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Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta David Mourão-Ferreira

Noite apressada

Era uma noite apressada depois de um dia tão lento. Era uma rosa encarnada aberta nesse momento. Era uma boca fechada sob a mordaça de um lenço. Era afinal quase nada, e tudo parecia imenso! Imensa, a casa perdida no meio do vendaval; imensa, a linha da vida no seu desenho mortal; imensa, na despedida, a certeza do final. Era uma haste inclinada sob o capricho do vento. Era a minh'alma, dobrada, dentro do teu pensamento. Era uma igreja assaltada, mas que cheirava a incenso. Era afinal quase nada, e tudo parecia imenso! Imensa, a luz proibida no centro da catedral; imensa, a voz diluída além do bem e do mal; imensa, por toda a vida, uma descrença total! David Mourão-Ferreira

Vigília de Natal

Desenham-se paisagens sob as pálpebras antes de vir o sono se a vigília ao desejar vestir-se de outra carne em rugosos degraus tropeça ainda Resigna-se a vigília a não ter carne Rende-se o próprio sono ante a vigília E são sempre de neve essas paisagens E é sempre o mesmo Vulto que as habita. David Mourão-Ferreira

Paraíso

Deixa ficar comigo a madrugada, para que a luz do Sol me não constranja. Numa taça de sombra estilhaçada, deita sumo de lua e de laranja. Arranja uma pianola, um disco, um posto, onde eu ouça o estertor de uma gaivota... Crepite, em derredor, o mar de Agosto... E o outro cheiro, o teu, à minha volta! Depois, podes partir. Só te aconselho que acendas, para tudo ser perfeito, à cabeceira a luz do teu joelho, entre os lençóis o lume do teu peito... Podes partir. De nada mais preciso para a minha ilusão do Paraíso. David Mourão-Ferreira

A secreta viagem

No barco sem ninguém, anónimo e vazio, ficámos nós os dois, parados, de mão dada ... Como podem só dois governar um navio? Melhor é desistir e não fazermos nada! Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos, tornamo-nos reais, e de madeira, à proa... Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos... Por entre nossas mãos , o verde mar se escoa... Aparentes senhores de um barco abandonado, nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem... Aonde iremos ter?- Com frutos e pecado, se justifica, enflora, a secreta viagem! Agora sei que és tu quem me fora indicada. O resto passa, passa...alheio aos meus sentidos. - Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada, a eternidade é nossa ,em madeira esculpidos! David Mourão-Ferreira

Os Sinais

I Olhar de frente o Sol Assim se aprendem as letras iniciais da Solidão XI Avermelha-te ó pálpebra da noite para saber se ainda estarei vivo XIII Porque te vou erguendo ó torre de papel se cada vez comigo a sós menos me entendo poemas de David Mourão-Ferreira pinturas de Xue Jiye

Tentei fugir da mancha mais escura

Tentei fugir da mancha mais escura que existe no teu corpo, e desisti. Era pior que a morte o que antevi: era a dor de ficar sem sepultura. Bebi entre os teus flancos a loucura de não poder viver longe de ti: és a sombra da casa onde nasci, és a noite que à noite me procura. Só por dentro de ti há corredores e em quartos interiores o cheiro a fruta que veste de frescura a escuridão... Só por dentro de ti rebentam flores. Só por dentro de ti a noite escuta o que me sai, sem voz, do coração. David Mourão-Ferreira

Ilha

Deitada és uma ilha E raramente surgem ilhas no mar tão alongadas com tão prometedoras enseadas um só bosque no meio florescente promontórios a pique e de repente na luz de duas gémeas madrugadas o fulgor das colinas acordadas o pasmo da planície adolescente Deitada és uma ilha Que percorro descobrindo-lhe as zonas mais sombrias Mas nem sabes se grito por socorro ou se te mostro só que me inebrias Amiga amor amante amada eu morro da vida que me dás todos os dias David Mourão-Ferreira

Segredo

Nem o Tempo tem tempo para sondar as trevas deste rio correndo entre a pele e a pele Nem o Tempo tem tempo nem as trevas dão tréguas Não descubro o segredo que o teu corpo segrega. David Mourão-Ferreira

Natal à beira-rio

É o braço do abeto a bater na vidraça? E o ponteiro pequeno a caminho da meta! Cala-te, vento velho! É o Natal que passa, A trazer-me da água a infância ressurrecta. Da casa onde nasci via-se perto o rio. Tão novos os meus Pais, tão novos no passado! E o Menino nascia a bordo de um navio Que ficava, no cais, à noite iluminado... Ó noite de Natal, que travo a maresia! Depois fui não sei quem que se perdeu na terra. E quanto mais na terra a terra me envolvia E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra. Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me À beira desse cais onde Jesus nascia... Serei dos que afinal, errando em terra firme, Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia? David Mourão-Ferreira

Soneto do amor difícil

A praia abandonada recomeça logo que o mar se vai, a desejá-lo: é como o nosso amor, somente embalo enquanto não é mais que uma promessa... Mas se na praia a onda se espedaça, há logo nostalgia duma flor que ali devia estar para compor a vaga em seu rumor de fim de raça. Bruscos e doloridos, refulgimos no silêncio de morte que nos tolhe, como entre o mar e a praia um longo molhe de súbito surgido à flor dos limos. E deste amor difícil só nasceu desencanto na curva do teu céu. David Mourão-Ferreira

Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol que é feito de ternura amarrotada, da frescura que vem depois do Sol, quando depois do Sol não vem mais nada... Olho a roupa no chão: que tempestade! há restos de ternura pelo meio, como vultos perdidos na cidade em que uma tempestade sobreveio... Começas a vestir-te, lentamente, e é ternura também que vou vestindo, para enfrentar lá fora aquela gente que da nossa ternura anda sorrindo... Mas ninguém sonha a pressa com que nós a despimos assim que estamos sós! David Mourão-Ferreira

Libertação

Fui à praia, e vi nos limos a nossa vida enredada: ó meu amor, se fugimos, ninguém saberá de nada. Na esquina de cada rua, uma sombra nos espreita, e nos olhares se insinua, de repente uma suspeita. Fui ao campo, e vi os ramos decepados e torcidos: ó meu amor, se ficamos, pobres dos nossos sentidos. Hão-de transformar o mar deste amor numa lagoa: e de lodo hão-de a cercar, porque o mundo não perdoa. Em tudo vejo fronteiras, fronteiras ao nosso amor. Longe daqui, onde queiras, a vida será maior. Nem as esp'ranças do céu me conseguem demover Este amor é teu e meu: só na terra o queremos ter. David Mourão-Ferreira