|
* |
Por Germano Xavier
“O homem cognoscente é simplesmente o guarda da realidade.”
(W.Luijpen)
Paulo Leminski, o Polaco, foi mais que um poeta contemporâneo, foi um artista da palavra-ação, com a incomum capacidade de encobrir – clareando-a, diga-se de passagem - a nefasta realidade prevista para além da ordem do dia com uma poesia do olhar diário, rápida tal qual um flash fotográfico, agregadora como se fosse uma última respiração, que não se esforçava em misturar toques concretistas a um lirismo de abraçar e aconchegar os mais gélidos corações. Mais que atuar como poeta de uma nação desequilibrada pela Ditadura Militar e todas as outras privações oriundas de tal período, Leminski mimeografou durante sua vida toda uma marca poética que se caracterizava pela erudição, mas também por um excêntrico coloquialismo.
Curitibano, nascido em 24 de agosto de 1944, Leminski falece em 1989, aos 44 anos de idade. Morte de mais um corpo comum, mas antes a redenção de mais um poeta imortal para compor a “poesia una” do mundo, como diria Elias Canetti, Nobel de literatura premiado em 1981. É dentro da esfera de autoridade do Regime Ditatorial que Leminski invade o espectro da poética nacional, no ano de 1976, lançando seu primeiro compêndio de poemas, intitulado de Quarenta clics em Curitiba, uma espécie de portfólio onde seus poemas brincavam de produzir e desconstruir sentidos ao lado de fotografias de Jack Pires. Antes disto, já havia burilado na prosa de ficção, com o experimental Catatau.
O incenso da poesia leminskiana, de ordenação clandestina e transitória, faria elevar em quem o lia ainda mais o afã pela bravura de ser quem se é, alimentando o recrudescimento perante os mandos de um determinado poder absoluto, direcionados a partir de um grupo seleto de pessoas. A literatura, observada aqui como um direito inalienável do ser humano, como preconizou Antonio Candido em um de seus Vários escritos, agiria impulsivamente, inicialmente à surdina, para depois vingar em forma de incontestável potência num travar-se em batalha contra toda e qualquer artimanha governamental que levasse em conta a violação de regimentos e leis – e tudo feito de maneira abrupta e constante, como se sabe – que tinham como destinação maior o desrespeito às liberdades civis dos brasileiros.
No Brasil, o movimento militar de 1964 determinou o fim de um período de liberdade política como nunca havia existido no país até então. As liberdades públicas foram gradativamente extirpadas e engolidas, estranguladas sem maiores explicações. A situação do povo brasileiro ficou ainda mais comprometida quando, no ano de 1968, foi decretado o Ato Institucional Nº 5. Depois de instaurado o AI-5, seguiu-se uma fase brutal de violência e repressão. Ao final de todos os embates, os 25 anos de Ditadura deixaram marcas profundas nas reminiscências históricas da nação tupiniquim.
Em uma sociedade amedrontada pelos fantasmas do movimento militar iniciado em meados da década de 60 do século passado e que, ainda nos dias atuais, convive com camuflagens de tortura, de repressão, de intimidação e de terror, a literatura exigiu num endereçamento de si mesma para o lugar do outro ou vice-versa – o do ser-leitor, num fenômeno baseado em um sentimento de alteridade, mesmo que de maneira consideravelmente tímida nos primórdios -, um lugar de respeito para se efetuar impressões e processamentos vários de natureza combativa e/ou contrária ao controle social e político despótico empregado no país naqueles idos.
Impedidos de falar, de expressar suas opiniões em plenitude, muitos artistas, poetas, jornalistas, escritores e pensadores em geral, foram impelidos a criar estratégias para fazer vingar a alma de suas palavras e de suas inquietações. Se de um lado, Platão e Aristóteles fizeram questão de destacar que a mais irredutível marca da tirania é, obviamente, a ilegalidade ou o exercício do poder pelo desejo absoluto de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, de outro lado muitos dos grandes personagens deste Brasil nebuloso preferiram acreditar no poder do verbo, do verso, da canção, do manifesto irônico e em tantos outros meios para debater as imposições deflagradas e notoriamente retirar espaço de tudo o que tivesse sido ocupado com o uso da força ou da fraude. E Leminski foi um destes.
Imerso em todo este panorama, Paulo Leminski escolheu suas armas: o poema curto, o verso torto, a naturalidade obsessiva do haicai, o inteligível das construções simples, o escracho crítico e a piada sincera, o ditado sem normas, o hermetismo das singularidades das coisas plurais, a experimentação como objeto de vida, a ficção criativa ao extremo. Outras tantas, também. Concretista nos anos 60, inventor de equadores díspares nos anos 70, poeta musical nos anos 80, a verve leminskiana é a de um poeta vanguardista, de braços abertos à marginalidade estético-estilística da época, em que é ele próprio o verso sem definição plausível ou requerido, porém providencial.
Polemicista e agitador do caos, do diferente, das rouquidões de tanto gritar por respeito às diferenças várias, Leminski pautou em suas distorções musicais e entonações poéticas todo um plano de consideração diante das diversas singularidades humanas. Foi e ainda é um poeta que conversa com todos ao mesmo tempo, do mais pobre ao mais rico, do menos letrado ao mais letrado. Como se sabe, Leminski não discutia com o destino, assinava o que pintasse em sua frente, parafraseando um de seus poemas mais conhecidos. Desta forma, seguiu um caminho que, se solitário, oportunizou a si um tempo necessário para lapidar sua voz poética aos extremos da perfeição.
Mesmo sem levantar bandeira em ostentações comuns a muitos de sua mesma laia, o poeta estreitou a ligação entre a literatura e a vida como um dos nossos muitos direitos irrevogáveis. Ao fazer isto, num tratamento lento para com as coisas do amor mais real, aquele que brota do âmago dos seres, o poeta do bigode acenou burlar o estado natural das normalidades incontestes, fez vadiagem com o sentimento de que podemos sempre ser mais do que somos agora no presente, torceu o pescoço das palavras em prol de uma ruptura com o banal, orientando-nos a nos reorientar sempre que preciso fosse.
Leminski, no supracitado processo, não nos orienta a um lugar possível. O lugar possível não existe nem faz-nos existir. Ao contrário, desorienta-nos porque não oferece um caminho facilitado para se chegar nem ao início e muito menos ao fim de algo ou alguma rota pré-estabelecida. O caminho leminskiano é o da verdade. Verdade enquanto inocência, verdade enquanto pureza. O poeta, sabedor das interferências do mundo em nossa humanidade, ofertou-nos a possibilidade da procura do sentido vital através de uma enorme avenida onde a poesia, instalada no cotidiano, é o ponto de partida para tudo.
Ao se tomar como ponto de partida o sentimento de alteridade, aquele em que o outro se transfere a outra esfera de sentido, sendo-a em sua inteireza, já que participa de toda a problemática das construções, podemos fazer uma leitura de toda a literatura leminskiana como sendo ela a presença deste outro em cada pessoa transformada, em cada verso escrito e lido e vivido como se último suspiro, em cada rompimento advindo daí como numa necessidade bruta, como numa necessidade de reconhecimento e também de autoconhecimento. Paulo Leminski não fazia poesia à toa, ao léu, a seu bel-prazer. Sabia ele, perfeitamente, que o lugar da literatura na vida das pessoas é o mesmo lugar do sangue no corpo, o mesmo lugar do sonho na alma.
Leminski parece compreender que, tal qual uma arma branca, o poema – ou a literatura em si - é uma lança afiada que perfura as estações do nada no humano, o fogo lento que faz e desfaz o que somos para nos tornar melhor a cada novo passo empregado em direção ao presente, que nada mais é que uma prévia do futuro. Concentrado em não se concentrar em absolutamente nada além de seu fazer artístico-literário, Leminski pariu desejos de juventude, formulou sentimentos de revolta, geriu sensações de liberdade, invocou percepções de transcendência, cobriu o mundo de impressões de verdade, que subsistem a partir e após a sua própria trajetória de vida, sinônimo de lealdade ao que tanto se amou ou se quis amar.
REFERÊNCIAS
ABREU, Márcia. Cultura letrada: leitura e literatura. São Paulo: Editora Unesp, 2006.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.
CANETTI, Elias. A consciência das palavras. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011.
JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? São Paulo: Parábola, 2012.
JÚNIOR, João-Francisco Duarte. O que é realidade. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
WALTY, Ivete L. C.. O que é ficção. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
Outras imagens:
* Imagens retiradas do Google.