Neste vídeo, a escritora luso-angolana Luísa Fresta fala sobre os livros BOM DIA B.0. e ADEUS BENGUELA, de Gabriel Marques. #bomdiab.o. #adeusbenguela #gabrielmarques #luísafresta #canalliterário #oequadordascoisas
| Desde 2007 | Por Germano V. Xavier | Em memória de Milton de Oliveira Cardoso Júnior | + de 2.200 textos publicados |
domingo, 31 de dezembro de 2023
quinta-feira, 28 de dezembro de 2023
Como se faz um deserto
Por Germano Xavier
após visita a Canudos Velho
Para Ana Carla Guimarães
um deserto se faz
com gente viva abatida
gente cheia de amor
e gente feita de vida
um deserto se faz
com corações soterrados
inundados por sanha humana
gigante e temida
um deserto se faz
não com seca terra ou áspero sol
mas com odiosa opressão
aos menos favorecidos
um deserto,
feito o do sertão baiano-Conselheiro,
se faz com desalmas e muitas ruínas
no Vale da Morte feroz
um deserto se faz
não com o martírio secular das secas
mas com inveja e ganância desmedidas
mas um deserto feito sob o olhar do povo
vingará dentro da paisagem dos tempos
que não morrem
e nenhum deserto findará mais implacável
que o deserto das mentes que mentem
sobre sertanejos sonhos de paz
* Imagem: Google
quinta-feira, 21 de dezembro de 2023
CACOLIQUES, de Tatiana Belinky
quinta-feira, 7 de dezembro de 2023
Relato de um náufrago
Comece a imaginar-se como sendo você um membro da armada marinha colombiana, prestes a embarcar de volta ao seu país, depois de passar os últimos oito meses na região de Mobile, Estados Unidos, esperando que o conserto do destróier de guerra em que você e todos os seus companheiros estavam fosse realizado. Ansioso pelo retorno, você não vê a hora de estar novamente junto a sua família, vivendo sua vida, dentro da mais pura normalidade. Todavia, no retorno você se depara com uma situação inesperada de perigo, o mar está muito revolto, este investe constantemente contra o navio que, sem suportar as más condições do oceano, acidenta-se emborcando um de seus lados para dentro das águas, fato que faz com que oito dos tripulantes sejam atirados ao mar, munidos de nenhum artifício de salvaguarda. Dos oito, apenas um consegue alcançar uma pequena balsa reserva. Este, em melhores condições, ainda tenta resgatar alguns de seus companheiros de viagem, mas sem êxito devido ao mar tormentoso. Aos poucos, você vai perdendo contato com o destróier que, recuperado do meio-tombo, consegue se restabelecer e seguir sua rota natural, o porto de Cartagena.
Os minutos vão passando e você agora olha para todas as direções possíveis e não enxerga mais nada além de um mundéu aquático, repleto de seres misteriosos e imprevisíveis. Você está sozinho e tem apenas um par de remos, a roupa do corpo, um relógio de pulso e mais alguns poucos objetos quase sem nenhuma serventia. Insistentemente você olha para os ponteiros do relógio, confiante de que a qualquer momento algum avião de ajuda ou mesmo um barco de apoio chegará para te apanhar. Você pensa que tudo está sob controle e agradece por toda a sorte. Mas as horas vão sendo vencidas pelo tempo, você sente fome, sede e frio, e nada, absolutamente nada do resgate aparecer. A noite cai e você é um marinheiro à deriva, sozinho sobre as ondas, boiando em seu incerto destino. Experiente e com a teoria do mar fresca na memória, você tenta não se desesperar. Porém, você começa a atravessar dias e noites na mais plena solidão, luta contra as necessidades do corpo, contra tubarões que lhe envolvem a balsa em horas pontuais, contra a fadiga da alma, começa a ter alucinações, sofre desmedidamente com a proximidade da morte, resguarda-se já quase inconsciente de tudo que o rodeia, enquanto as águas verd'azuis do mar insistem em te levar para algum lugar.
No décimo dia, com a pele espocada pelo sol, debilitadíssimo, você abre os olhos e vê ao longe o formato da costa. É terra, você exclama! De súbito, você retira forças extras de não sei onde e salta ao mar para o nado triunfal. Incansável, desejando a vida, você vence o oceano e chega à praia, onde desmorona quase morto. Você está em Mulatos, pequena aldeia colombiana. Alguns moradores acodem em seu resgate. Aos poucos você vai melhorando e é descoberto pelas forças nacionais. Você é o único sobrevivente do acidente acontecido com o destróier A.R.C. Caldas. Você é Luís Alexandre Velasco e a partir de agora é o mais novo herói da Colômbia. Você conta a história ao mundo do jeito que o governo mandou que você contasse, o mundo a reconta de variadas formas, você ganha rios de dinheiro, você é “proclamado herói da pátria, beijado pelas rainhas de beleza, enriquecido pela publicidade...” Você é Luís Alexandre Velasco, o mesmo que depois de todo o alvoroço resolve ir à redação do jornal El Espectador para contar a verdadeira face dos acontecimentos sucedidos em 28 de fevereiro de 1955. Um jovem repórter iniciante, de plantão, de nome Gabriel José Garcia Márquez, a partir dali iria te ouvir em vinte sessões de seis horas ininterruptas. A revelação da verdade causaria um frisson em todo o país. O segmento político fora atingido, Velasco passaria de herói a vilão em poucas horas, seria “logo abandonado pelo governo e esquecido para sempre”, enquanto que Gabo, apelido do repórter, entraria num exílio sem previsão de fim.
A história é verídica e foi contada nas folhas do periódico El Espectador em 14 capítulos, ao estilo folhetim. Na ficha catalográfica, Relato de um náufrago é classificado como sendo uma biografia. A bem da verdade é que Gabo constrói uma bela grande-reportagem – não seria melhor taxá-lo de um romance-reportagem? -, aos moldes dos grandes expoentes do movimento New Journalism norte-americano. Com tradução de Remy Gorga, Filho e com ilustrações de Carybé, o livro é um bom início para quem quer investir sua leitura na obra mágica do Nobel colombiano, autor do mais que clássico Cem Anos de Solidão. E então, quer saber o que realmente aconteceu em alto-mar? Comece a ler agora mesmo...
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Relato de um náufrago. 34ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
sexta-feira, 3 de novembro de 2023
O MENINO GRAPIÚNA, de Jorge Amado
quinta-feira, 2 de novembro de 2023
Sobre "Todas as coisas sem nome", de Walther Moreira Santos (uma impressão)
Um dica: para chuvas amarelas internas, é sempre bom andar sem guarda-chuva.
quarta-feira, 4 de outubro de 2023
ALADIM E A LÂMPADA MARAVILHOSA (As Mil e Uma Noites), recontado por Tatiana Belinky
terça-feira, 3 de outubro de 2023
De que metal somos feitos?
* |
(Editora Cepe, 2013) |
domingo, 1 de outubro de 2023
CASA AFRÂNIO PEIXOTO (LENÇÓIS-BA/CHAPADA DIAMANTINA)
domingo, 24 de setembro de 2023
Viver sobre duas rodas
Por Germano Xavier
Poucas pessoas no mundo
sabem ou desconfiam que tomei gosto pela leitura, pela leitura mesmo!, lendo – “devorando”,
seria o melhor termo - revistas sobre automóveis e/ou assunto semelhantes, como
motociclismo, antigomobilismo, automobilismo... Numa época ainda desprovida de
computadores e sem a febre atual dos smartphones movidos à internet de fibras
ópticas e bandas largas, ler o que víamos ou tínhamos acesso nas bancas de
revista ainda era uma espécie de solução rápida e menos custosa.
Não sei precisar qual foi o ponto de partida, mas o certo
é que era sempre uma espera ansiosa pela próxima revista do mês, que chegava
ali no interior baiano um pouco antes que nas bancas. Essa era a grande cartada
para se optar pelas assinaturas anuais ou bianuais. Eu tinha as minhas
preferidas: Quatro Rodas e AutoEsporte. Foi no fim de minha infância e no início
da adolescência que comecei, então, a curtir a ideia da liberdade e da
velocidade, como elementos de prazer e de “desobediência civil”, claro, anos
mais tarde aflorados no imaginário e nas ações cotidianas.
Apesar da maior
parte das leituras terem sido sobre carros, foi a motocicleta a grande paixão
adolescente daqueles idos. A moto era, por assim dizer, um sonho bem mais
próximo, diria. Alimentei o desejo de possuir uma até o momento em que comecei
a ganhar meus primeiros centavos de Real na vida como professor. Foi quando,
num dia bonito de minha juventude, saí com uma motocicleta novinha em folha de
dentro de uma concessionária na cidade de Jacobina-BA. Nem bem terminei de assinar
toda a papelada, caí na estrada com ela.
Lembro-me do coração feliz dentro de minha caixa
torácica, do vento na pele, da pista passando rente aos meus sapatos gastos, eu
me sentindo como a me mover num tapete mágico como daqueles dos melhores e mais
famosos contos da Arábia... Aquele dia está, sem dúvidas, entre os dias mais
felizes da minha vida. A sensação era quase indescritível e só saberá medi-la
quem já passou por algo semelhante envolvendo o mesmo assunto e mesma
maquinaria. Podem falar o que quiserem, mas a moto é sim uma invenção fenomenal
– e fenomenológica, por que não? - em todos os seus simbolismos intrínsecos,
até mesmo quando o debate se cerca dos perigos que envolvem tal veículo.
Mas não seria tão gostoso andar de moto se não fosse ela,
a moto, um risco móvel ambulante. Gostamos do que é arriscado, do que nos causa
medo, daquilo que, porventura, tira-nos do sossego ou daquilo que nos apavora,
de certo modo. São muitos e diversificados os clichês que englobam moto e
motociclista, mas nem sempre precisamos tê-los como manifestações erráticas ou
errôneas sobre quem faz do motociclismo parte do seu inteiro-viver. A própria expressão
“viver sobre duas rodas” é baliza para inúmeras problemáticas e para egos feridos,
óbvio.
Todavia, acredito que a “vida sobre duas rodas” tem sim
os seus encantos e privilégios. No instante em que aceleramos nossas motos, tornamo-nos
senhores dos caminhos e enfrentamos ventos, chuvas, todos os tipos de
obstáculos ou acidentes geográficos. A possibilidade de nos mover e de transportar
nosso corpo e nossa alma para os lugares mais comuns, incomuns ou os mais
distantes é por si só uma das maiores maravilhas do estar vivo no mundo, do
estar-com-o-mundo e do ser-no-mundo. Sobre uma moto, ouvindo o ronco de um
motor cujos pistões sobem e descem logo abaixo de suas pernas, explodindo o
combustível que lhe resta, o que impera é apenas o ir e, só depois, o chegar. Cada
ida é um medo vencido. Cada chegada, uma nova pessoa feita dentro de si, mais
forte e mais poderosa.
Sou motociclista desde os meus tenros anos de adolescência,
agora muito mais compenetrado e sabedor de todas as consequências e temores que
abarcam tal prática e gosto. Menos eufórico, mais consciente. Mas ainda louco
pela estrada e por todas as suas bifurcações, metafísicas e metafóricas. A estrada
é o inimaginável, o esconderijo dos destinos incertos, a mãe de todas as
paisagens. Para se chegar a algum lugar, é preciso sempre atravessá-la. De preferência,
sem pressa, claro. A estrada, como uma lei, atinge-nos, ataca-nos, sem piedade.
A estrada pede, dia após dia, que a vençamos. E, principalmente, que não a menosprezemos.
Ser a estrada, eis o segredo.
* Imagem: https://blog.pantaneirocapas.com.br/estradas-para-andar-de-mota/
terça-feira, 12 de setembro de 2023
CRIANÇAS NA ESCURIDÃO, de Júlio Emílio Braz
sábado, 9 de setembro de 2023
eu tenho um verso
Por Neuma Rozendo e Germano Xavier
I
me conte seu verso
o mais querido
ou o mais desprezado
aquele que você rasgou ontem
depois jogou na lata do lixo
me conte o homem
o menino e a mulher em você
me conte o velhinho
que sai de moto aos noventa
cantando pneu e horizontes
me conte seu verso
pra eu fazer de meu
pra eu jantá-lo com café
vendo aquele filme
que vimos juntos
me conte seu verso
pra eu interpretá-lo inapropriadamente
e convenientemente esquecer
todo o contexto
e o resto da existência
me conte seu verso
secreto, quente, abraço, colo
choro, sofá para dois, lembranças
arte milenar em uso comum
me conte seu verso
pra lavar a alma (da Penumbra).
(Neuma, Campinas, 20/10/2024)
Para Xavier, o poeta dos altos silêncios.
eu tenho um verso
esquecido no Tempo
de minha paciência
um verso avesso
um verso sem terço
um verso no verso
do Temporal
que diz à menina
em rima pobre
caída
no leito do rio
que é o texto
você me conhece
você me decifra
você me reforma
e isso me basta
de um modo inteiro
na noite de agora
no dia de quando
as coisas em sendo
a ordem exata
sem data
sem nada
só sendo e tal
eu tenho um verso
sedento e seco
que compra a vida
sem medo e real
(Germano, Caruaru, 27/10/2024)
Para Neuma, a poeta-penumbra.
LITERATURA BRASILEIRA DOS ANOS 1930, 1940, 1950, 1960, 1970, por João Fernando André
segunda-feira, 4 de setembro de 2023
Os versos grávidos de Maíra Ferreira
domingo, 13 de agosto de 2023
JAVALIS NO QUINTAL E OUTRAS ESTÓRIAS, de Ana Paula Maia
domingo, 23 de julho de 2023
A senhora das manhãs
Por Germano Xavier
Uma
senhora perambula pela avenida onde costumo fazer caminhadas com uma sacola
plástica contendo ração para gatos e cães. Sempre que saio do meu apartamento,
geralmente antes das seis da manhã, e passo pelo local, ali na parte final do
muro de uma faculdade de Direito instalada no bairro há anos, faço demorar mais
meus passos e fico a observar o ritual daquela mulher.
Com
uma calma estrondosa, ela deita a sacola no chão e abre-a lentamente. Como num
rompante, gatos e gatas se aproximam caminhando pelos altos muros, cachorros e
cadelas em situação de rua aparecem dobrando esquinas e vencendo logradouros,
afoitos e brincantes. Logo, todos estão reunidos ao lado dela. Esperam,
pacientemente, ela terminar de ajeitar potes e completar a água que restou do
dia anterior.
Automaticamente,
como se soubessem já os gatilhos do “estão liberados, podem comer e beber!”,
aninham-se como irmãos de fome e de sede, numa fotografia de rara beleza e
harmonia. São muitos. São para mais de dez. Os animais vez ou outra param,
entre uma mordida e outra no alimento, entre um gole e outro na água, para
olhar aquela altiva senhora que agora inicia o fechamento da sacola e os
ajustes finais de seu rito. Eles parecem agradecer com os olhos.
Ela
permanece ali, ao lado dos caninos e dos felinos, por um bom momento. Um
instante muito singular. Ajusta alguma coisa que saiu do lugar, encaminha
olhares para os mais magrinhos, deixa um carinho naqueles que mais se
aproximam. É uma cena realmente muito bonita. De uma grandeza e de uma
naturalidade incomuns. Aquela senhora ama estar com eles e, certamente, eles
sentem o mesmo.
Não
vi isso acontecer uma ou duas vezes no mesmo local. É uma imagem constante, como
já falei, que abre as minhas manhãs com uma esperança desmedida na humanidade
(ou no que restou dela). Depois de toda a movimentação, ela sai de mansinho
quando ainda poucos terminam de comer. Gatos e gatas a olham de cima dos muros,
cães emparelham-se a acompanhá-la por um bom trajeto, até ela se embrenhar por
um pequeno trecho de chão batido e mato ao redor.
Não
sei o que a move nem os reais motivos para tal esforço diário. Sua presença,
para mim, naquele setor da avenida por onde passo com certa frequência, é como
a de uma entidade mística, alguma deidade superior, que precisa ser resguardada
dos perigos e das infâmias, para assim poder realizar o milagre imperativo de
seus dias: o da distribuição gratuita de compaixão e de amor.
É
ela a senhora das manhãs. Quando ela some do horizonte de meus olhos, aperto o
passo outra vez, com um conforto insólito instalado em meu coração e em minha
alma. Os gatos e as gatas somem de vista, os cães partem para seus dias nas
ruas da cidade. Os carros também passam velozes. A manhã passa. Até a vida
passa. Mas passa bem melhor agora.
* Imagem: https://www.nationalgeographic.pt/meio-ambiente/as-mentes-dos-caes-e-dos-gatos-afinal-o-que-sabem-eles_2229
sábado, 15 de julho de 2023
A COR DE CORALINE, de Alexandre Rampazo
Neste vídeo, o professor e jornalista Germano Xavier fala sobre o livro A COR DE CORALINE, de Alexandre Rampazo. #acordecoraline #alexandrerampazo #literaturainfantojuvenil #canalliterário #oequadordascoisas
segunda-feira, 3 de julho de 2023
O monstro-criança de Mário Rodrigues
sábado, 24 de junho de 2023
TEORIA U, de C. Otto Scharmer
domingo, 18 de junho de 2023
Em tua garganta
Por Germano Xavier
você entendeu
que a semente se enraíza dentro
das entranhas do corpo
e me engoliu
com a sede das ervas
que se danam
e que dançam ao vento
meu líquido fez brotar
em você
nada menos que um instante eterno
* Imagem: https://pixabay.com/pt/photos/l%C3%A1bios-sedu%C3%A7%C3%A3o-sexy-eliciar-839236/
sábado, 17 de junho de 2023
PANDEMIA: COVID-19 E A REINVENÇÃO DO COMUNISMO, de Slavoj Žižek
sábado, 10 de junho de 2023
Toda vez
Por Germano Xavier
toda vez
que invado
a tua bunda
que é Templo
feito o mar
toda vez
que nela entro
venço o Tempo
algo que sempre me pareceu
impossível
* Imagem: https://pixabay.com/pt/photos/er%C3%B3tico-gl%C3%BAteos-molhado-nua-3139549/
quinta-feira, 8 de junho de 2023
MARÇO - MÊS DAS MULHERES | Indicações de leitura, por Cristina Seixas
sábado, 3 de junho de 2023
A voz de Anna Akmátova
As emoções da razão.
Sim, os russos também sofrem. Os russos também confessam suas dores, seus amargores, seus dissabores. Os russos, apesar da sisudez e do aspecto aparentemente indiferente às coisas do coração e da alma, também comem do pão que o diabo amassa, diariamente, nos quatro cantos da Terra. Os russos, por fim, também sentem felicidade. E a literatura, mais uma vez funcionando como poço de guardações, opera um de seus papéis primordiais: revelar um tempo determinado, dotado de pormenores sígnicos, ou um mundo de símbolos, mesmo que a partir dos sentires de uma só pessoa, de um só poeta, de um só escritor.
Anna Andrêievna Gorienko, nascida em 23 de junho de 1889, adotou o nome Anna Akhmátova e com ele fez registrar uma das passagens mais belíssimas da poesia russa moderna. De opiniões fortes e de atitudes tidas como ameaçadoras para a época, Akhmátova desempenhou papel fundante para a consolidação da voz feminina na Rússia pós-revolução de 1917. Vivendo num tempo marcado pela opressão dos vários modos de expressão humana, a poeta de “soberana presença, nariz aquilino e lábios altivos” – como gostava de dizer - não se deixou corromper pela gratuidade das fraquezas e das rendições da rotina.
Mesmo sofrendo durante toda a sua vida males diversos, muitos de base emocional, a poeta abotoou seu casaco, saiu à rua e fez frente ao frio das horas. Anna não copiou modelos poéticos para criar sua lírica, não imitou suas precedentes russas para germinar seu discurso de luta pela classe feminina, não precisou se ancorar em cânones para aparecer diante de seus leitores. Ela simplesmente deu origem a um novo modo de fazer poesia, agora mais intimista, sem deixar de prezar pelo despojado de recepção rápida. Linguagem clara, versos desrimados, ausência de metáforas, temáticas do cotidiano, ritmo aberto e alígero são algumas das características gerais presente em toda a obra da artista.
Os poemas de “Noite” (Viétcher), seu primeiro livro, destacam-se por serem responsáveis pela elaboração de uma fase inicial muito mais baseada na consciência crítica da autora frente a sua própria vida e aos acontecimentos que, por um ou mais motivos, chegaram a interferir no curso normal de suas respectivas vivências. O apreço à reflexão sobre si mesma indica uma maturação da mulher enquanto ser de ação, que agora não só pensa o pensar, mas também pensa o agir do pensamento, ou seja, a sua atuação no meio em que se vive.
Apesar de se apresentar com uma carga muito grande de intimismos – o que pode ser confundido com uma espécie de fraqueza sentimental -, “Noite” encerra uma idéia generalizada sobre as transformações envolvendo mulher e sociedade, a partir do momento em que fica presente a participação desta voz feminil na tomada de decisões que o cotidiano lhe implica, seja ele familiar ou social. Uma mulher que sente as dores de um matrimônio mal resolvido e que tem no sarcasmo e na ironia prováveis armas para combater o mal que lhe assola são os caminhos mais utilizados pela artista, que também explora os espaços do vazio, do arrependimento e da frustração.
“Rosário” (Tchiôtcki), seu segundo livro, diferente do primeiro, já deixa mais evidente uma voz humana mais consciente de si mesma e do outro, mais centrada nos efeitos dos problemas vividos que perdida na visão do que deles poderiam vir a suceder ou suas causas. Em versejos simples e velozes, Anna vai se permitindo conhecer perante o seu leitor, como em: “... componho versos bem alegres sobre a vida caduca, caduca e belíssima”. Uma vida lhe atormenta, e esta vida faz-se necessária estar exposta, não para o usufruto da lírica da poeta, mas para o aprendizado da alma de um tempo pelos olhos alheios. Há uma espécie de desenvolvimento dos temas que foram matéria basal para seu livro inaugural, com apelos agora mais voltados à paciência e ao agir tolerante, sem o abandono de sua marca rebelde, contrastante da maioria, que reluta, indiferente às tiranias.
Anna Akhmátova escreveu mais de uma dezena de livros em vida, e muitas antologias de sua obra já foram organizadas e publicadas em diversos países. Entre os títulos, estão Revoada Branca, Tanchagem, Anno Domini MCMXXI, Junco, Réquiem: um ciclo de poemas, Sétimo Livro, Poemas Não-Coligidos e sua obra-prima Poema sem Herói. Deixou a certeza de que a palavra é um instrumento eficazmente feroz quando objetiva limpar as frestas de um tempo feito para se esquecer lembrando.
sexta-feira, 2 de junho de 2023
FLÁVIA E O BOLO DE CHOCOLATE, de Miriam Leitão
sábado, 20 de maio de 2023
“SIGAMOS, BUCANEIROS!” – a história de uma parceria com Germano Xavier
14 dezenas de textos
partilhados n’O
Gazzeta,
ao longo de 10 anos
Tomei contacto com o
blog pessoal de Germano Xavier, O Equador
das Coisas, em 2013. Não imaginava então a firme parceria que daí nasceria
e se iria consolidar, semana após semana, através do blog coletivo O
Gazzeta. Hoje, volvidos 10 anos, festejamos entusiasticamente com os
leitores e todos os companheiros que publicam neste espaço.
Na altura dava eu os
primeiros passos no mundo da escrita, sobretudo na imprensa. Começava a
levar-me um pouco mais a sério, quero dizer, pois cultivo o hábito de escrever
desde criança, mas de uma forma episódica e descomprometida. Nessa altura, em
2013, pensei em participar em projetos literários em vários países lusófonos,
para além das minhas duas mátrias: Angola e Portugal.
Se, por um lado,
existem afinidades naturais com outros países dos PALOP[1], por partilharmos língua,
aspetos históricos e culturais, por outro lado há uma ligação forte ao Brasil,
país ao qual nos unem igualmente laços seculares e que para mim sempre foi uma
referência em termos de literatura.
Já o mencionei noutros
contextos, mas relembro aqui que durante a minha infância e adolescência, mesmo
não tendo muitas vezes água, eletricidade nem acesso a bens de primeira
necessidade, por causa da guerra, em Angola, tínhamos livros de bolso, entre os
quais se contavam obras de Jorge Amado, Érico Veríssimo ou José Mauro de
Vasconcelos. Essas obras são parte da minha identidade como leitora.
Assim, foi em 2013 que
Germano Xavier me abriu as portas da sua casa literária, O Gazzeta, uma vez que O Equador
das Coisas era um blog pessoal que eu continuo, aliás, a seguir com o maior
interesse, dada a sua qualidade e multiplicidade de temas.
Não nos conhecíamos,
mas a reação foi muito calorosa, de tal maneira que não me senti escrutinada
nem censurada e comecei a enviar-lhe regularmente alguns textinhos, mesmo com
fragilidades, que ele aceitou de coração aberto. Sobre livros, cinema, pintura,
música, algumas criações próprias também (ficção), em prosa. Assim nasceram,
nomeadamente, as séries dedicadas ao cinema africano, ao cinema lusófono, contos-crónicas
agrupados com a designação genérica de Memórias
Inventadas e Ficha de Leitura (resenhas), a mais recente das séries,
sendo que todas estão ainda em aberto, principalmente esta última.
Percebi depois que
Germano é o tipo de pessoa que ensina sobretudo pelo exemplo. Professor,
escritor e jornalista, de um dinamismo singular, tornou-se ao longo do tempo
num parceiro literário inestimável. Mostrou-se um colega experiente e original,
sem medo de arriscar, porém prudente e sensato, coerente e persistente. Com o
tempo tornou-se um amigo ímpar, mais novo na idade e mais velho no saber,
capitão de uma frota de navios: não sei, sinceramente, como consegue capitaneá-los
com tanto equilíbrio, segurança e destreza.
Sinto-me orgulhosa por
estar incluída em várias iniciativas com a sua assinatura. Neste caso, falando
de O Gazzeta, o motivo da celebração
é o facto de contar agora com cento e quarenta textos meus no blog, prova de
grande generosidade do seu fundador, que abriu o espaço inicialmente dedicado à
Chapada Diamantina a outras regiões e países, estimulando a diversidade de
estilos, saberes, assuntos e pontos de vista.
O mais recente texto (meu)
no blog, até ao momento, é uma resenha de “Vidas Seguintes”, de Abdulrazak
Gurnah (Ficha de Leitura). O primeiro é “O mundo de Vinicius”, editado a
25 de novembro de 2013, que marcou o início desta longa e feliz colaboração.
Pelo meio temos
desenvolvido outras experiências literárias singulares. Atrevi-me a traduzir
algumas séries de poemas de Germano para francês (As árvores amorosas, O homem encurralado, As coisas minhas de Sophia
e finalmente Trompetes para Ennio, entre
outros textos poéticos sem etiqueta). São traduções não revistas que resultam
apenas da forte vontade de tentar outra orquestração para poemas
fundamentalmente belos e densos, joias únicas que me inspiram particularmente. Criámos
também um projeto que se alimentou do quotidiano: Entre Mares e Marés,
Conversas Epistolares: uma troca de missivas que durou cinco anos, entre
dois personagens (Clara e Viana, nossos outros antropónimos) e que nos
representam, a mim e Germano; cartas magnificamente ilustradas pela Cristina
Seixas, desenhadora/ilustradora ligada à corrente Urban Sketchers e professora luso-angolana, que agora é também parceira
no blog e no canal do Youtube O
Equador das Coisas. A primeira carta data de 24 de abril de 2015
(Germano concedeu-me o pontapé de saída!). E começa assim:
“(…) Viana?
Sei
que ficarás surpreendido com este primeiro recado. Nem ouso chamar-lhe carta.
Sabes, a bem dizer, não escrevo uma desde os anos 80. Apenas notas, palavras
dispersas, ideias caóticas amarradas à força umas às outras, letras ao vento.
Mas não uma carta no sentido de relatar minudências, trivialidades, falar de
coisas que só para mim têm algum relevo e que talvez te despertem também a
atenção. Tu tens olhos de ver e não te ficas pela superfície. (…)”
Tenho ainda que
referir que Germano apresentou um livro meu de poesia (Março entre Meridianos) aquando do lançamento da edição lisboeta,
em julho de 2019, junto com os poetas Manuel Iris (mexicano e americano) e
Cíntia Gonçalves (angolana).
E como foi isso
possível, uma vez que nenhum dos três vive em Lisboa? Resolvemos o “problema”
de forma prática: esses textos foram lidos no local pela Carol (minha filha),
pela Maria Fernanda Silva (poeta portuguesa) e pelo amigo Olímpio Neves, com o
seu bonito timbre de rádio.
Para mim foi
importante ter todas essas pessoas que tanto estimo e respeito à minha volta,
os autores dos textos e quem lhes deu voz. E também uma oportunidade para
consolidar a aventura literária com Germano, que ao longo destes anos tem
apresentado diversos textos críticos e vídeos com a sua leitura do meu
trabalho.
Após sete anos de
convivência e troca de experiências tivemos a oportunidade de nos conhecermos
pessoalmente e de estreitar laços com os respetivos familiares. É um privilégio
dado a poucos, um presente da vida.
Nos últimos anos tive
ainda a alegria de traduzir para francês os seus livros de poesia O Homem
Encurralado e Esplanada do Tempo, ambos com a selo da Penalux, a
circular no Brasil na forma de edições bilingues (português-francês) em
diversas plataformas. Foi um presente maravilhoso que me concedeu o poeta e que
não me canso de agradecer. Estes dois livros, que integram a trilogia do
Centauro, uniram-nos também aos poetas Regina Correia e Luís Oseth
Carvalho, cujos textos abraçam as duas obras de um modo singular.
Para terminar, agradeço
calorosamente, não apenas a Germano Xavier, pela abertura e ensinamentos, pela
tolerância, mas também a todos os companheiros/as e amigos/as que fiz ao longo
destes anos através de O Gazzeta, aos
colegas redatores, oriundos das mais diversas áreas. Os vossos textos e vídeos
são fonte de aprendizagem e também de bem-estar. Aprender pode e deve ser
prazeroso e divertido.
E também,
necessariamente, a quem nos lê, apoia, vê e escuta, com paciência, curiosidade
e mente aberta, no blog e no canal.
Espero ter ocasião de
contribuir durante mais dez anos, pelo menos, com a mesma alegria e energia,
junto de companheiros de jornada e amigos tão brilhantes quanto surpreendentes,
na sua humanidade e pluralidade cultural e geográfica.
Luísa Fresta
Queluz, 18 de maio de
2023
Nota: este texto é uma adaptação do artigo
escrito a 9 de outubro de 2020, para assinalar cem textos meus no blog O
Gazzeta.