Não, eu não sei amar. Confesso, ainda não aprendi a arte da dissimulação. Eu sou bem moço, sim, mas já bem crescido para saber que a vida é uma provocação. E das mais infames. Sou um sujeito quedo. O silêncio é a parte mais sobressalente em mim. As pessoas não entendem que esse é o meu jeito de ser, de me expressar, de me comunicar. Sinto que elas estão sempre esperando algo oriundo de minha face ou mão ou boca, alguma palavra a mais ou alguma loucura que eu possa fazer de súbito, matar alguém, estrangular o professor ou executar a pessoa com quem converso. Mas eu só sinto. Não sei o porquê de tudo isso. Parece que sonhei. E no sonho acendi a lâmpada do meu quarto e percebi que os ratos tinham desaparecido. Talvez estivessem escondidos em algum móvel, pensei, em estado de alerta, prontificados ao ataque. Tremo só de pensar naquelas centenas de pequenas mandíbulas, atarraxadas em minha pele, grudadas em meu cabelo, roendo-me, sangrando-me. Olhei para o chão. Parecia estar seco. Hesitei. Imaginei, mas depois de muita luta decidi levantar de onde estava. Havia uma escuridão longa depois e que não sei como dizer. Não há um pequeno feixe de luz que consiga penetrá-la. Não que eu seja um admirador das trevas, mas a noite é o momento mais misterioso e instigante. A noite, no sonho, não respeitava os solitários. Destino longínquo. Separava-se de si mesmo em pulsares e alguns goles de bebida quente. Rumava. Realmente estava sendo difícil se ser ultimamente. Difícil, porém ele era já menos triste. Podia até se sentir um pouco mais feliz em raros instantes. Eu, sombra perfeita do que o mundo é capaz de fazer com a humanidade, passivamente comporto-me num assento confortável e cinza-verde de cor. Deixo que o vento que vem vindo do exterior sussurre e prostre-se diante dos meus olhos, agora cosmopolitas. Uma morbidez ilusória e procedente do dia que não seria mais um dia normal. Em minhas reentrâncias correm cósmicas as sensações que parecem subterrâneas. Sob alguma minha forma de sotaina, algo poderia acontecer a qualquer instante. Os papiros foram escritos e simultaneamente lidos pelas retinas visionárias que meu corpo não suporta. Átimo. Surpresas foram destruídas, todos os focos tristes em que pensava. Metafísica trac trac trac, tesoural, dilacerantes tracs que vinham predominar minha existência. Segundos aproveitáveis, não se sabe, de nada sabemos, ou serenos?, ao lado do vibrátil plasma feminil que dialogava potencialmente com minha alma, coitado de quem, ou em? Dizia coisas belas. Falava com tamanha ternura que me deliciei cruamente. Que palavras possuo, ainda lembro!, sangue feliz no final. Sei que não me encontro nesse arrebol cotidiano. Sei que ainda existem, sob as fardas e uniformes, corações como o meu, tão lindamente deflorados. Acordei rodeado por capinzais extremamente altos. Tinha invadido o acostamento da rodovia por onde circulava. A marca de borracha no asfalto, riscado naquele anil desbotado pelo sol. Levantei e percebi o estrago que tinha causado ao carro. O farol do lado direito em caquinhos, o para-choque arrebentado, uma roda levemente empenada. Havia entrado forte no matagal. Estou vivo, e isso me retirava um pouco o desânimo matinal. Entrei no carro novamente e dei a partida. O motor teimou um pouco, mas roncou forte instantes depois. Joguei pela janela alguns cigarros fumados pela metade, duas garrafas de uma vodka barata, alguns recibos e peguei a estrada sem dó. Um chiado fino surgiu e, pelo que me parecia, vinha das proximidades da jante dianteira esquerda. Ele que não sabia para onde ir deveras, onde se esconder. De quem?, perguntava-se, sem pronunciar voz. Ouvia vozes que muralhas de concreto sussurram no flamejar dos segundos insuspeitosos. Eram tão estranhas e ao mesmo tempo disfônicas, que tentava sem grande sucesso parar de escutá-las com o gesto de sufocar com as mãos suas orelhas. Estes clamores, tão voluptuosos para alguns, não o faziam sentir orgulho por ser proprietário de um sentimento valioso e único como o amor. Ouvia as mesmas vozes de sempre e agradecia às paredes por terem sido escudos, livrando-lhe da vista o vômito que os homens repelem de suas bocas más e carnívoras. Os sons humanos modernos, contemporâneos, perderam sua verdadeira lógica. Não havia mais transparência no aquário afetuoso dos entes que lhe habitavam - alguns ainda insistiam em dizer que toda essa transformação vo-ca-bu-lar dera-se pela enorme necessidade de sempre se estar em renovação, para não ficar para trás nessa corrida cada vez mais doméstica pela vida. Todavia, como ser tão ordinário, a ponto de sepultar a beleza natural do nosso caráter?, pensava. Tornara-se muito difícil discutir tais assuntos, porém era indiscutível sua serventia para o seu desenvolvimento enquanto homem. Era impressionante a percepção que tinha do mundo atual, parecia-lhe não haver nenhuma tentativa ou esforço para que coisas que já fizeram parte do manual dos homens, e que agora se encontravam em processos de putrefação num destes baús enterrados pelo universo, voltassem ao cotidiano de normalidades. A espécie perdera o mapa do tesouro e com isso o próprio tesouro também. O seguimento que daríamos a todo esse bordel era incerto, mas tranquilamente previsível acaso levássemos em conta a realidade dos fatos. Era como dizer que muitos preferiram andar descalços, mesmo tendo em casa um calçado para proteção dos pés. Como bom seria se tudo isso fosse uma questão de esquecimento, que ao sair de casa os indivíduos sempre se esquecessem ou não se lembrassem de pôr no bolso de suas camisas as sensibilidades e as intuições. Quisera ele que fosse assim! A verdade é que estamos pintando o nosso próprio quadro biográfico com tintas frias, cujos princípios ativos são a extinção e o erro. A vida não cessa, o tempo se esconde entre árvores e o homem sempre a padecer diante de seus próprios olhos. Alguém de muito longe derrama lágrimas de arrependimento e angústia ao ver o estrago que sua obra-prima está a fazer no enredo panorâmico da sinfonia que lhe foi destinada. O criador lamenta ter criado em seu paraíso não só a serpente e o fruto proibido, mas milhões de cobras e aranhas peçonhentas enfeitiçadas por verbos malignos. Não há mais o que modelar, tudo já havia sido escrito e lapidado. Pena que muitos não leram os ensinamentos ou não souberam interpretar o texto da maneira certa. O nosso tálamo agora é coletivo, o serviço foi feito por todos que contribuíram incessantemente para esta arquitetura perversa e mitigada. A carcaça fica e o miolo se desfaz. A música é feliz, sem saber que podia ser mais, a lua já iluminou mais corações, o brilho radiante das estrelas já foi mais autêntico. Antigamente, pensou, o fim era apenas um novo recomeço. Hoje, o fim é o coto do nada, dilacerado pela ordem que dopa a mentalidade emocional original dos nossos cromossomos, fazendo-nos perder grande parte da visão resoluta que tínhamos sobre a verdade e sobre tudo aquilo que nos faz bem. Neste momento, entra em cena o lobo mau, que não é o das histórias infantis, mas o mesmo que se vestiu de cordeiro e que acabou nos cativando pela sua delicadeza e ingenuidade. Uma seringa com uma solução, pitadas de purpurina injetada em nossas veias sem qualquer tipo de cerimônia. Este sim é seu real semblante, que nos amordaçou com suas correntes de metal e ecos de aço, tornando-nos servos e escravos do hábito, do modismo, do belo e da miséria espiritual. Este é o lobo vigente, a babilônia do ontem, do hoje e de sempre, a bomba atômica do medo, esta é a comitiva do governo, ou melhor, do desgoverno. O homem se perdeu na matéria, no esboço do certo, na crua ânsia de ser mais. Acabou se machucando em espinhos e nas rochas pontiagudas escorregou. A cicatriz vingou toda a dor e o ser que se diz humano traz hoje na bagagem as sequelas de uma escolha sem retorno. A morte veloz é agora sua maior consequência. Traído pelos seus próprios gestos, exilou-se, ele-eu-nós, em nosso próprio lar, nossas casas, casulos. O sangue da ferida aberta não estanca, rejubila-se em alimentar o solo sedento por adubos orgânicos. Como é cruel ter de usar máscaras para não ser intoxicado pela sujeira que nos impede a naturalidade, que nos priva de um belo adjetivo derivado de nossa tão explorada e subestimada mãe natureza. Ao relento, inspiro uma harmonia demente, puxada pelos acordes da britadeira e pela regência mágica das betoneiras. Ao invés de aproveitarmos a noite para sonharmos com um mundo mais digno e justo, preferimos acertar o sono para não perdermos as horas. Tudo reincide, recai sobre a terra, menos a vida que não é retroativa... inúmeras pessoas registram em folhas de papel teses sobre reencarnação ou ressurreição, mal sabendo elas que tais ações podem acontecer a qualquer momento e que, para isso ocorrer, só é necessário um incentivo pessoal, para que floresça o renascer e a redenção que a todos falta. Estou divagando? Sinto um novo resmungar em meus tímpanos... é só mais um anjo torto com estranhos pedidos e alertas. Ele implora de joelhos para que eu pare de pensar, de falar. Por que devo parar? O oitavo anjo do apocalipse responde: Se você não parar com essa conversa, eles irão te prender. Eles quem? Os torturadores e trituradores. Mas que crime cometi? Pensar, amar, viver... Mas isso não é crime! Meu caro amigo, qualquer ideologia contrária aos interesses do dragão é potencialmente exterminável. Não querem formar pessoas capazes de domar o seu ego ou que tenham um conteúdo crítico sobre as novas regras que impuseram. Somos a ameaça aos seus reinados e domínios. Cortaram-nos a língua e as mãos, furaram nossos olhos com estacas gananciosas e porcas. Restou-me o choro por não ter mais como reunir meu exército e fazer uma frente de combate contra todo o mal que nos assola. Meu sexto sentido me revela a morte de irmãos e irmãs que, como eu, defendiam o bem a qualquer preço. A triste sensação de que não haverá mais recomeço e que o fim será somente o fim me salta aos nervos. Sentado onde estou vou à morte lentamente, numa tétrica solidão forjo meu arsenal vingativo numa paranoia que me altera. O silêncio me afaga, meu companheiro nas horas mais insanas e improdutivas da minha existência. Quando mais uma lua se aproxima, recordo que ali na estante guardo medalhas de honra ao mérito, verdadeiros símbolos de uma guerra que tracei. Lá se vai um espião, um amante dos dizeres, vai ao chão que os vermes hão de usar como alimento num prato rico em sonhos e proteínas de esperança. Vai ao céu porque tens o seu lugar. O homem morre ante a vida que o acolheu, pois carrega o pecado de não saber amar sem mentir. Falava alto consigo mesmo e ele não tinha respostas. Foram longos quilômetros pela estrada vazia, o carro se arrastando, até encontrar uma casa rosada com um letreiro já apagado pelo tempo que estampava: Pousada 31. A placa de metal localizava-se próxima à porta. Uma pousada naquele fim de mundo. Aproveitável e útil, realmente. Mas era dia, manhã, e ele precisava mesmo era de um bom banho e de um café reforçado. Não pensou duas vezes. Estacionou seu Ariane bem em frente à porta de entrada. Desconfiado, caminhou em direção ao balcão, dando passos cautelosos. Havia um cheiro forte de charque frita no recinto. No balcão principal, ninguém. Tocou a pequena campainha de ferro que se encontrava na ponta esquerda da mesa. Por um breve instante pensou ter escutado o som do silêncio. Pouco depois uma sombra se ergueu lá no fundo do estabelecimento. Percebeu que não estava sozinho ali. Nesse ínterim, resolveu passear seus olhos pelas paredes do lugar, repletas de pôsteres e frases pintadas em cores chamativas. Uma, em especial, chamou sua atenção. Era uma carta, já amarelecida, assinada por um desconhecido, grudada no alto por duas tachinhas de metal. Enquanto ouvia passos vindos dos fundos, o homem leu a epístola. Eu compro clichês para dizer "te amo", e sou bem mais feliz assim. Eu que sempre fui o que sempre repudiei, agora logro das benesses de um aprendizado baseado em indeléveis experiências e estúpidas frustrações. Hoje sou mais político, prático das noções do pensar bem e do bem pensar. Alguns livros me substanciaram, e eu sou eles e o mundo que me rodeia juntos. Eu compro clichês para dizer que "te juro", e minha angústia cotidiana é combustível e brasa. Ah, como sou tão maior em minha ilusão diária! Como sou tão mais perto daquilo que sempre manifestei desejo! Como sou tão mais em me saber defeito! A minha criança interna me filosofando, a infância no dorso em pitadas reaparecendo. A maturidade, atividade para especialistas, me operacionalizando gritos de progresso. Ah, quanto orgulho de mim, quanta satisfação em me saber distante daquele outro eu, agora em sono letárgico. Quanta dádiva, meu justo senhor! Quanta glória! E eu comprando clichês para dizer que "o futuro é nosso", dialogando com meus fantasmas estafetas, aqueles, que de um dia para o outro, sem nada avisar, deitaram chão pelo além e me privaram de minha falta de autonomia. Outono de 1988. Era somente dúvida o errante homem. Lembrou dela, seu mais que atual espectro. Não sabe o porquê, mas ela lhe surgiu, novamente, ali mesmo. Agora deveria estar no 312 da Menezes Coimbra, aquele continente criado sem precisar esperar a ação de placas tectônicas, aquele universo mítico-austral onde se renovavam constantemente, lugar de apuros e mergulhos, de beijos e abraços, mágoas e amores. Lembrou dele, ele mesmo, daquele que tinha sido há pouco tempo, daquele que não mais desejava ser. Cerca de um minuto após ter terminado a leitura, escutou passadas bem próximas e a respiração ofegante e desconfortante de uma anciã que vestia uma túnica azul de veludo, adornada por um xale de renda carmim demasiado extravagante. Mais pessoas pareciam se levantar e vir em direção de onde permanecia o homem, aturdido. Que desejas, forasteiro?, de chofre, a velha interrogou. Rápido, virou o rosto. Estava diante, mais uma vez, do não sabido.
* Imagem: https://www.deviantart.com/pstoev/art/stories-from-the-station-12-204327260