
A imagem da mulher a cercar-lhes o corpo.
As mãos das mães cheias de bênçãos.
E todos tão cheios de coragem!
25.3.24
Perplexidade
Nenhuma simbologia pode explicar
o halo da chama antes da cinza.
A luz queimada na estranheza
de tudo o que perece.
O infinito perene do instante
que se dissolve no colapso do tempo
e no mais evidente alvoroço da vida.
18.3.24
O imenso silêncio dentro de mim
na ansiedade das palavras distantes,
quando, sem aviso, ele se afunda
no meu peito insensatamente,
como se fora um vício antigo
transfigurando as sílabas.
Como se uma inesperada sedução
cristalizasse os poemas que escrevo
de dentes cerrados, cativando a voz.
Como se a linguagem se evadisse
na incompletude dos sonhos.
11.3.24
Em seara alheia
Oração em pleno voo
Sem sequer pensarEu ascendo os degraus
E lanço-me aos céus
E no meu voo nem seguro os cabelos
Que se soltam ligeiros
Como flâmulas
Entre a amenidade das flores
E o aroma dos frutos outonais
Ao subir
A paz e a esperança invadem-me
E deparo com campos de trigais
E cores multicores
No devaneio impensado
Solta-se da boca um beijo
Rasgando os céus
Sei que na minha oração
Uma luz celestial
Tão cândida e serena como
O meu rosto
Se projectará
Nos confins do universo
Amanhã não sei dos voos
Porque só o hoje prevalece
©Piedade Araújo Sol
In: Olhares em tons de maresia, 2013-11-05