quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

CHÃO DE KANÂMBUA, de Tomás Lima Coelho


 

Neste vídeo, a escritora luso-angolana Luísa Fresta fala sobre o livro Chão de Kanâmbua, do escritor angolano Tomás Lima Coelho. Fique atento!

#tomáslimacoelho #chãodekanâmbua #luísafresta #canalliterário #oequadordascoisas

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Sobre o Martín Fierro, de José Hernández



Por Germano Xavier



“A ovelha não bale quando é morta; revira os olhos.”


BORGES, Jorge Luís; GUERRERO, Margarita. O “Martin Fierro”. Porto Alegre: L&PM, 2005.


Em parceria com Margarita Guerrero, o escritor Jorge Luís Borges escreveu o seu parecer crítico acerca da obra Martín Fierro, de José Hernández. Num primeiro momento, os autores supracitados investem em um olhar sobre a dita poesia gauchesca, que para eles tanto reflete a vida dos gaúchos quanto escancara a existência de muitos “homens da cidade” identificados com os hábitos e com a linguagem dos pampas. Este laço está descrito na presença de inúmeras batalhas e guerras regionais, que colocaram lado a lado homens citadinos e homens da campanha, porventura nos papéis de aliados ou de inimigos. E não sendo a arte coisa vã, uma nova forma de sonho se deu nas tintas de Hernández, haja posto.

Passeando por diversas fontes que analisaram, de uma ou outra maneira, tal obra e tal personagem, Borges e Margarita sugerem que o mito de Hernández fora “criado” num tempo anterior por Lussich, mas que o próprio Martín Fierro também o ajudou a se tornar no que é/foi desde a sua publicação. Cabe aqui salientar que José Hernández foi um homem sem grande achaques, com atributos e convicções aparentemente normais para um escritor territorialmente instalado em tais paragens espaço-temporais, nascido a 10 de novembro de 1834 no distrito de San Martín.

Borges e Margarita "retiram" a pecha de caracterização épica dada por muitos ao livro de Hernández, apesar da obra se aproximar bastante das formalidades de uma epopeia. O personagem Martín Fierro é um gaúcho bravio, que é levado para os fortins das fronteiras e por lá passa três sofridos anos. Quando regressa, aturdido e revoltado por motivos até justificáveis, percebe que perdeu a mulher para outro homem e que seus filhos se perderam pelas vastidões mundanas. Fierro, daí em diante, transforma-se da água para o vinho e se revela um touro-homem quase que indomável. A sociedade, então, logo o rotula de marginal, de delinquente.

Os críticos pontuam, também, a existência do sobrenatural na obra de José Hernández, e acrescentam ainda que é por esse e outros fatores que Martín Fierro faz parte da literatura tida como duradoura, que é capaz de vencer o tempo a todo custo. O personagem se atira num frenesi tresloucado, misto de violência e vingança, e termina por escancarar a besta, a fera, a fúria humana. Sobra, pois, até para a figura do índio, colocado em postura de malfeitor dentro do texto. As coisas do coração, o sentimento, a paixão, por sua vez, são colocadas numa dimensão de escanteamento no trotar dos versos de José Hernández.

Martin Fierro é tido por muitos, intelectuais ou não, literatos ou não, como o livro máximo da Argentina, o livro que resume a figura emblemática do gaúcho ao pé da letra, o livro de um povo do sul. Parece ser o que Dom Quixote é para os espanhóis e o que a Chanson de Roland se tornou para os franceses, ou o que a Ilíada é para os gregos. Decerto que se transformou num exemplar privilegiado do cânone local. Para Borges e Margarita, mesmo com ressalvas várias, Martín Fierro é talvez o único livro que pode ser apontado como tal. Um poema-romance, épico, que exige perfeição das personagens, mas que também sabe conviver com e potencializar suas imperfeições. O personagem Martín Fierro, assaz-assim, será sempre uma entidade contraditória, pois muito além das ações que cometeu em sua jornada está a sua ética e a sua estética da coragem, que, muitas das vezes, nem pensa em pedir perdão.


* Imagem: https://www.deviantart.com/marcelosam/art/The-Gaucho-186264252

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

LONGE DA MULTIDÃO, de Thomas Hardy


 

Neste vídeo, a artista visual e professora angolana Cristina Seixas fala sobre o livro Longe da Multidão, do escritor inglês Thomas Hardy. Fique atento!

#thomashardy #longedamultidão #cristinaseixas #canalliterário #oequadordascoisas

Sobre Março entre Meridianos, de Luísa Fresta



Por Germano Xavier


MARÇO ENTRE MERIDIANOS (EAL, 2018) é o terceiro livro de Luísa Fresta - ou melhor, de Muhatu (seu pseudônimo) - e foi o vencedor do Prêmio de Poesia no Feminino "UM BOUQUET DE ROSAS PARA TI", organizado pelo MAAN - Memorial Dr. António Agostinho Neto, em Angola no ano de 2018. O livro é dividido em três "cadernos": Caderno 1 (Cartão-Postal), Caderno 2 (Versos natalinos e outras histórias de (en)cantar) e o Caderno 3 (Palavras pintadas na tela).

Em Cartão-Postal, percebemos uma autora preocupada em revelar os centros de pequenas coisas, os núcleos sísmicos de elementos que fazem a vida de todas as pessoas, mesmo que estas fontes interiores e, por vezes, ulteriores de e acerca da vida sejam ou estejam integradas à própria faculdade vital do ser humano: o viver, o estar vivo-e-além. Neste Caderno 1, a poeta fotografa o caos, registra os medos de nós-gentes e articula a madeira que fará o fogo-máximo de nossas idas e vindas, de nossas descobertas e de nossas decepções. O soneto é a porta de entrada formal para a voz quase maternal da autora, que nos ensina a sentir mais, mais e mais. 

Os versos são dotados de uma maior liberdade no Caderno 2, intitulado de Versos natalinos e outras histórias de (en)cantar, Muhatu nos questiona se a felicidade é um bônus ou uma guilhotina. É a hora de tombarmos por cima das farturas e das fraturas dos símbolos mundanos, referenciar o sagrado nas coisas triviais e bulir com o absurdo das naturalidades cotidianas oriundas de convenções sociais e institucionais. Tudo isso, regado com uma boa dose de maturidade artística e pessoal. Aliás, ensinagens não faltam nas páginas do livro e na obra geral escrita por Luísa Fresta.

Já em Palavras pintadas na tela, a escritora quase ignora o real para nos abrir um mundo de percepções suavemente surreais, quando no tempo das intermitências e das incertezas da vida, colocando-nos numa posição de combate e, também, de respeito perante o tempo futuro. Afinal, o que faremos da vida que nos resta? O que estamos fazendo com o nosso Hoje, com o nosso Agora? Aquela velha batalha já por demais esgotada e profética: cada dia que passa é um dia a menos, não um dia a mais. Luísa Fresta é, por fim, a voz de uma infância revista e ressonhada, cheia de memórias e refundada em anunciações. 


* Imagem: Acervo Luísa Fresta

domingo, 27 de novembro de 2022

A CIRANDA DAS MULHERES SÁBIAS, de Clarissa Pinkola Estés


 

Neste vídeo, a economista alagoana Rebeca dos Anjos fala sobre o livro A Ciranda das Mulheres Sábias, da psicanalista e poetisa Clarissa Pinkola Estés, autora do já consagrado Mulheres que Correm com os Lobos. Uma jornada permeada de metáforas que tem como mote principal homenagear a força e a beleza das mulheres. Fique atento!

#acirandadasmulheressábias #clarissapinkolaestés #rebecadosanjos #canalliterário #oequadordascoisas

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

O sol na cabeça (da literatura?)



Por Germano Xavier


MARTINS, Geovani. O sol na cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


Visitei o Rio de Janeiro por duas vezes até hoje. Da última vez, o motivo maior foi o de prestigiar um show de Maria Bethânia no espaço Vivo Rio, evento por pouco cancelado devido a uma chuva torrencial que caiu sobre a cidade durante aqueles dias. A primeira vez foi no ano de 2012. Sozinho atravessei em voo os céus brasileiros e, através de um convite de uma amiga, daquelas da gente guardar para sempre no coração, pude conhecer de perto a Cidade Maravilhosa, segunda capital do país e berço de muita cultura desses nossos rincões tupiniquins. 

Nesta oportunidade, tive o prazer de conhecer a cidade histórica de Paraty em dias de FLIP - Feira Literária Internacional de Paraty, cujo homenageado do ano era nada mais nada menos que Carlos Drummond de Andrade, um de meus escritores diletos. Em Paraty, fiquei hospedado numa pousada bastante aconchegante na Ilha do Araújo, rodeado de muito verde e azul. Já na metrópole carioca, lembro que fiquei hospedado no Sesc Copacabana, ali pelas imediações da Rua Domingos Ferreira, a alguns passos de distância das praias mais famosas do lugar. 

Entre um ou outro passeio, em deslocamentos bastante saudosos, via, ao atravessar a pé os entroncamentos e as esquinas daquelas ruas, o horizonte próximo ser pintado em cores vivas de comunidades/favelas por todos os lados, numa dissonância bastante peculiar e já traço definido da terra que hospeda a sede do meu time do coração, o Clube de Regatas do Flamengo. Andando pelo centro ou caminhando em direção à barca que nos levaria à Niterói, também deu para ver, ainda com mais clareza, o tamanho real de tantos contrastes sociais, estampados fielmente nos semblantes das pessoas e na toda-matéria visual que meus olhos absorviam. 

Conto tudo isto para dizer que o Rio de Janeiro das favelas não é o Rio periférico, não. É o Rio orbital. O Rio solar, mesmo. O Rio-Astro-Rei. O Rio que impera sobre os outros Rios. Esta foi a minha primeira constatação, quando num pensativo instante me prostrei diante da estátua de Drummond ali pelo Posto 6 da orla de Copacabana. Todo um sistema planetário, onde pessoas transitam em massa, com suas sedes e suas fomes universais é o Rio de Janeiro. Um mundo contado com bastante simplicidade e honestidade através das letras do jovem escritor Geovani Martins, que sambou suas palavras às vistas do leitor num misto de oralidades com pandeiros mambembes acompanhados de retratos gravemente sérios de um sistema de sociedade de escanteamentos e opressões/repressões. 

Para o autor supracitado e motivo destas minhas impressões, o Rio é o próprio centro das atenções, das ações e das reações. O Rio do sol que aquece a cabeça das centenas e das milhares de pessoas dali, e que nos projeta para além via holofotes globais. Uma literatura onde não há o que supor, o que imaginar, o que solicitar. Só sentir, o clima, a barra que é viver. Só viver, viver-com, a Vida, mesmo sabendo que tudo é ainda em maior intensidade do que o narrado. Nas pouco mais de 100 páginas de seu livro inaugural estão os cariocas, as favelas, as drogas, as relações sociais, a realidade, a violência, o presente e o futuro repleto de passados. Pecado de um escritor em início de carreira esta falta de potência narrativa? Não vem ao caso tal discussão. O livro teve uma campanha de marketing exagerado? Melhor deixar isso para outro momento. Leia O SOL NA CABEÇA, de Geovani Martins, e se sinta na pele de um carioca da gema, armado até a tampa de um olhar nada trivial.


* Imagem: https://racismoambiental.net.br/2018/07/10/a-inspiracao-por-tras-do-livro-aclamado-de-geovani-martins/

sábado, 19 de novembro de 2022

A FELICIDADE CONJUGAL, de Ben Jelloun


 

A escritora luso-angolana Luísa Fresta comenta o livro A Felicidade Conjugal, de Tahar Ben Jelloun.

#afelicidadeconjugal #luísafresta #benjelloun #oequadordascoisas

Os amarelos olhos mortos de Bruno Liberal



Por Germano Xavier


Autran Dourado, prestigiado escritor brasileiro nascido em Minas Gerais, dizia que “a única coisa que um autor tem de verdadeiramente próprio é o corpo” e que “em cada autor há uma série de pequenos autores”. Se pensarmos que o “corpo” ao qual o autor supracitado se refere nada mais é que o texto, o “seu” texto, isso ganha de chofre um tom de necessidade e, por conseguinte, de requisito básico para a atividade literária dita de excelência. Encontrar a tal da “pulsação narrativa”, a citar aqui o conceito tão difundido pelo grande pernambucano Raimundo Carrero, autor de romances  muito respeitados pela crítica literária nacional, é deveras um desafio enorme para quaisquer escritores. Na maioria das vezes, demora-se uma eternidade para encontrá-la e, quando encontrada, mostra-se fugidia e arisca ao menor dos ventos.

...

Um homem velho que não aguenta mais a vida, um outro homem que mata a enfermeira e tudo parece permanecer normal, uma mulher solitária que afoga suas mágoas em uma piscina, o sonho interpretado por quem sonha o sonho, o desamparo de personagens várias... tudo isso há no livro de contos OLHO MORTO AMARELO, de Bruno Liberal, goiano radicado em Petrolina-PE, onde morei durante 5 anos. A obra, vencedora do I Prêmio Pernambuco de Literatura, realizado no ano de 2013, facilmente pode não entrar para a lista dos melhores compêndios de contos dos últimos tempos, porém revela o encontro do autor com o domínio de seu próprio texto, de sua própria verve ou veia literata. As estórias pulsam sobre uma ponte de brandas sensações e a narrativa, ao fim da leitura, ergue-se envolta em uma nuvem de mistérios e suspeições, o que para um conto é quase sempre um ponto positivo.

Tal ligação é feita com singular destreza que todas as pequenas narrativas presentes no texto se entendem com o leitor prontamente, pontualmente. Há um estilo, uma forma de amar as palavras e os olhos de quem lê não se perdem no vazio das páginas. Liberal conhece a intimidade de cada cena e comanda com talento as personagens. Vozes se entrecruzam, verbos agem com sutileza, as frases se harmonizam. Um problema é então criado, sempre ao término dos contos. Um problema ousado, disfarçado de sobriedade na escrita, que se alarga silenciosamente pelos campos da representação. Pequenos dramas são indefinidos, para o bem geral dos leitores. Como se Liberal tocasse um sax contemporâneo de som instantâneo e tão oculto, mas tão oculto, que somente com ouvidos bem treinados poder-se-ia evitar o inevitável das significações.





* Imagens: https://pixabay.com/pt/olho-parede-horror-arrepiante-3383682/
http://editora.cepe.com.br/livro/olho-morto-amarelo

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

5 poemas do livro EVANGELHO BANTU, de Kalunga (João Fernando André)


 

A escritora luso-angolana Luísa Fresta lê 5 poemas do livro Evangelho Bantu, de Kalunga (João Fernando André).

#especialjaneiro #joãofernandoandré #angolaecaboverde #oequadordascoisas

sábado, 5 de novembro de 2022

Três vezes Mariana Basílio (ou Impressões sobre o livro Tríptico Vital)




Por Germano Xavier



"Um final não se responde,
Ainda que finde."
(M.B.)


Mariana Basílio, autora do livro Tríptico Vital (Patuá, 2018), é também a mãe-voz dos livros Nepente (Giostri, 2015) e Sombras & Luzes (Penalux, 2016). Mariana é a pintora e a pintura de um universo poético muito particular e, ao mesmo tempo, coletivo, pelo qual orbita sua palavra e todo o seu poder de observatório: a Vida e tudo o que nela se inicia e/ou finda. Para que esta jornada se prostrasse de maneira mais sensível e palatável aos seus leitores, Mariana escolheu dividir seu mais recente livro em um objeto trifásico - daí a imagem de um tríptico.

De uma proposta que beira a absurdez, tamanho o gigantismo do percurso escolhido - nada menos que, como supracitei, a vida inteira de nós-todos, seres humanos. Em DA EXISTÊNCIA, primeira fase do tríptico, Mariana invade todos os úteros possíveis (Terra, Dor, Cor, Sentido, Homem, Mulher...) e caotiza o fenômeno da abertura inaugural da vida, e até de bem antes, quando ainda éramos/somos apenas uma ideia ou nem isso. E se não há esconderijos, se não há para onde fugir uma vez nascido, o negócio é viver. É assim o começo, que na verdade também é já um fim. Mas do que se trata "viver"? O que é "viver"? Há um sentido nisso tudo se a vida é também a certeza de uma morte próxima e até inesperada? Tal eclosão é dolorida, é sonora, é corada. Tem o sangue dos milênios. O nascer é também um grande sertão. Ser-tão vital.

DA EXPERIÊNCIA, segunda fase tríptica, é sobre a caminhada propriamente dita, sobre os passos, sobre a pujança amadurecida por dentro, sobre uma estagnação perceptiva: a de que estamos indo, mas para onde? Sobre uma pegada já instaurada socialmente ou sobre uma vontade de revolta. A esquina para a direita ou para a esquerda. Um estudo sobre o protagonismo e sobre a resiliência nossa de cada dia. Sim, assim mesmo, um lugar recheado de clichês, não da obra, mas os clichês das vidas que simplesmente vão sem rumo certo para lugar-algum-nenhum. O que perseguimos é colocado sobre uma mesa de discussão. Mariana anatomiza as sanhas, as iras, os recrudescimentos, os instantes de felicidade, as minúcias. Conclusões, decisões e argumentos são debatidos. Mariana põe a mão sobre o mundo e, feito uma ventríloqua, manipula com destreza de aranha tecedeira o não-manipulável, o que nos foge ao alcance dos olhos-nossos-nus de tudo para-sempre.

Na terceira fase, intitulada de DA EXTENSÃO, a autora faz jus ao título e expande todo o panorama normal sobre o fim ou sobre as possibilidades dos fins, pois há na poesia de Tríptico Vital um espaço exclusivamente destinado para o além-morte, mesmo que ainda em tons de segredo ou de uma outra gravidez místico-misteriosa ainda não inspecionada suficientemente. Há um passeio, um tour pelo fundo de todos os poços, um safári por todas as nossas de-composições e re-composições, um diálogo com os mais impressionantes círculos da existência e da resistência mundana. Mariana rompe o breu, amadurece o atordoamento e indetermina, sábia que é, todas as rotas. Tudo isto, com uma classe e um fundamento poético de densidade raríssima em nossos dias. 



breve entrevista com a autora


Germano Xavier: Mariana, desculpe-me, mas eu devo a você uma exclamação após a leitura do seu mais recente livro, o TRÍPTICO VITAL: Que livro, mulher! Fazendo uma alusão e retornando ao seu “Rebento”, poema do seu primeiro livro NEPENTE, eu lhe pergunto: sua intenção ainda é a pura essência?


Mariana Basílio: Não, pelo contrário. Vivo o que atualmente é a concretude do que desenvolvo, no sentido de contexto social e aporte filosófico. Penso que não há essência, ao menos como conceito permanente ou imaterial, que caiba na corpulência do que é a vida em sua materialidade. A pureza, no sentido da palavra, é então feita para ser desfeita. Voz-por-voz, a poesia tem essa função primordial: transformar o que existe em algo ainda inexistente – seja como sensação ou como ideia e resultado.


Germano Xavier: Tríptico Vital é uma imensa jornada pelo ser humano e pela vida dividida em três fases também amplas e complexas. Que fim temos (teremos), Mariana? Que trajetória seus versos implicam?

Mariana Basílio: Tríptico Vital foi meu primeiro exercício literário escrito em uma tomada só, um poema longo, escrito cronologicamente, apresentado cabralinamente: cada subseção e seção apresentam uma luta e uma disputa do eu-lírico, permeado de outras vozes e do passado e presente da humanidade em sua ideia de futuro (que sempre acaba por acontecer). Nesse sentido, é mesmo uma jornada. Como me disseram em janeiro, é uma espécie de épico pós-moderno. Eu gostei da observação, não tinha visto por esse lado. É também minha ideia poética que procura estabelecer diálogos com A Negação da Morte, de Ernest Becker – assim como com as indagações trazidas da morte, o canto pela morte, de Hilda Hilst.

Quem souber que fim teremos, por favor, se apresente em minha residência, a minha casa dos lírios. Será recebida(o) com festa!

Meus versos implicam, entre outras possíveis reflexões, um dos sentidos principais de todos os que já tentaram ou escrevem poesia: emancipar pela palavra os sentidos indizíveis da própria existência, a partir de nossa realidade social.


Germano Xavier: Mariana, a possibilidade de existência para além dos elementos que perpassam a ideia que sabemos/temos a respeito da vida e da morte sempre lhe foi muito ativa em tua poesia. Percebo que o Tríptico Vital também pode ser visto como um esforço seu em se aprofundar neste panorama. O que há de concreto neste meu pensamento?

Mariana Basílio: Tem muita verdade em sua observação. Mas o Tríptico Vital eu não vejo como um esforço, foi mais um processo naturalíssimo de estabelecer um diálogo com o silêncio da minha própria persona de uma forma mais filosófica e crítica, como se eu procurasse apontar para refletir o que seria, enfim, esse retrato da morte em mim. O que fui, o que sou, o que serei? O que, afinal, nós somos? São questões que me acompanharam durante toda a vida, e provavelmente ainda me assombrarão até o fim.

O flerte entre vida e morte para mim é a forma natural do crescimento, a partir do momento em que eu soube que deixaria de existir. Eu me recordo até hoje da sensação, eu era uma criança de oito/nove anos. E fiquei espantada, de mover as nuvens pelos dedos.


Germano Xavier: Fale-nos um pouco mais sobre o processo de elaboração, de escrita e de publicação deste teu belíssimo e profundo Tríptico Vital, Mariana.

Mariana Basílio: A ideia do livro aconteceu após minha residência artística na Casa do Sol, da Hilda. Era outubro de 2014. Nomeei o livro e o projeto surgiu na sequência disso, como um sopro. Costumo escrever livros assim: primeiro o nome (o insight), logo o projeto do livro (o que também pretendo transmitir nele), e depois a escrita (e sucessivas lapidações).
Como o livro surgiu na Casa do Sol, pela inspiração do lugar e coisas que vi e lá vivenciei, além da descoberta da leitura de A Negação da Morte – um dos livros de cabeceira da Hilda – resolvi dedicá-lo a ela, que tanto se intrigava com a temática da elaboração e desenvolvimento (finitude) da vida humana como eu.

Em 2017, fui contemplada com o edital do Prêmio ProAC 32/2017 do Governo de São Paulo para criação literária e publicação dele em 2018. Assim, me aprofundei na escrita da obra, e acabei descartando mais de cinquenta poemas esparsos iniciais, porque percebi que não eram o que buscava com o sentido do livro.

Então, em certa noite de outubro de 2017, tive um insight derradeiro: meu livro seria um poema longo dividido em três partes, com início, meio e fim da vida da eu-lírico. Seria um diálogo entre problemas sociais, filosóficos, existências, particulares e coletivos, em meio a possibilidade da morte que nos pertence.


Germano Xavier: Por fim, quem é a escritora/poeta Mariana Basílio após ancorar no oceano da literatura um Nepente, um Sombras & Luzes e um Tríptico Vital? Há caminho de volta para quem se volta à poesia, Mariana? O que esperar da Mariana para o futuro?

Mariana Basílio: Sou apenas uma autora que vive para procurar a sua verdade, o que sou enquanto possibilidade, enquanto ainda existo. Ainda que seja completamente insuficiente procurar a vida a partir do teatro do absurdo que é fazer/ser literatura.

Mas diariamente continuo fazendo o que mais amo: lendo diferentes autores, traduzindo, construindo a minha verve autoral. Sinto que escrevi ainda pouquíssimo, tão pouco, isso me frustra.

Verdade seja dita: eu detesto meu primeiro livro (Nepente), o tenho como um esboço mal executado, mas necessário para que eu assumisse meu lugar no mundo; o segundo livro (Sombras & Luzes) eu acho até perdoável – em partes, pois ainda estava bastante influenciada pelos estudos dos movimentos literários que me envolvem na formação (como se eu ali buscasse a minha identidade); já no Tríptico Vital sinto que surjo mais regular e autêntica na autoria, pois amadureci mais o meu olhar do mundo, o meu trajeto pessoal também.

O que esperar da Mariana? Nada. Toda expectativa gera frustração.

Só posso dizer que trabalharei cada dia mais intensamente para trazer projetos diferentes. Tudo até aqui é apenas um começo do que espero publicar nos próximos anos, seja no que preparo no campo da tradução (Anne Sexton, Gabriela Mistral, Sóror Juana Inés de la Cruz), seja no romance (meu primeiro livro de prosa deve ser publicado em meados de 2020), ou na própria poesia (meu provável próximo livro, Megalômana, deve sair em 2021).






Mariana Basílio é prosadora, poeta, ensaísta e tradutora. Nascida em Bauru, interior de São Paulo, em 1989. Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Autora dos livros de poesia Nepente (2015) e Sombras & Luzes (2016). Colabora em portais e revistas nacionais e internacionais, tendo traduzido nomes como May Swenson, Alejandra Pizarnik, Anne Sexton, Edna St. Vincent Millay, Sylvia Plath e William Carlos Williams. Com patrocínio do prêmio ProAC (2017) do Governo de São Paulo, publicou em 2018 seu terceiro livro, o poema longo Tríptico Vital (Patuá). O projeto também foi finalista do programa de Residência Literária do SESC (2018). Mantém o site www.marianabasilio.com.br.


* Imagens: Acervo da autora e http://www.literaturabr.com/2018/12/10/triptico-vital-a-grande-aventura-humana-por-mariana-basilio/

JUNG E O TARÔ - UMA JORNADA ARQUETÍPICA, de Sallie Nichols


 

A economista alagoana Rebeca dos Anjos estreia no canal literário O EQUADOR DAS COISAS explanando sobre as percepções do Tarô, feitas a partir do pensamento de Sallie Nichols, autora do livro Jung e o Tarô - Uma jornada arquetípica. Rebeca irá nos apresentar, a partir de hoje, um mundo de possibilidades diversas e caminhos múltiplos em prol da iluminação humana. Fique atento!

E seja muito bem-vinda, Rebeca!
#jungeotarô #sallienichols #rebecadosanjos #canalliterário #oequadordascoisas

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Sobre berços e memória: o testemunho de Selbor

*
Por Germano Xavier

Demora muito para a gente nascer de verdade – se é que nascemos de mentirinha algum dia. Eis o lugar ao qual chegamos quando se termina de ler SATOLEP, de Vitor Ramil: o berço. O Barão de Satolep, travestindo-se de Selbor, fotógrafo que resolve voltar a respirar seus natalícios caminhos após 20 anos de sumiço pelo mundo, envereda-se por um álbum de memórias congelado, repleto de mornas dores e clandestinos espantos, com os quais objetiva uma sangria baseada no retrato das perdições de um simples ser humano, sensível por natureza.

Em determinado momento, Selbor refresca-se com uma frase do seu amigo Cubano (alusão ao escritor Alejo Carpentier), que diz: “Se tivéssemos viajado puramente através da intensidade da luz e do rigor da paisagem, estaríamos agora penetrando em seu detalhe. Desembarcamos na estação das coisas essenciais”. Percorrendo o que chamou de “grande círculo”, Ramil nos faz embarcar em nossas respectivas reminiscências, impactando novos descobrimentos aos olhos leitores e fazendo brotar flores em meio à náusea cotidiana de nossas existências. Chega uma hora que temos de aprender a ver, como requer seu irmão em determinada passagem do livro. Ver para ver além, ver para ver aquém, ver para simplesmente ver. Obrigatório aprendizado.

É realmente difícil conseguir chegar onde nunca se esteve antes e mais difícil ainda é chegar onde se imaginou ter estado outrora. Existem cidades construídas no solo das ilusões. Existem pessoas que viveram/vivem em cidades que nunca existiram na realidade. Talvez seja o meu caso com a pacata e chapadeira Iraquara, no interior baiano, com a qual mantenho uma relação dual que vai do amor ao repúdio em questão de dois ou três pensamentos. Satolep é um amargo doce para o fotógrafo do livro, que tenta captar uma existência incapaz de se materializar sob a luz vermelha de seu laboratório. “Às vezes, o lugar onde queremos chegar fica exatamente onde estamos, mas precisamos dar uma longa volta para encontrá-lo. O senhor foi na direção do mundo, eu vim para Satolep”, relata Selbor.

Sem se esquivar das trevas nem das luzes diárias, Selbor encara o tempo de frente numa escaramuça duradoura imprópria para corações imaturos. Tendo como sibila a figura do escritor gaúcho João Simões Lopes Neto, Selbor aponta a lente de sua câmera para as janelas de nossas almas e para as paredes de nossos corpos. O que se revela sob a luz vermelha de seu laboratório é antes a imagem branca do mundo, preenchida de nossos vazios tão sedentos, ancestrais e imorredouros. “De repente, sobreviver era insistir na busca de um lugar para pôr os seus restos”. Todavia, é em Satolep que Selbor irá encontrar as formas, cheiros e cores de que tanto precisa para seguir vivendo, mesmo sendo, por vezes, formas sem cantos, cheiros sem encanto e cores sem carinho. Não havia o que fazer, a não ser entrar naquele trem cujo destino era o calor geométrico das coisas.

Este texto foi escrito após a leitura do livro SATOLEP, de Vitor Ramil.


* Imagens: Google.

ELE, de Mailson Furtado


 

Impressões sobre o livro ELE, do escritor cearense Mailson Furtado. #ele #mailsonfurtado #poesia #oequadordascoisas

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Assim escreve André Balaio | ou Olhos sobre "Quebranto"




Por Germano Xavier


Tenho feito um exercício bastante peculiar nos últimos anos e isso não é novidade para ninguém que acompanha este O Equador das Coisas há algum tempo: ler ao máximo a nova literatura pernambucana para, primeiramente, entender um pouco mais acerca deste espaço territorial nordestino que, antes de ser o estado natal do meu velho pai, é hoje o lugar onde gasto a minha vida desde o fim de 2013, quando vim morar em Caruaru, cidade do interior situada à região meridional do setor agreste. E, em sendo assim - não tinha como ser diferente -, o Prêmio Pernambuco de Literatura (agora Prêmio Hermilo Borba Filho), assim como as publicações da Cepe Editora, sempre foram dois grandes norteadores para esta minha atividade, convenhamos, ainda recente de pouco mais de 5 anos. 

Todavia, alguns autores locais, terminaram por fincar raízes em editoras além-Pernambuco, como é o caso de André Balaio, autor de QUEBRANTO (Patuá, 2018), seu premiado livro inaugural, eleito Melhor obra de ficção escrita em 2018 pela Academia Pernambucana de Letras - APL.  Para minha grata surpresa, QUEBRANTO se mostrou um livro bastante convincente dentro de uma seara temática por demais explorada na literatura brasileira e, também, universal, e que possui grandes representantes espalhados pelos séculos e séculos da tradição literária. Mistério, quase-terror, segredos sombrios, desvendamentos, ilusões, revelações e manobras que beiram ou beijam o surreal-real são alguns dos líquidos preciosos que dão vida ao corpo de um dado corpúsculo engendrado nas teorias do fantástico e do noir impresso no papel pelas mãos treinadas, lúcidas e operantes de André Balaio. 

QUEBRANTO é um livro simples (eu disse simples, não simplório), bom de ser lido, que conta com um forte apego e um amplo prestígio ao rápido endereçamento do leitor ao clímax das narrativas expostas, sem deixar de causar um alumbramento necessário ao interlocutor ao longo da leitura transcorrida, como se feito a partir da melhor receita para brumas e névoas: a desfaçatez. O "nocaute" cortazariano é dado por Balaio aos flancos, de leve, quando menos se espera dele um soco ou um chute, com golpes lentos porém contundentes, nunca de frente, escancarados feito jebs desfloradores e nada criativos. O significado é o que parece importar ao fim, ou o rumo a uma dada cosmovisão, mas o caminho, justamente a graça de todos os percursos, é a ordem máxima dos passos dados pelas personagens, verossímeis de tão reais - ou vice-versa.

A respectiva obra é um alerta para nossos sonos diários, nossas malemolências vitais, nossos desacreditamentos. Humanos que somos, introjetados num sistema de vida de trejeitos nefastos e soturnos, maquinados dentro de afazeres sem sentido pleno, perdemos a capacidade de ver além, como se fôssemos acometidos por uma catarata eterna que nos oprime e nos cega dia após dia, noite depois de noite. Destarte, deixamos de ver a Beleza, o Real, o Mítico, o Filosófico, o Rude, a Bondade, o Desperdício, a natureza de todas as coisas e de todos os sentimentos... aí vem e se alteia e se altera Balaio e nos devolve o fantasmagórico de nossas jornadas que um dia chegarão ao fim - mesmo tudo permanecendo -, o que está pelas nossas costas, um tempo de olhos bem abertos, em brasa sempre acesa. 

André Balaio, nos 13 contos do livro, tende sempre a tirar a pelagem das inúmeras civilizações alheias a nós-todos, que vagam pela vida e pela morte e por todas as outras dimensões possíveis, populações inteiras construídas a partir da mesma matéria do escuro, da noite, do breu total, do que é ainda opaco ou translúcido e de tudo aquilo que não enxergamos ou que certo dia deixamos de vislumbrar. Sabedor de toda a jogatina e de toda a lida contista, Balaio age feito um alfandegário: bole-bole, separa-separa, escolhe-escolhe e, de quebra, ainda nos desloca desses "mundos-todos" para cenários bem pernambucanos, como sítios, fazendas, usinas... Resultado de tamanha arquitetura? Um livro com virtudes próprias, exato, ativo e leal ao que se propõe. Enfim, mais um belíssimo exemplar desta nova literatura pernambucano-nordestina que está aí a vencer fronteiras outrora tidas como intransponíveis e/ou irredutíveis, apesar de nossa larga tradição (a dos escritores do Nordeste) em derrubar todos os muros que, porventura, teimaram em nos atravancar o caminho.


breve entrevista com o autor



Germano Xavier – “Os homens de imaginação – eles vibram facilmente demais e são de sua natureza tempestuosos”, frase presente em Correspondência, de Eça de Queiroz, datado de 1885. Você concorda com tal afirmação? Quem é e como se porta o escritor André Balaio perante as possibilidades de vida e de morte ante o caos criativo?

André Balaio – A vibração existe, é necessária, vem do pathos criativo e do atrito com a vida. O caos surge diante da incerteza e da inevitabilidade da morte. Mas é preciso dar forma. Escrever é uma tentativa de organizar o caos. Extrair dele algo novo e questionador.

Eu, como escritor, busco uma conexão baseada na identificação e no encantamento. Preciso que o leitor sinta o que os meus personagens sentem, que os compreenda, que as histórias dos personagens de alguma forma o atinjam. Uma vez uma pessoa que leu o Quebranto, que aliás um ótimo poeta, me disse que não conseguia tirar um conto da cabeça. Ele não explicou o motivo, mas esta informação se bastou para me deixar contente. Não existe maior recompensa para um escritor do que marcar a lembrança de um leitor.


Germano Xavier – O mesmo Eça de Queiroz, neste mesmo livro supracitado, disse que “um livro de contos é um livro ligeiro de emoções curtas”. O que você pensa sobre esta assertiva, Balaio? E por que o conto? Quais os motivos para esta escolha?

André Balaio – Não acho que as emoções sejam curtas. Elas são condensadas, reprimidas. Precisam ser moldadas num espaço curto. Talvez por isso mesmo sejam tão intensas: estão a ponto de explodir, de fazer a tampa voar.

A opção pelo conto foi justamente essa capacidade de acertar o queixo e levar a nocaute (obrigado, Cortázar). O arrebatamento. Também influiu o fato de serem histórias surgidas quase na mesma época e que, apesar de tão diferentes entre si, tinham a mesma ideia do sobrenatural e do fantástico como ruptura diante da normalidade.


Germano Xavier – Lendo o seu QUEBRANTO, remontei-me a uma tradição muito peculiar a nós, amantes da boa literatura, produzida por nomes como J. J. Veiga, Horacio Quiroga, Isabel Allende, Guy de Maupassant, H. P. Lovecraft e, claro, o grande mestre Edgar Allan Poe. De onde veio a matéria-prima do seu primeiro livro de contos, Balaio? Quais as tuas fontes primárias de inspiração? E de que forma você se deixa influenciar por elas?

André Balaio – “Os Cavalinhos de Platipanto” de J. J. Veiga é uma fonte à qual sempre retorno. O mesmo acontece com vários contos e poemas de Poe. Maupassant e Lovecraft são referências importantes da minha formação. Há também Shakespeare, com a erupção emocional dos personagens. Na busca de uma linguagem precisa e cortante, Graciliano Ramos precisa ser lembrado. Cortázar vem com a sensação de estranhamento frente ao insólito, da quebra da realidade em pedaços que não mais se colam. “A Casa Tomada”, aliás, é um dos contos estrangeiros que mais gosto. Existem muitos outros autores como Raimundo Carrero, Herman Melville, Juan Rulfo, Guimarães Rosa (“A terceira margem do rio” é meu conto brasileiro preferido), Lygia Fagundes Telles (o “Seminário dos ratos” é grande lembrança) e Hilda Hilst. Todos também estão por ali, espreitando de alguma forma.

Talvez seja um enorme lugar comum dizer que a matéria-prima da minha escrita esteja nos livros que li, nos filmes e peças que assisti e nas pessoas com quem convivi, mas é isso mesmo, são essas as principais fontes. Hamlet inspirou o conto “O resto é silêncio”. Paulo Honório de “São Bernardo”, personagem que muito me assombra, foi referência para um personagem de “Eu sou o filho do homem”. Uma história maravilhosa da família da minha esposa foi a base para “O lado de lá”, e quando a ouvi pela primeira vez parece que ela pedia para ser escrita. Por fim e não menos importante estão minhas relações familiares e meus demônios que de um jeito ou de outro se entranham no que escrevo.


Germano Xavier – Albert Camus disse, certa vez: “Não desejo mais ser feliz, e sim estar mais consciente”. Entendo que a literatura tem esse papel, também, o de despertar consciências. Você acredita nisso, Balaio? Se sim, que tipo de consciência o seu livro QUEBRANTO ou a literatura em si pode despertar nos leitores?

André Balaio – Escrevo para tocar algum nervo do leitor. A emoção, se não é superficial, pode levá-lo a uma pequena revolução interna. Esta revolução deve despertar a consciência. Não acredito que a arte tenha outro papel que não seja o impacto estético. Este impacto pode levar à reflexão e à consciência.

Apesar dos meus contos serem narrativas fantásticas o que mais procurei foi a dimensão humana dos personagens. As inadequações dos personagens, diante das vidas que levam e da morte, geram a tensão. E é no momento no momento da ruptura que surge o elemento fantástico. São quase sempre pessoas comuns colocadas em situações limite. Situações geralmente provocadas por quem está próximo: o pai, a mãe, o filho. Meus fantasmas não são distantes e misteriosos, são próximos, muito próximos, e estão sempre à espreita.


Germano Xavier – Fale-nos um pouco mais sobre o processo de elaboração, de escrita e de publicação deste teu QUEBRANTO. Como você enxerga o cenário atual da literatura brasileira? Em quê apostar daqui para frente?

André Balaio – Quebranto foi escrito durante aproximadamente três anos num processo de aprendizagem e de amadurecimento como autor. Foi quando passei a ver a escrita de uma forma mais intensa e várias questões surgiram. Os contos não são fotografias antigas que encontrei numa gaveta e colei no álbum. Foram pensados com uma ideia de unidade. Quase todos têm o conceito que o téorico Tzvetan Todorov apresenta em seu “Introdução à literatura fantástica”: o fantástico baseia-se na dúvida. Aquilo de fato está acontecendo ou é fruto da perturbação do personagem? Coloquei essa questão em pessoas que podemos encontrar na rua, no banco, num consultório médico. Meus personagens são agricultores, advogados, mendigos, jornalistas, fazendeiros, estudantes, office boys, comerciantes, usineiros. Todos se encontram em situações limite. E é aí que o fantástico se apresenta.

Com relação ao cenário atual da Literatura no Brasil, vivemos um momento interessante de mudança. Há muitos autores publicando por editoras independentes ótimos livros que não se encontram nas livrarias. Mas há uma falta absurda de leitores, principalmente os de boa ficção. Ainda lembro de quando O Nome da Rosa e Memórias de Adriano eram bestsellers e falávamos deles como hoje falamos de uma série de sucesso da Netflix. O grande desafio é formar novos leitores e chegar aos que existem. Para isso, é preciso colocar o livro debaixo do braço e partir para o corpo a corpo.




Obs: o livro pode ser encontrado no site da Editora Patuá.


* Imagens: https://zinebrasil.wordpress.com/2018/03/09/andre-balaio-lanca-quebranto-na-casa-cultural-villa-ritinha-em-recife/

VÍRUS, de Monja Coen


 

Impressões sobre o livro VÍRUS, escrito por Monja Coen. #vírus #monjacoen #pandemia #oequadordascoisas

domingo, 23 de outubro de 2022

Sobre os livros que não lemos



Por Germano Xavier


Tenho muitos livros. Li muitos livros em bibliotecas espalhadas pelas cidades onde residi ou passei alguma temporada (quase nenhum no interior de livrarias - não consigo, mas acho bonito quem realiza esta prática). Li muitos livros que nunca tive em minha casa, em minha biblioteca particular. Do mesmo modo, li muitos dos livros que possuo. Houve uma época em que meu quarto quase não me cabia mais, de tantos livros que eu guardava dentro dele. Muitos outros livros que li, doei e/ou sigo doando. Outros que nem li, também resolvi passar adiante, por um ou outro motivo. Apesar de entender que os nossos livros ajudam a contar a nossa própria história, acredito hoje ser repugnante a ideia de privar outras pessoas do maravilhoso contato com os livros, ainda mais em se tratando de livros que, talvez, você nem se interesse mais em ler e que certamente ficariam em suas estantes por longos anos em processo de hibernação, inativos, como forças mortas.

Quem gosta de ler sabe que um dos grandes dilemas da vida de um leitor é saber-se incapaz de ler todos os livros supostamente imprescindíveis apenas numa vida, ainda mais diante dessa aligeirada relação vital contemporânea à qual estamos todos imersos, quase sempre baseada em trabalho, afazeres diversos, culpas, mea-culpas, tempo, dinheiro, sobrevivência e curtos espaços de nós-para-dentro-de-nós-mesmos. Em assim sendo, a gestão do conhecimento é uma habilidade cada vez mais importante em nosso dia-a-dia de seres-amantes do objeto livro, até porque bolinar com elementos não-concretos, que estão muitas vezes em formato de pensamento ou de imagem-representação, requer bastante cuidado e atenção.

O professor de literatura e psicanalista francês Pierre Bayard, em seu livro COMO FALAR DE LIVROS QUE NÃO LEMOS (OBJETIVA, 2007), retrata um pouco das experiências positivas de não-leitura ao longo da história do pensamento e da literatura, suas concepções, suas validades e seus respectivos entendimentos de uso na direção contrária a de uma sociedade que ainda sacraliza a prática da leitura, que tende a gerar uma obrigação por se ler tudo e de tudo, desmistificando um pouco a ideia de que é realmente necessário ter lido um determinado livro para se poder falar dele com o mínimo de destreza e efetividade. Para isso, Bayard enumera algumas maneiras de não-ler que temos disponíveis, traçando alguns paralelos acerca dos livros que não conhecemos, os livros que folheamos, os livros de que ouvimos falar e os livros que esquecemos, tudo envolto em exemplos vividos por grandes escritores de todos os tempos.

Bayard ainda recomenda algumas dicas ou estratégias para que o bom leitor, ou melhor, o bom não-leitor, consiga escapar de algumas situações de apuros quando interrogado acerca de algum livro de que não tenha feito a devida leitura até então. O professor declara que fazer confrontar nossas “bibliotecas interiores” em momentos desta natureza, conflitantes ao extremo, é uma boa técnica para se sair por cima nos debates ou para se escapar deles, bem como aliar os poderes dos nossos “livros interiores” e dos “livros coletivos” que circulam por nós e pelo mundo no intuito de se construir novos focos de referenciação discursiva em instantes. Portanto, não ter vergonha, impor as próprias ideias, inventar os livros e até falar de si tornam-se configurações de saber, de acordo com Bayard, completamente úteis para o fazer crítico ligado às artes em geral, e em especial ao trato da literatura em seus círculos de fogo, de discussão e de atuação.


domingo, 16 de outubro de 2022

SINCORÁ - SER PEDALANTE NA CHAPADA DIAMANTINA, de Evandro Torezan


 

Impressões sobre o livro SINCORÁ - SER PEDALANTE NA CHAPADA DIAMANTINA, de Evandro Torezan. Ainda neste vídeo, mais uma participação preciosa de Angélica Carem.

#sincorá #evandrotorezan #ciclismodeaventura #oequadordascoisas

Resistir pela água: por uma literatura viva



Por Germano Xavier


O homem é um ser literário, acreditem ou não. A literatura, por sua vez, é como a água do tempo, da vida. A água que alimenta a alma humana, e também o corpo humano, que nos preenche de cor, dor, força, medo e esperança. A água, no interior da literatura, pode ser também o território, o habitat, o próprio espaço dos fenômenos que nos constroem. “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 2011, p.182). A literatura, pois, pode representar o caos. O caos pode significar tudo. E a água, como parte integrante do todo do imaginário literário, é este deserto das coisas e também o oásis dos movimentos. A literatura, enfim, pode esboçar a paz. A literatura é o próprio mundo. A literatura é, enfim, o homem. O verso. O inverso. O reverso. De tudo. De todos.

A literatura é, antes de tudo, linguagem munida de significado, como requer Pound (2006). E tudo elevado à décima potência. Sem a presença da linguagem, nada pode funcionar com plenitude, o ser humano total não é construído muito menos reconstruído, o mundo não alcança seus refinamentos racionais de existência. Sem linguagem e sem literatura, a renovação da vida não é garantida. A água, por sua vez, é também uma linguagem. Linguagem dos que ribeiram os rios da vida e da morte, colo dos amargores e fonte das saciedades mais intensas. Literatura é, também, imagem, repertório de imagens.

No livro de Luís Alberto Brandão, intitulado Chuva de Letras, e que é, juntamente com o livro Cartas do São Francisco, de Nilma Gonçalves Lacerda, matéria central do presente texto, a imagem é explorada com demasiada intensidade, tanto é que a chuva de letras na tela da televisão, que acompanha todo o desenrolar da trama e que marcam as ações e os pensamentos do protagonista, provoca fortemente o imaginário do personagem, criando inúmeras possibilidades de ideias e suposições plausíveis, fato que evidencia o poder que a imagem televisiva exerce na capacidade criadora das crianças e dos adolescentes.

Há momentos, no livro Chuva de Letras, em que o receio de interagir com algum fantasma preocupa o personagem, de modo que tais imagens interferem no seu cotidiano, e ele passa a refletir sobre o que vê, tenta interpretar e procura compreender o significado de tudo que é retratado na chuva de letras reverberada na imagem televisiva propriamente dita. É possível perceber que, após essa preocupação inicial, ele se encanta com o que as imagens provocam no seu imaginário e passa a viver melhor, mais feliz, isso porque, como afirma Fittipaldi (2004, p. 103), “toda imagem tem alguma história para contar. Essa é a natureza narrativa da imagem. Suas figurações e até mesmo formas abstratas abrem espaço para o pensamento elaborar, fabular e fantasiar”.

O mero fato de o protagonista se abrir ao novo o faz se sentir melhor. Sendo assim, percebe-se que tudo que o personagem contempla gera um oceano de significados, possibilitando novas maneiras de explorar a realidade e capacidade para perceber o mundo ao seu redor, a partir da fantasia e do imaginário da chuva (água) a percepção se amplia e se consolidada a construção de novos saberes. Em retorno ao inventário temático que abriu este texto, Candido (2011, p.176) retoma o conceito de literatura e o traduz relacionando-o a “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura”. Em consonância com este refletir, há suspeitas naturais de que um mundo sem produção de significados em cadeia seria um cabal desastre, do mesmo modo que um homem que vive sem ter o devido contato com a literatura, ou com os textos de natureza literária, tornar-se-ia um impostor corpo disforme, pálido em termos de representatividade e de expressividade.

Não há homem sem água. Não há humanidade sem literatura. A água que é derramada em dias de chuva é o alento para o sertanejo, o fator de judiação para o favelado da grande cidade. A água esmaga o coração sofredor, assim como retira o amargo das secas. O povo é a água da literatura. A maior história de todos os mundos e tempos. “Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação” (CANDIDO, 2011, p.176). A literatura, pois, assim como a água, “é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente” (CANDIDO, 2011, p.177).

A humanização pelo fator literatura, para Candido (2011), deve ser entendida como todo processo que incute no ser humano rotas de reflexão, aquisição de saber, desenvolvimento do senso de alteridade, refinamento dos sentimentos e habilidade para enfrentamento das problemáticas do viver. Mas, por que a literatura seria tão importante para o homem? Qual o seu segredo? A literatura seria mesmo uma espécie de água, de líquido vital para a existência? No livro Cartas do São Francisco, escrito por Nilma Gonçalves Lacerda, a água figura no livro como o mote-mor da trama. A autora, fazendo um paralelo com a famosa obra do poeta alemão Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, faz arvorar algumas unidades de cartas expressas direcionadas a um aspirante a escritor de histórias infantis e juvenis. Com sede por transmitir saberes, a autora faz um pequeno, porém apurado, apanhado do fazer literário relacionado à literatura infantil e juvenil, elencando informações tanto precisas quanto preciosas sobre tal atividade.

A literatura tem desses movimentos particulares. A água já foi território para várias importantes obras universais, desde as epopeias homéricas até Moby Dick, de Herman Melville, passando por Joseph Conrad, João Guimarães Rosa e tantos outros. Em Cartas do São Francisco, o Velho Chico é a matéria que gera a fluidez do conhecimento compartilhado, tal qual um espelho d’água que reproduz as faces de todo um organismo vivo, neste caso a literatura dita infantil e juvenil. Ao mesmo tempo em que a desloca do comum convívio frente a outras disciplinas relacionadas ao saber humano, como já citado anteriormente, Barthes (2001) faz da literatura, aqui em todas as suas acepções, uma caixa de guardados, um baú capaz de zelar atemporalmente por incomensuráveis saberes. Este, para ele, é justamente o aspecto que faz da literatura um fenômeno exclusivo quando comparado às demais áreas do saber. Para o referido autor, a literatura é a própria realidade, bastião da vida em si, o que a impulsiona a estar continuamente em vantagem perante as outras formas de conhecimento.

“Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles” (CANDIDO, 2011, p. 177). Para a literatura, um dos principais ingredientes a ser colocado em análise quando entrada, ela, em julgamentos por sua real e definida relevância é, de longe, o potencial conjunto de ferramentas de que possui para que o irreal seja desbastado, volatilizado e até expulso do que é caracterizado como sendo propriamente humano. A literatura, portanto, ao ser o real ou parte do real, ou até mesmo a força motora e gestora de tudo que é real, termina por ser o local onde tudo se alimenta do todo, em prol do todo e semelhante ao todo.

Tendo como ponto de apoio a citação acima, há de se considerar a inestimável importância da literatura para que seja fomentada, no seio das sociedades, uma espécie de cultura letrada sobre a qual a palavra é sempre apresentada nos centros das significações e das virtudes mundanas. Por ser uma expressão artística milenar, a literatura atravessou várias fases de contemplação reflexivo-existencial e hoje é um território de proporções inestimáveis onde bailam os ventos do fator resistência. E um dos seus efeitos cruciais é a linguagem, com suas mil e uma potencialidades. Língua e literatura, portanto, não sobrevivem separadas.

A Literatura, por sua vez, acaba por refletir no conjunto de suas verdades e de sua natureza universal toda a plasticidade de expressão que se vincula à linguagem. Também utilizada como ferramenta de comunicação, a literatura, embora circunscrita num contexto histórico mais recente que o da língua em si, consegue manter suas interconexões comunicativas demasiado objetivas e sem maiores afetações. Como é de se suspeitar, sem grande esforço, uma sociedade sem a presença da arte literária certamente exprimir-se-á com menor correção, nitidez e criticidade. A palavra, escrita ou lida, decerto desfruta de um poder único, largo, fator que não a limita, já que não sendo simples figurante, beira a fomentação do que é real, isto é, a natureza existencial acerca do que é realidade.

A literatura não está parada, assim como a água de um córrego não é um corpo-objeto que possui uma forma única. Pelo contrário, ela está constantemente em trânsito, a passear por várias paragens do conhecimento humano e a pegar carona em diversos veículos de mídia num efeito dinâmico que surpreende até os mais céticos estudiosos do ramo. Em uma sociedade acostumada a reprimir seus viventes por conta de inúmeros fatores geradores de desigualdade, e que, em pleno século XXI, ainda teima em conviver com máscaras flutuantes de segregação social, de intimidação e de terror, a literatura passa a se cobrar mais, como a exigir-se de si mesma em direção ao posto ocupado pelo outro, o leitor, baseando-se para isso num complexo argumento de alteridade, fomentadora de identidades e valores impagáveis.



REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, s/d.

BRANDÃO, Luis Alberto. Chuva de letras. São Paulo: Scipione, 2008.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.

______________. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2014.

FRANTZ, Maria Helena Zancan. A literatura nas séries iniciais. Petrópolis: Vozes, 2011.

JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

_____________. Por que estudar literatura? São Paulo: Parábola, 2012.

LACERDA, Nilma Gonçalves. Cartas do São Francisco. São Paulo: Global, 2003.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed. São Paulo: Ática, 2002.

POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo. Cultrix, 2006.

WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é ficção. São Paulo: Brasiliense, 1986.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

TANTOS NÓS, de Mailson Furtado


 

Impressões sobre a peça teatral TANTOS NÓS, do escritor cearense Mailson Furtado. Ainda neste vídeo, mais uma participação preciosa de Angélica Carem.

#tantosnós #mailsonfurtado #teatro #dramaturgia #oequadordascoisas

sábado, 1 de outubro de 2022

Sobre o peso de nossos pássaros mortos



Por Germano Xavier


"A cura não existe."



Quanto custa para uma pessoa ter de conviver com as suas negações de vida, os seus infortúnios, as suas farsas, as suas danças mirabolantes em prol do Nada, suas angústias e destemperanças, suas aflições e suas impossibilidades? É possível sair ileso de uma perda significante? E de duas? E de três? E de infinitas perdas? Até onde se pode ir com tamanho peso nas costas? E que tipo de lacuna se configura na alma de um ser humano quando ele não mais enxerga em si força suficiente para sonhar, ou simplesmente para continuar? Quanto custa para desentalar de dentro de nosso corpo (que vai morrendo) o caroço dos trágicos fins cotidianos que nos afetam sem pena? É possível estancar a dor que dói lá no fundo de nós?

São perguntas ríspidas demais, sabemos. Mas são perguntas muito reais, e necessárias. Reais porque vivas e presentes. Porque elas simplesmente perambulam por aí, no centro da vida de muitos de nós. E é manipulando a narrativa de dores e perdas de uma mulher (sem nome), dos seus oito aos 52 anos de idade, que a escritora paulista Aline Bei se apresenta para a literatura em seu livro de estreia O PESO DO PÁSSARO MORTO (um dos vencedores do Prêmio São Paulo de Literatura 2018) de modo muito sutil e certeiro.

O livro (Editora Nós, 2017) tem 168 páginas de uma prosa bastante diferenciada, recortada incontáveis vezes como fatias de expressão que muito se assemelham à estilística voltada para textos poéticos. Tal estratégia faz com que a leitura flua com uma velocidade deslizante. Ponto positivo também para as marcas de oralidade bem definidas e bastante evidentes como centros de todo o discurso das personagens.

(Cuidado, contém spoilers) Numa análise rápida, a sequência que condensa a jornada da protagonista pode ser explicada da seguinte forma: Logo na infância, perde sua melhor amiga, com quem mantinha uma relação de afeto incomensurável. Aos 17, é estuprada pelo próprio namorado. O pai da criança some de sua vida. O filho não corresponde, a mãe não corresponde, ninguém corresponde. Bete, que ajudou na criação de seu filho desde sempre, é a única que mantém um contato mais verdadeiro com o garoto até então. Bete morre. O filho vai para uma cidade mineira para cursar uma faculdade. Filho e mãe não se entendem. Ela se encanta por um cão durante uma viagem. Leva Vento (nome que deu ao cão) para sua casa. Vento parece entendê-la mais que seu próprio filho. Há acolhimento entre os dois. Fica sabendo que seu filho vai ter um bebê. Torna-se avó. Seu filho vai morar no estrangeiro. Ela regressa para a antiga casa. Memórias são revisitadas. A solidão segue assombrando-a. Vento morre atropelado na frente da velha casa. Triste e desamparada, morre por conta de um forte engasgo (?). Sabedor da morte da mãe, o filho demonstra indiferença. Por conta de negócios, o filho retorna ao Brasil e decide ir ao cemitério onde sua mãe está enterrada. Algo inusitado acontece neste exato instante.

É desta maneira, com um enredo aparentemente muito simples, que Aline Bei esmiúça o interior da alma humana, não só da personagem sem nome, mas a minha e a de quem quer que seja. Interessante mesmo foi perceber que, por diversos momentos, fui transportado para a figura ímpar de Macabéa, de Clarice Lispector, força-mor da obra A HORA DA ESTRELA e, também, de cenho-alma-expressão das dores incuráveis do viver (não me pergunte o porquê disto, mas assim se deu). Destarte, que fique claro que o livro pode pesar uma tonelada nas mãos dos leitores mais desavisados. Assim sendo, bucaneiros e bucaneiras, venham preparados para O PESO DO PÁSSARO MORTO!


um registro ao lado da autora no II Letras em Barro (Caruaru-Pernambuco)


* Primeira imagem: https://livreopiniao.com/2017/09/12/aline-bei-lanca-o-romance-o-peso-do-passaro-morto-em-sao-paulo/

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

O ALQUIMISTA, de Paulo Coelho


 

A escritora luso-angolana Luísa Fresta comenta o livro O ALQUIMISTA (L'Alchimiste), de Paulo Coelho. Romance alegórico do escritor brasileiro, a trama segue um jovem pastor andaluz em sua viagem ao Egito, após ter um sonho bastante misterioso. O Alquimista já vendeu mais de 150 milhões de cópias mundo afora, um verdadeiro fenômeno editorial. Ainda neste vídeo, mais uma participação preciosa de Angélica Carem.

#oalquimista #paulocoelho #romance #romancealegórico #oequadordascoisas

Sobre quem coleciona baleias



Por Germano Xavier


Fico imaginando o Rômulo César Melo acordando, ligando seu computador e saindo logo em seguida para colecionar suas baleias particulares. Todos nós temos as nossas baleias particulares, de estimação, fardos pesadíssimos até. E são tantas... Violências, perdas, dúvidas, mistérios, dores, pequenas felicidades e curtas alegrias, extensões nossas de um cotidiano cada dia mais cruel. As baleias são os nossos fantasmas, que não costumam avisar quando irão surgir no meio do nada e causar aquele espanto de brotar brava taquicardia.

Nessas horas é que passamos a entender um pouco mais sobre a grande fúria acometida ao Capitão Ahab... Moby Dick era o seu destino, sua redenção, seu modo de vencer a vida. “Eu não conheço tudo que vem pela frente, mas seja o que for, vou enfrentar gargalhando”, diz Ahab em uma das passagens clássicas da obra-prima de Herman Melville. E quando não conseguimos lidar com os nossos cachalotes, que tipo de mergulho é para se dar?

O livro O COLECIONADOR DE BALEIAS (CEPE, 2018), do autor recifense Rômulo César Melo, desafia nossa visão acerca de nossas rotinas e de nossos respectivos sensos comuns. Faz, com uma serenidade filosófica, com que entremos todos (nós leitores) numa mesma barca e nos sintamos singrando mares nunca antes navegados, apesar das temáticas e das problemáticas tratadas no livro serem bastante comuns e, por conseguinte, deveras verossímeis.

Um livro de contos ao bom molho, onde a ordem dos fatores não altera a soma de todas as nuances lítero-linguísticas, como tem de ser, creio. Um livro de perspectivas, calmo até certo ponto: o de mutação. Climático, improvável, uma obra aberta, como preconizava Eco. Rômulo não aborta os não-ditos, os interditos, afere o desconhecido como quem calcula sem o uso de postuladas e já vencidas fórmulas. Rômulo: pescador de inquietações massacrantes, de perturbações silenciosas, de belezas recônditas, um fabricante de redomas transparentes, ensinador de caminhos tortos.

O COLECIONADOR DE BALEIAS é composto por 17 narrativas. Rômulo César Melo é pai também dos livros “Minimalidades” e “Dois Nós na Gravata”, este um dos vencedores do II Prêmio Pernambuco de Literatura de 2014. É muita água, bucaneiros, muita água que há no mundo, muita água que há n’O COLECIONADOR DE BALEIAS, livro feito o sal que nos mata lentamente, que nos resseca por dentro, que nos faz inchar, que aumenta a nossa pressão. E feito o remédio (des)controlado dos nossos futuros, também.


entrevista com o autor...



Germano XavierRômulo, responda-me, por gentileza: o que o seu livro de contos O COLECIONADOR DE BALEIAS (CEPE, 2018) não quer mostrar ou não ousa dizer?

Rômulo César Melo – Não quer mostrar o rosto do autor e nem ousa dizer suas opiniões sobre os temas ali elencados. O Colecionador revela algumas impressões sobre o mundo, a sociedade, as nossas misérias, sob a perspectiva de seus narradores, que não são eu; mas, não sou eu, sendo. Parece confuso, todavia acho que existem duas formas de entender a expressividade do autor por meio da escolha de seus personagens ou narradores. A primeira, a consciente, quando se quer contar uma história que traz um juízo de valor ou uma bandeira de uma causa importante ou o desejo de mostrar a indignação com um fato real acrescido das tintas da ficção. Isso aconteceu, por exemplo, no conto "Bárbara", que trata do linchamento e morte de uma mulher numa comunidade carioca apenas por se parecer com uma criminosa. A segunda, a mais intrigante, a inconsciente, suscitada nos consultórios de Psicologia. Dizem que tudo que colocamos nos nossos narradores é parte da gente, ao menos de uma forma neutralizada, subvertida, adormecida. Então, posso ser um assassino, um estuprador, posso ser mulher, um leão, um inseto como elaborou Kafka, claro, falando aqui de traços simbólicos da psique. É quando se escuta depois de certos acontecimentos, "nossa, nunca pensei que fulaninho fosse capaz de fazer isso ou aquilo". Nem ele, pode acreditar. Mas de alguma forma fazia parte da natureza de fulaninho, adormecida nele. Embora essa tese me amedronte, acho que faz sentido.

Germano Xavier O seu livro de contos poderia ser locucionado como sendo um livro de contos “de ideias”, por trabalhar com personagens bastante articulados e, respectivamente, cada um com pensamentos muito claros e/ou definidos. É papel do contista direcionar ao máximo os caminhos de suas personas ou a aporia ainda é a melhor solução para um texto ficcional, Rômulo?

Rômulo César Melo – Curioso você ter observado o lance das ideias. Tenho extremo cuidado na seleção dos contos de um livro porque desejo que as histórias ali contadas possam levar emoções diferentes ao leitor e, em certos casos, conduzi-los a uma determinada reflexão. Nessa toada, busco não repetir as temáticas que servem de pano de fundo aos contos, quando elas existem. Afora isso, não tenho a pretensão de conduzir os caminhos daquelas personas que habitam as páginas do livro, de forma a engessá-las ou fazer dos personagens meros robozinhos do senhor-autor-de-controle-na-mão. (Abaixo a ditadura do autor e todas as ditaduras, ainda mais as que nos querem fazer crer inexistentes!) Até mesmo nos contos em que já vou escrever sabendo do começo, meio e fim (são as exceções) há sempre algo novo que o personagem me mostra, pede ou exige. Acho que o papel do artista é ser o instrumento, o canal para que essas entidades abstratas, essas vozes querendo sair do plano do etéreo, possam se expressar da forma mais liberta, como bem quiserem, gritem o máximo e mais amplamente possível lá no papel. Eis a fantasia da escrita, senão vira um relatório, receita de bolo, petição jurídica. A aporia faz parte, sim. Gosto também dos contos em que se propõe uma dúvida, um não-fim, nos quais o leitor ficará se perguntando, mas e aí, o que aconteceu com o personagem? Fiz isso no conto "Claro escuro", então, aquela mãe comprará o remédio ou não? É uma forma de chamar o leitor para dançar, compor o texto conosco, entende? Amigo leitor, pense, dê o seu final, o que acha que aconteceu dentro da sua ótica? A gente precisa deixar de ser mãe do leitor, de dar a comidinha mastigada na boca dele. Eles sabem mais do que nós, são muitos; nunca devemos subestimar a capacidade do outro de criar e agregar a seu texto. Quantas vezes alguém me deu uma interpretação bem melhor do que a minha para um texto meu? Inúmeras. Fica um texto nosso, de todos, plural. Isso me agrada.

Germano Xavier Quais são as motivações mais comuns para seus contos, Rômulo?

Rômulo César Melo – São tantas e tão diferentes. Notícias na imprensa, cenas do cotidiano, o conto "A bonequeira" tirei de uma cena do carnaval no desfile do Galo da Madrugada, aquilo ali aconteceu, ao menos a senhorinha com o boneco entrevistada na TV. Outras vezes, cenas que vemos quando caminhamos no parque ou vamos comprar pão na fila do caixa. A capacidade de observar aliada à curiosidade são ingredientes basais do escritor. Gosto de escrever sobre situações que me causam espanto ou chateação. É como se precisasse por para fora a indignação, mas o faço com a roupagem ficcional, transformo algo feio e cru em um manufaturado estético. Há os contos que fazem parte da minha vida pessoal como a morte prematura de um grande amigo narrada em "A valsa". Existem os que apresentam discussões atuais, dou o exemplo da questão de gênero e adoção de crianças por casais homoafetivos exposta em "Aos três", que reputo um conto para reflexão muito mais do que qualquer coisa, tem essa função na obra. Os saídos dos livros de história como a vida do acendedor de lamparinas de Londres na época da Revolução Industrial que dá título ao livro. Portanto, são muitas as motivações.

Germano Xavier De acordo com David Lodge, toda ficção implica em uma constante troca, envolvendo estruturas formais e todas as aberturas que a vida possibilita. O que você pensa sobre?

Rômulo César Melo – Preciso reler David Lodge para contextualizar a frase no texto inteiro. Compreendo da assertiva o sentimento de que os textos ficcionais mais completos, se é que podemos chamar assim, tendem a fazer a junção do amplo espectro que a vida nos permite, toda a gama de possibilidades e experiências humanas a serem trazidas ao foco narrativo, que seria o conteúdo, com um arcabouço estrutural mínimo de forma, uma linguagem, uma estética própria do autor. Essa simbiose entre matéria e forma faria com que se oferecesse um produto de qualidade ao leitor, um texto literário que não se afastasse da vida real, aquela enfrentada por todos no dia-a-dia, mas também agregasse a beleza estética e as particularidades técnicas da escrita hábeis a suavizar e tonificar a narrativa. Uma Literatura apenas de fatos da vida pode se tornar um relato, uma notícia de jornal, uma carta. Ao mesmo tempo, aquele jogo de palavras vazio de emoções ou conteúdos, ausente de alma, planificado e sem sentido humano, que se propõe a inovações de linguagem e formas, pode se resumir a um ensaio ou um mero exibicionismo linguístico-acadêmico. Assim penso.

Germano Xavier Fale-nos um pouco sobre o processo de escrita de O COLECIONADOR DE BALEIAS, a importância dos prêmios literários no cenário nacional e sobre seus planos literários futuros.

Rômulo César Melo - O "Colecionador de Baleias" é irmão do livro de contos que o antecede, o "Dois Nós na Gravata". O pensamento de elaborar uma obra que pudesse oferecer aos leitores textos de diferentes matizes foi o mesmo. Quis dar aquilo que gosto de receber, ou seja, emoções variadas, do riso ao choro, da repugnância à poesia. Por isso não há uma temática una. A partir dessa premissa, chegou a hora de escolher os contos e dar a ele a sequência devida na obra.

Considero os prêmios literários importantes como meio de autoafirmação do escritor. Sempre bate uma insegurança, será que estou no caminho certo, será que escrevo bem mesmo, tenho ideias boas? Se bancas de jurados de vários lugares do país premiam diferentes textos seus é um bom sinal disso. Ademais, um prêmio faz seu nome circular, empresta a projeção necessária para que possa aparecer nas rodas literárias, na mídia, receber resenhas e perguntas tão bem elaboradas e desafiadoras quanto essas suas, Germano, abrem portas.

Planos, tantos, muitos, sempre. Que bom! Estou trabalhando em duas frentes neste momento. Um livro de poemas que será diferente do "Bad Trip", meu primeiro livro de poesias temático e soturno. Tem o título provisório "Delicatessen" e a ideia é a de que seja, de fato, sortido, cheio de prateleiras e mercadorias poéticas distintas. E ainda um livro temático de contos, que visitará o insólito, o horror e o fantástico. São esses os projetos iminentes.




* Imgens: https://www.kobo.com/us/en/ebook/o-colecionador-de-baleias 
e http://agendaculturaldorecife.blogspot.com/2018/11/a-editora-cepe-comemora-10-anos.html