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Por Germano Xavier
Uma vez eu me perdi com minha prima no sítio do meu avô. Eu tinha uns dez anos de idade. Ela, uns doze. Tínhamos ido buscar mangas e nos perdemos. O sítio ficava a bons quilômetros do centro da pequena cidade onde morávamos. Interior daqueles bem frondosos. Fomos aparecer no sítio vizinho, entre o cair da tarde e o raiar da noite. Andamos em mata fechada e nos arranhamos muito. Minha mãe já existia desde então. Remedinho nas mãos. O ardido nos ajudou. Evitou infecção. Quem sabe, até a morte.
Glorioso.
Viva como nunca. A memória é assim, inesperável. Quando menos se, lá ela em nós, em recordações a nos fazer parar.
Estanquei.
Naquele dia, sem cadeira de balanço, ali mesmo à mesa da lanchonete no centro da cidade feroz, um eu, um de mim, homem já formado, trinta e poucos anos, lembrei que a minha infância representou o tempo das feridas abertas. Dos arranhões. Dos cortes. Das sangrias. Não o tempo das dores indefinidas, das dores sem nome, as mais perigosas. Mas o tempo das quedas das altas árvores porque almejei olhar a menina que perambulava no outro quintal, dos joelhos lacerados, dos dedões dos pés topados depois das partidas de futebol no meio da rua.
Quantas saudades das peladinhas a la modalidade “travinha”, onde nossos chinelos serviam de barra!
Agora, no saboreio insosso desta pequena xícara de café impiedosamente frio e adoçado, a contragosto observo que as feridas da infância eram lúdicas, poéticas, não doloridas. Na caixa de medicamentos, que minha mãe guardava por detrás do espelho do banheiro, havia o Merthiolate. Um frasquinho, sempre à espera. Aquela ardência ajudava a imprimir as memórias. Depois, a dor se perdia na beleza e na pureza das lembranças.
O remedinho ardido ajudava a sarar. E ficavam somente as boas recordações do acidente de brincadeira.
Agora ele não arde mais.
Apurei as vistas, como quem busca um resquício de luz no meio do breu. Minha prima nem deve se lembrar.
- Por que a pressa?
- Não estou com pressa, Jó.
- Para onde estamos indo, então?
- Manga verde com sal e pimenta do reino, já comeu?
- Minha mãe me disse que faz mal.
- Crer nisso é que faz mal, Jó. Venha!
Jó era estabanada. Empolgou-se. Saiu abrindo picada para todos os lados com seu corpo, que era maior que o meu. Nem ligava. Eu ria dela, adorando o seu fervor. Coitadinha, foi quem mais sofreu com as arranhaduras naquele dia de exploração.
Difícil mesmo seria imaginar o Merthiolate assim.
Sem a ardência, que me fez armazenar tão bem aqueles machucados, como ficaria a memória real da minha vida? Seria tão viva como é hoje? Saberia eu quantas vezes lacerei o dedão do pé não fosse pelo ritual. De correr para a mãe, que corria com o remedinho ardido. Minha mãe fazia isso. Podia até não fazer. Para os jurados, todas faziam isso. Está no imaginário popular. A ardência está ligada às aventuras da infância. Às descobertas, às pequenas infrações, aos mais íntimos desmandos. Aos projetos mirabolantes que não deram certo. Aos nossos primeiros desgovernos.
Não era uma dor. Era uma ardência. Qualidade ou estado do que arde, do que fica em fogo, do que queima. O que é aceso, cintilante, iluminado. O que possui vivacidade, veemência. Calor. Ânimo. Entusiasmo. Picância. Aí acabaram com. Trocaram o Timerosal, a Acetona e o Álcool pelo Digluconato de Clorexidina. Alegaram um milhão de coisas. Deve ser verdade. Coisas ruins para a saúde. Tóxico. Deu nos jornais, na televisão, nas rádios. O povo foi alertado sobre a mudança na fórmula. Dali em diante, o velho remedinho deixaria de existir, e a infância dos homens seria impressa com tons menos garridos de vermelho.
* Imagem: http://www.deviantart.com/art/child-voices-168828904