quinta-feira, junho 29, 2006

As crianças




















Só as crianças podem ser felizes,
porque elas não conhecem
o peso do passado.
E, no entanto, há crianças infelizes,
como se tivessem
o ferrete do pecado.

Sobre as crianças, as notícias dos jornais
ou da televisão
o que nos trazem é apenas mais
violência, abandono e solidão.

Não há poesia da infância
que resista perante a dor sem nome
de vermos, mesmo à distância,
um criança com fome.

Só as crianças podem ser felizes
e, no entanto, há crianças infelizes.

(2006)

terça-feira, junho 27, 2006

O essencial












Acrílico sobre tela
Torquato da Luz, 2004/5

Não deixes que o pormenor te roube o essencial.
A vida tem pequenas coisas de que se faz o dia-a-dia
mas o que conta é o quadro que resulta
da mistura de tons entre a alegria e a tristeza.
Não te deprimas nas horas pardacentas
quando tudo ameaça ruir à tua volta
nem te deixes tomar pela euforia fácil
nos momentos em que o destino é um sorriso.

Nada é o que aparenta à primeira vista
e ninguém traz no rosto a verdade inteira.
Por trás de uma expressão cheia de certezas
há por vezes um vulcão de dúvidas
e não é raro que um olhar amável
esconda uma grande desconfiança.

Não deixes que o pormenor te roube o essencial
na frágil fronteira entre o bem e o mal.

(2006)

domingo, junho 25, 2006

Tempo de cerejas










No tempo das cerejas,
aflige-me a ideia
de as não ter todo o ano.
Mas a verdade é que,
se as tivesse sempre,
não gostaria tanto delas.

(2006)

quarta-feira, junho 21, 2006

Mulher na praia








Acrílico sobre tela
Torquato da Luz, 2004

Muitas vezes me tenho perguntado
quem será esta mulher só
que todas as tardes chega à praia
e, sentada sob a sombrinha,
fica olhando o mar.

Talvez busque no azul
resposta para a solidão.

Terá sido criança, amou e foi amada,
mas é claro que sobre isso não sei nada.

(2006)

segunda-feira, junho 19, 2006

Abandono









Acrílico sobre tela
Torquato da Luz, 2006

Dói-me a pressa das horas
que não posso deter
e a vertigem de viver
sem ceder a demoras.

Dói-me a fome voraz
dos dias e dos meses
e o abandono que às vezes
isso me traz.

Dói-me ainda a lonjura
que tudo contém.

Mas uma dor só se cura
se dor maior lhe sobrevém.

(2006)

sábado, junho 17, 2006

Campeonato










Acrílico sobre tela/Torquato da Luz, 2005

Ganhe ou perca, tanto me faz,
não sou deste campeonato.
O meu país é outro, é o país
que sempre quis capaz
de ir além do imediato
e rever-se na raiz.

O meu país não é bandeira na janela,
antes pátria de quantos, dia a dia,
podendo embora às vezes esquecê-la,
vão inventando a alegria
de merecê-la.

(2006)

quarta-feira, junho 14, 2006

Na margem














Acrílico sobre tela/Torquato da Luz, 2005

Fiquei na margem, olhando o rio,
abundante de barcos e de silvos.
Deixei passar as velas, não liguei ao voo
das gaivotas, ao ronco dos motores.

Nem dei pelas pessoas
que se agitavam, quais formigas
prevenindo o Inverno
ou abelhas em busca de pólen.

É que a chuva dissipava
tudo quanto era inútil ou ingrato
e o rio apenas me dava,
original e puro, o teu retrato.

(2006)

segunda-feira, junho 12, 2006

Apenas












Acrílico sobre tela/Torquato da Luz, 2004

Não te vou cobrar nada.
Apenas quero de ti
alento na caminhada
que escolhi.

O que te dei - não dei.
Apenas te devolvi
parte daquilo que eu sei
que me vem de ti.

(2006)

sexta-feira, junho 09, 2006

Rua do Alecrim














Rua do Alecrim, Lisboa/Foto TL, 8.JUN.2006

Não me parece que a Rua do Alecrim
alguma vez tenha cheirado a alecrim.
Mas, enfim,
deve ser de mim,
que entre os cheiros do jardim
prefiro o do jasmim.

(2006)

quarta-feira, junho 07, 2006

Fantasmas











Acrílico sobre tela/Torquato da Luz, 2003
Simples sombras de outras sombras,
eles tomaram de empréstimo
o corpo esquálido, os farrapos que vestem.
Caminham lentamente pelas ruas,
perdidos de si mesmos, de quem foram,
ou agitam os braços, apontando
um lugar de estacionamento,
na mira de moedas para a dose diária.

Vêem-se um pouco por toda a cidade,
entristecendo a paisagem
com o seu ar de quem fugiu de tudo,
inclusive da esperança.

Afastamos os olhos e tentamos
apagar essas sombras de outras sombras.
Mas, rumando a nenhures,
os fantasmas insistem em toldar-nos
a placidez dos dias.

(2006)

segunda-feira, junho 05, 2006

Sina












Acrílico sobre tela/Torquato da Luz, 2004

Podíamos ir, de baraço ao pescoço, até Madrid,
mas nem Espanha já nos quer, tem problemas que cheguem.
Resta-nos, portanto, andar por aí,
sem a esperança sequer de que outros nos peguem.

O rei Sebastião entrou pelo nevoeiro,
com os seus imberbes vinte e quatro anos,
e a Europa, que foi o derradeiro
porto dos nossos desenganos,
quer pontapear-nos o traseiro.

Terão valido a pena Ourique, o Bojador,
o Cabo das Tormentas?
Tudo, afinal, ficou aquém da dor,
entre nuvens cinzentas.

Nem Maio nem Abril (que bem me lembro!)
nos libertam da sina de Novembro.

(2006)

sexta-feira, junho 02, 2006

Os velhos











Acrílico sobre tela/Torquato da Luz, 2004

Os velhos camponeses de que fala Virgílio
semeavam e plantavam,
sabendo embora que não iriam colher.

Hoje sentam-se nos muros,
nos bancos de jardim, à soleira da porta,
desfiando contas de um rosário perdido.

Alguns falam da guerra onde estiveram,
tempo de angústia e sofrimento,
que entretanto se tornou saudade.

Ou, jogando às cartas,
tropeçam no deve e haver
do papel pardo das suas vidas.

Todos carregando o peso
de não saber porquê e para quê.

(2006)