segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Livro sob o camafeu



Por Germano Xavier

Para Lúcia Bettencourt

Ninguém suspeita de mais nada. Apesar de a considerarem uma fugitiva perigosa, não conseguem se livrar da pecha que o ofício de secretária traz à mente dos mais ingênuos. O que todos pensam, deveras, é que ela jamais seria capaz de produzir tanto mal. Não sabem onde ela se encontra no exato momento, se aqui mesmo caminhando em uma das largas avenidas de Buenos Aires, ou se em outro país disfarçada com uma peruca ruiva e um belo vestido italiano. Ela, justamente ela, a secretária de Borges, a mais nova portenha acusada de plágio.

Mas não é para menos todo o rebuliço que o respectivo fato provocou. Um caso muito peculiar, realmente. Atravessar meses ao lado de Borges, do velho e já quase exausto Jorge Luís Acevedo, trabalhar como sua secretária pessoal, ouvir do próprio monstro sagrado da literatura os ditames de sua arte labiríntica, dia após dia, encarregar-se de copiar as frases proferidas pelo já quase cego escritor e, não obstante, aproveitar-se da sorte para mudar o teor dos textos que ouvia e copiava e, no fim de tudo, terminar por publicar um livro com a sua própria assinatura, como se ela fosse a autora daqueles contos fantásticos, daqueles poemas maravilhosos. Ah!, isso indubitavelmente é um crime dos mais bárbaros.

Sentia-me bem agora, já distanciada da massacrante rotina de viver. Deste outro lado, no post-mortem, conseguia observar tudo com mais clareza. Foram poucos os momentos em que logrei do tempo de que eu realmente necessitava, e tal desprazer me aconteceu durante toda a vida. Daqui de onde estou, vejo na sala o meu filho Borges, sentado no velho sofá empunhando sua bengala de cedro. Aparentemente cansado, meu filho segue com o coração dos ouvidos aberto, em pulso normal, tacitamente escutando o que o escriba tinha dentro da boca naquela bendita hora.

- Olha, Borges, ninguém sabe do paradeiro de sua secretária. Já entrei em contato com muita gente, mas ninguém possui informações.

- Não se preocupe, meu filho – falou o lobo argentino, cobrindo de suavidade as arestas das palavras.

- Juntamente com o seu editor, estou providenciando mais pessoas para a captura daquela falsária.

- Não carece mais, meu bom amigo, deixa ela.

Isto resumia tudo – ou quase tudo. Borges não estava preocupado com o desfecho da história. Renomado, dono de um lugar expressivo no cânone literário mundial, o argentino deixava emanar de seus gestos apenas um parcimonioso sentimento de resignação, como que sabedor de que a única coisa que importaria a ele no auge dos seus oitenta anos de idade era apenas a figuração realista da morte, ou o espectro real do movimento último advindo do poder de sua memória, esta espécie de ave carnívora que dele se aproximava contundentemente.

Depois de escutar o último dizer do mestre, vi o escriba sair cabisbaixo pela porta da cozinha. Meu filho continuou sentado por cerca de quatro ou cinco minutos, talvez refletindo sobre o sucedido, ou talvez desejando que a foice lhe chegasse rápida com o golpe laminado final, bem na altura do seu pescoço, fazendo-lhe respirar aliviado. Devia estar pensando na situação constrangedora em que a sua secretária havia se metido, agora uma moça bonita e sem sossego, incapaz de gozar de uma paz mínima ainda em seus iniciados anos de juventude, procurada por todos, exilada do mundo.

Com movimentos suaves, meu filho mexeu a cabeça para a esquerda. Fitou ao longe o quarto, as vistas despronunciadas e viu, como num quadro onde o pintor utiliza-se da técnica do sfumatto, a embaçada forma do camafeu que me pertenceu e que se encontrava no mesmo lugar onde deixei antes de partir para o outro mundo, encostado ao velho guarda-roupa, sobre a penteadeira na alcova que foi minha por gerações inteiras. Presenciei toda a cena. Com dificuldade, meu filho caminhou até o cômodo. Ao passo que ia se aproximando do camafeu, um objeto ia tomando corpo em cima do móvel antigo. Mais alguns pesados e lentos passos e o grande tomo ia ganhando proporções reais. Era um livro. Neste momento, imaginei que ele já conseguia, só de ver o borrão nas vistas cansadas, sentir até o peso e suas exatas dimensões, tamanha era a sua vivência com tal artefato.

Não sei como a idéia de ele saber o que estava em sua frente me era assim tão facilmente verificável, agora já segurando na palma de uma de suas mãos o livro, ou o que o fizera ir até o quarto, direcionar-se exclusivamente para o canto onde estava o camafeu, decidido a averiguar aquele objeto com os próprios sensores do corpo e da alma. Muito estranho achei porque não me lembro de ter deixado um livro sobre o móvel nas vésperas de minha morte. Ainda mais pelo fato de, apesar de Borges ter um mundo de livros e viver a literatura intensamente, eu não gostar de me arriscar profundamente em romances ou coisas do gênero.

Vi Borges encostar o rosto no livro, no intuito de ler o que havia escrito sobre a brochura, quando numa explosão interna de sentimentos, misto de surpresa e torpor tanto para mim quanto para ele, a voz do meu filho ecoou lúcida e potente de dentro do quarto:

- Parece-me fácil viver sem ódio, coisa que nunca senti, mas viver sem amor acho impossível. Sabes bem o que acabara de fazer?

- Perdoe-me, senhor – disse a secretária, surgindo em rastejo serpentino de debaixo da cama.

- Eu não falo de vingança nem de perdão, o esquecimento é a única vingança e o único perdão.

- Mas foi mesmo o senhor, meu amo, que uma vez me dissera que acreditar no amor é ter fé num deus falível.

- Todos os caminhos levam à morte. Perca-se.

Algum sentimento estranho se aventurou dentro do meu ser. Daqui de onde estou não posso ver nada. Apenas ouço o diálogo. A secretária do meu filho não está em outro lugar senão dentro de casa. Nunca estivera em outro lugar. A falsária tivera se escondido embaixo da minha velha cama. Deus meu!

Sem conseguir olhar diretamente nos olhos de Borges, a secretária lhe estendeu uma das mãos:

- Vide, meu senhor, esta é a mão que às vezes tocava a tua cabeleira quando se sentava naquele sofá e começava a ditar-me as tuas frases.

- A velha mão segue traçando versos para o esquecimento – disse o escritor, com voz rouca e pesarosa. – Por que fizestes isto?

- Calam-se as cordas. A música sabia o que eu sinto.

Mas o silêncio é viscoso demais e poucos são os que o suportam. O silêncio é profundo, e de em tantas profundezas se enveredar, como numa patafísica ironia o silêncio alguma coisa diz, numa alguma hora decisiva.

De repente, nada mais se fez ouvir. Do mesmo modo como deu entrada no quarto, Borges dele saiu. Lançando ao solo passos piedosos, meu filho chegou à porta que dava para a cozinha. Olhou para o chaveiro próximo à janela e o percebeu incompleto. Vendo o escriba sentado em um dos tamboretes, com o telefone encostado em uma das orelhas, interrogou:

- Alguma notícia dela?

- Não, senhor. Nada ainda.

Borges voltou-se para a sala em puro silêncio, refletindo sobre o motivo de o quarto da mãe estar ali aberto naquela hora, quando o normal é estar cerrado e sua chave imiscuída aos outros molhos e chaveiros na cozinha. Virou o rosto na direção do quarto e não viu mais a sombra do objeto em cima da penteadeira. Para dentro de si mesmo, sussurrou um pensamento:

- Obscuramente livros, lâminas, chaves seguem minha sorte. No deserto acontece a aurora. Alguém o sabe. A vasta noite não é agora outra coisa senão fragrância. Disseram-me algo a tarde e a montanha. Já não me lembro mais.

domingo, 30 de janeiro de 2011

#1



Por Germano Xavier

A menina era sem nome,
mas na idade dela nome isto era uma coisa pouca
demais. Valia mais um punhado de pirilampos
acordados de noite ou de dia, luzindo.

Eu mesmo, olhando-a daqui,
resolvi chamá-la de Beatriz -
não me pergunte o porquê.

Penso que Beatriz fora à praça quando a tarde
emudecia. Fora com o seu avô,
de mãos dadas, quase calada. Andarilhando,

apercebeu-se das graudezas miúdas
que só nas floragens inocentes existem.
Por isso veio ela dobrando a esquina,
assim com as mãozinhas no bolso,
como quem esconde um tesouro.

Era Beatriz querendo guardar para si
um tantinho do Tempo-Camaleão.

Cartas de navegação



Por Germano Xavier

CARTAS DE NAVEGAÇÃO, de Nuno Gonçalves, é um livro de poemas sobre distanciamentos, medos, sobre uma condição de marginalidade perante o mundo que devassa a ordem do existido, do existível. O que há pode entrar em ruína a qualquer momento. A poesia aqui serve como um aviso sobre nossas fraquezas e nossa desfaçatez concernente ao todo do mundo. A atmosfera espaço-temporal gerada em suas páginas maquina um tumor que beira a malignidade nos sentidos de quem lê. A alma se adoenta quando a pureza da vista sofre maculações necessárias no decorrer da leitura. Tudo é um sofrimento conjunto, do autor com o leitor. A consequência é a produção de uma consciência em atividade inquiridora. O autor nos coloca diante de um lugar que é nosso e que está demasiado distante de nossas mãos, mesmo estando perto demais, o que nos causa um certo desespero por não poder tocá-lo em sua inteireza. Faz isso nos dizendo: “O nosso paradeiro é um lar distante”. O mapa que nos guia revela uma poesia referente ao nosso próprio descobrimento, e nos olvida do que não nos são préstimos e essências. “Esqueça tudo que não for amor”, versifica, reforçando tal idéia. Por detrás das forças que operam o contrário do bem, o amor surge impetuoso, feito um deus duro e capaz de maldades benévolas. Num cenário regado a desesperanças, onde “Não há nada/ Desta pedra não se tira leite”, somente o amor pode burlar o fel da vida. O homem rompe o silêncio para se transformar numa “Máquina de procriar escuros e afogar naufrágios que insistem”. A prosa poética se mistura ao verso livre, que bebe constantemente em repetições, para fortificar o sentimento de uma cotidianidade feita de realidades. O poeta lembra dos amigos e constrói uma cidade quase inabitável em mirante do morro de santa Terezinha. Deseja a morte em versos como “tragam os pregos para minha crucificação”, terminando por nos alertar sobre as desventuras da vida no estado purgatorial. Talvez só valha a vida na desforra e no desbunde, ou na quietude dos nirvanas existenciais. Canta “os senhores da terra e das sementes”, gente que arde na brasa das folhas de fumo da Cachoeira de tantos santos tragados por históricas batalhas pela identidade e pela resistência de um povo. Aprender com tristezas, saber lidar com toda sorte de infortúnios, alimentarmo-nos de sementes, operar germinações íntimas, lições que a poesia de Nuno Gonçalves nos coloca em seu livro CARTAS DE NAVEGAÇÃO. Porque a base de tudo é somente o que somos. Será?

sábado, 29 de janeiro de 2011

O condado de Spitzbergen


Por Germano Xavier

II


Em sua última aparição, Napoleão Joujaumontx encarou imbróglios diversos que acabaram por mexer no seu comportamento habitual. Percebendo que nada estava acontecendo como ele queria, Napoleão Joujaumontx resolveu observar a administração de um de seus impérios do Ártico, ali nas proximidades de Spitzbergen. Furioso ao ver os desmandos de seus dependentes, o general de cinco estrelas, Napoleão Joujaumontx, decidiu ir ao encontro de seu mais antigo súdito e provável herdeiro de seu trono, posto que havia desconfiado de alguma falcatrua ideológica e de uma decepcionante corrupção material.

Parecia perdido em sua existência errante, quando tomou fôlego novamente e corroborou a sua última frase, dizendo...

- Já sei u qui fazê, pô! Tenhu um planu mirabolanti aqui na cachola. Aqueli salafráriu du Pinóquio vai si arrependê di tê mi conhecidu. Eli vai vê cum quem está li danu! Ah, si vai...

Napoleão Joujaumontx, a lenda viva e o virtuose do poder, num acesso de cólera, iça sua adaga imperial e grita gritos de homem já experimentado em fronts por todo o mundo...

- Eu hei di ti pegar, seu gatu disgramadu! Eu hei di arrancá us fiapus di teu bigodi, seu bichanu di uma figa! Ou eu ti capu di uma vêis pur todas ou eu não mi chamu Napoleão Joujaumontx!

Depois de elevar a voz forte e máscula de guerreador invencível, Napoleão Joujaumontx, ele mesmo, o irmão caçula do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, aquele do Saavedra, olha para o seu relógio suíço de ouro 24 quilates e acerta os ponteiros de sua próxima glória...

- Agora são 07:37 da matina i você tem exatamenti uma hora pá aparecê di ondi quer qui você isteja, seu Pinóquio disgraçadu. Eu não disistu assim tão fácil não! Doa a quem duê, eu ti capu ainda hoji. Nunca mais você vai mi disobedecê dessi jeitu. I vou logu avisanu, viu! É melhó você trazê a disgraça du meu chinelu, purque sinão a coisa podi ficá ainda mais preta pú seu lado!

Armado da cabeça aos pés e com os devidos broches da Academia Militar de Paris pendurados no belo capuz azul com bordados turcos, o artilheiro-mor Napoleão Joujaumontx começa a aferir todos os recantos do condado de Spitzbergen, onde descansava havia duas semanas...

- Ondi é qui essi infiliz si meteu!? Atráis da bosta da geladêra nova eli num tá. Nem imbaixu da pia. Piorô atrais du bujão. Sabi di uma coisa, eu vô é procurá lá no banhêru. Gatu gosta di iscondê suas artis em locais privadus. Nada melhô du qui vê si eli istá atráis da latrina. Não custa nada averiguá!

Conhecendo novamente a força que impulsiona os maiores homens da história a lhe percorrer as veias e as artérias, o indestrutível Napoleão Joujaumontx demonstra uma certa malemolência corporal logo depois de adentrar pelo portão sul do Condado de Spitzbergen, perto do setor de descarga de paramentos bélicos de seu já citado território...

- Pô, qui disgraça di fedô é essi! Qui disgraça é essa, meu padin Ciço! Quem foi qui obrô nessa merda i não deu discarga!? Pinóoooquio, seu felinu maleducadu! Deixa eu ti pegá qui você vai vê a cô du meu currião vermei, viu... Pô, esse banhêru tá parecenu us infernu... cum aqueli tantu di inxofri frevenu nus caldeirão lá das terra di baixu. Qui fedentina, meu padim! Pareci qui não limparu a privada desdi o início du anu.

Surpresa maior o maior dos mestres da guerra iria ter ao abrir a tampa do seu esconderijo subterrâneo...

- Qui tulete é essi, meu sinhôzim do Ceará! Aqui tem cocô qui não acaba mais! E é cocô di gatu, i di gatu safadu! Pinóooquio, seu gatu fididu, queru tê uma convessinha cum o sinhô! Apareça, seu vermi disubidienti!

Depois do susto, mas ainda claudicante, Napoleão Joujaumontx percebe uma trilha feita com as pegadas de seu súdito. Uma trilha construída recentemente, ainda viva e de perfeitas formas...

- Ah rá, seu Pinóquio di uma figa! Seguindu essa istradinha eu vô ti achar rapidinhu e pegá você cum a boca na butija!

Mesmo descobrindo uma real pista do seu escudeiro trapaceiro, o irmão caçula do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, o fenomenal Napoleão Joujaumontx, utiliza-se de cautela, dom daqueles que já nasceram para a arte da guerra*...

- Eu não possu mi afoitá. A paciência nessas hora é a melhó coisa a si produzí. Precisu esperá chegá u meiu du dia, pois assim terei mais chanci di capiturá Pinóquio. Todu gatu é priguiçosu quandu u sol tá nu meiu du céu.

É quando Napoleão Joujaumontx percebe alguma coisa a se movimentar no setor norte do Condado de Spitzbergen...

- Meu padin Ciiiiiçooo! U qui foi aquilu, meu deus!?!?!

...

Não perca o próximo capítulo da saga de Napoleão Joujaumontx!
Você não perde por esperar...

Obs: Napoleão Joujaumontx não leu "A Arte da Guerra", de Sun Tzu. Todos os seus conhecimentos foram adquiridos em campos de batalha, comendo o pão que o diabo amassou.

O ginete adestrado



Por Germano Xavier

II


Eu sou apenas um sonhador e acredito em "Mundos". Eu só quero que você me entenda! Mas se você não quiser entender, não faz mal. As coisas vão continuar sendo "coisas" e as coisas... ahh!... não vale a pena explicar. Quando se quer escrever é bom que se ande, pois a matéria-prima dessas nossas loucuras são mais facilmente encontradas nas ruas, avenidas e esquinas dos "Mundos". Tudo é muito barato e quase sempre gratuito. Uma verdadeira pechincha, sem contar que a relação custo-benefício é extraordinariamente positiva. É por isso que estou sempre andando por aí, muitas vezes tentando me encontrar.

Foi numa dessas minhas andanças que percebi o quão selvagem é o Amor do ser humano. Na margem do rio, uma égua se aproxima de um ginete adestrado; primeiro, há uma troca de sinais e entendimentos e, logo depois, como que de súbito e inopinado, a égua se oferece num gesto ligeiro. Assisti à cena e acabei percebendo uma relação de interesses fortíssima durante aquele ato. A égua desejava segurança, respeito e maior autonomia territorial. Já o ginete adestrado queria a conveniência da fêmea, a fama e o status de garanhão. Naquele instante, enxerguei o homem em todos os estágios históricos, pois não pense que essa troca de favores é marca ou consequência da pós-modernidade. Um auto-retrato da selvageria e irracionalidade humana. Alguém aí sabe onde eu deixei aquele meu "chazinho"?

Viver é mesmo uma provocação. Eu sou apenas um sonhador, e também um proxeneta (já se esqueceu disso?!). Eu ainda não consegui entender o porquê dessa desfaçatez absurda. Calma! Eu não estou dizendo nada demais! Eu sou um humano pseudestésico, lembra? Mas é que o Amor é mesmo uma droga, sempre nos deixa no chão. Toda vez é isso: decepção, ilusão, barbitúricos, suicídio... A minha puçanga, eu preciso da minha puçanga!

Por favor, não pense que eu sou um louco. Eu posso explicar tudo! Eu não estou aqui para criar confusão. Tudo que quero é que você me entenda. Não se aborreça por minha causa. Eu sou apenas um sonhador e estou aqui só de passagem. Continue! Viva! Apenas viva! Pássaros coloridos, onde estão meus comprimidos? Sirva-se de seus pseudosumos, mas continue vivendo! Perdoai a eles, pois não sabem o que fazem!

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A autoria da reflexão


Por Germano Xavier

o outro
em lugar
de explicá-lo

ou descrevê-lo

o todo
em seu vigor
hipotético

hipotético-teórico

a medida
assumida
como sendo

talvez

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Iraquara no olhar de um viandante



Por Germano Xavier

Voltei. Mais uma vez solando as calçadas poeirentas do vermelho-barro da cidade onde nasci. É quando me desponta um movimento no pensamento acerca dos olhares daqueles que são apenas seus visitantes e passageiros. Eu me pergunto sobre o que eles vêem, sobre o panorama imagético que lhes atravessam os sentidos quando rompem suas cercanias, suas serranias. E como são tantos os meus questionamentos! Num misto de preocupação e consciência defensiva, tenho por mim que estes "bandeirantes" intermitentes, turistas vindos dos mais diversificados lugares do Brasil e do mundo, não conseguem abarcar nas vistas nem a mais ínfima parcela da monumental representatividade que a Chapada Diamantina Meridional, em especial o município iraquarense, exerce e tem para revelar. E se achas que o nativo é o abençoado de toda esta história, não se engane, explorar é um verbo que custa caro e oprime quem tem direito.

Por alto, recebendo informações já castigadas pelo uso, através de guias despreparados, com suas frases mecânicas e de pouca criatividade, suspeito que os turistas e os autóctones já se cansaram de ouvir que o nome Torrinha - nome referente à gruta de maior destaque espeleotemático da região e também à cordilheira onde está situada -, vem de uma diminuta formação rochosa que se assemelha muitíssimo à arquitetura de uma torre; como também imagino a restrição no roteiro de desbravamento a que as pequenas empresas de turismo, atuantes e deslocadas principalmente no perímetro que engloba a cidade histórica de Lençóis, distante de Iraquara pouco mais de 50 quilômetros, impõem aos visitantes, quase nunca oferecendo novas opções para o conhecimento do público, cobrando verdadeiras fortunas pelos acompanhamentos e instruções, impedindo a população local, financeiramente desfavorecida, de também usufruir destes divertimentos e oportunidades.

E quem não tem a chance de caminhar pelo universo da região chapadense, mormente de conhecer as naturais belezas achadas na Área de Proteção Ambiental na Bahia (APA Marimbus), perde a graça de não poder ver as enormes cascatas geradas pelos inúmeros rios da região, as campinas entrecruzadas pelos riachos que galopam pelos canais de arenito, os leitos pedregosos que brincam de mistério durante todos os dias do ano; perde a graça, como diria o escritor e poeta iraquarense Ângelo de Mattos¹, de enxergar "os lindos salões existentes no seio das enormes cavernas... cujos tetos parecem ser sustentados por lindas colunas esculpidas pela natureza, as quais são tão perfeitas que parecem ser construídos pelos mais hábeis arquitetos da Terra. A estátua de Moisés" que "parece caminhar" nos seus interiores; "um altar formado na encosta do salão, em cujo centro acha-se um religioso a apregoar; "... a escultura de Moisés a atravessar o Mar Vermelho, seguido de seu povo e perseguido pelo Faraó; esculturas de vulcões em erupção..."; "beduínos a cavalgarem seus camelos no deserto. “O Espírito Santo de Deus em forma de pomba, esculpido pela natureza”, que "parece sobrevoar a gruta; vaga-lumes a lampejarem no seu interior, como se pretendessem banir as trevas; rios cristalinos oriundos de lugares desconhecidos a cortarem a gruta de Norte a Sul; rastros de pessoas adultas e crianças, indeléveis no chão, restos fossilizados de animais antediluvianos escondidos nos cantos mais ocultos da gruta e tantas outras belezas naturais...²"

Sem falar no "cântico mavioso das arapongas e sabiás bicos-de-osso a saltitarem nos galhos mais altos das árvores, as gigantescas gameleiras de folhas robustas a assombrearem o local por onde passam os regatos, as corujas rasga-mortalhas a crocitarem na escuridão da alta noite com seu cântico agoureiro à procura da companheira, as lindas serranias que cortam a chapada, as macegas que ocultam as codornizes e os inhambus que vivem a piar anunciando o anoitecer no sertão, os vaga-lumes a piscarem na noite escura alumiando seu caminho, o curiango-tesoura a fazer suas acrobacias nas curvas da estrada, o silvar da serpente à procura da companheira, os rios que se chocam fazendo remanso, a lograr o desejo da sucuri que, ávida, espreita a passagem de animais de pequeno porte com o fito de saciar a fome, o diamante de cor esverdeada (a mais dura pedra preciosa formada pelo carbônico cristalizado a brilhar no leito do riacho, emitindo chispas a afetar ligeiramente o bom funcionamento de nossa retina". Todo um capricho depositado por mãos magníficas e mais que humanas encontra-se à revelia dos olhos do simples homem, habitante nato e, também, mas em menor grau, ao homem que vem de fora. Biodiversidade que sofre com a falta de estrutura e organização.

O homem ainda não conheceu Iraquara, ainda não sabe o que é verdadeiramente estar sobre o solo diamantino. Ninguém viu nada, ninguém vê. Ninguém nunca viu nem o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente agir em prol da boa manutenção deste espaço sagrado. Só para citar um exemplo de descaso, lembro a ação predatória das pessoas que residem nas serranias, sempre à caça de animais silvestres, contribuindo exaustivamente para a extinção de boa parte da fauna local. Uma catástrofe. É quando rememoro as palavras do poeta Ângelo: "É imprescindível que alcemos vôo rumo ao ponto mais alto das cordilheiras de nossa imaginação e de lá lutemos com veemência contra a ação predatória dos "imperadores" das serranias, para que alcancemos o ponto culminante da realidade brasileira até agora desconhecida³”.

Outra vez em retorno, Iraquara, e você a saber que voltas e regressos sempre me doem. Fica uma sensação esquisita de que não devíamos nos permitir, no canto esquerdo de uma salinha sem vida, a oblação de um cântico de luz. Sofre imaginar que toda volta é um recomeço, e que recomeços tendem ao que não vingou, ao que não foi ou ao que não poderia ser. Combato, hoje, minhas obviedades mais simplistas, e na procura de um fusível perdido, curto um curto que, se não é de choque, é circuito de se ir. Perigo é fazer o retorno impossível, o retorno insubstancioso. Melhor caminhar torto pelo caminho vital, quebrando caras e bocas, beijando luzes e lamas, estéticas joviais. A gente sempre tem a sensação de que na próxima esquina, na padaria da rua, no banco do consultório médico, desponte o algoz voraz, surgindo pelo portão principal, decidido a nos capturar. E para isso retornos servem. Para nos dizer das horas e das lutas possíveis...


Notas.
1 – Escritor e poeta iraquarense, autor de O império das serranias.
2/3 – Excertos retirados do livro O império das serranias, de Ângelo de Mattos
Pereira.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Em memória de mim



Por Germano Xavier

"Terá sido frio seu súbito abraço?"
(Caio Fernando Abreu, em Pequenas Epifanias)


Um primeiro aviso ao leitor: não quero estar vivo após escrever o ponto final desse texto. Principalmente não quero me sentir vivo. Ultimamente a vida me tem surgido um tanto carregada, tatuagem de pedra encravada nas costas. É certo que há dias em que a desgraça se instala e fica, como na maioria dos finais de semana. Finais de semana não foram feitos para pessoas como eu, definitivamente. Hoje é um sábado, amanhã será um domingo. Festanças, comemorações, alívios, gente andando pela orla com seus cachorros, papagaios, gatos, cavalos, gnus e rinocerontes de estimação - por que não rinocerontes? Mulheres e homens bebendo, papeando, tagarelando, resenhando suas mais inclassificáveis trivialidades. Crianças nos parques gastando suas infâncias. Velhinhos no dominó e no gamão esperando Godot chegar e eu, um ser estranho, sentindo tudo aqui na clausura do meu quarto razoável. Estou pensando em minha imortalidade, enquanto os outros não. Os outros nem ligam, não se esforçam para morrer brandamente, como sempre faço. Estou pensando na minha mortalidade, enquanto os outros não. Os outros apenas vão, e chamam isso de "ir apenas" de liberdade - estarão certos? Estou pensando em coisas que são desprezíveis aos outros - pelo menos agora, na parte pulsante desta coisa a que intitularam "vida". Estou pensando - e penando também - em assuntos como a morte, como a vida, como a minha mitologia, como a mitologia do mundo, como a desgraça que é ser assim, sentir dor por tudo, sentir dor por nada. Não, não é que tenho gosto pela maneira como vejo o mundo, as pessoas e as coisas. Não é isso. Não sei até quando sou feliz por assim agir nem triste, sinceramente não sei. Porém, é quando dias assim como esses me abraçam o corpo sem piedade alguma que sinto ainda não ter sido capaz de obter a permissão para entrar de vez no paraíso. E não sei se é deveras este o destino permanente a que aspiro para o depois daqui. Apenas estou pensando em minha possibilidade de morrer, em minha expressiva potencialidade de deixar de existir, de ir, virar pó, nada, ar, de desaparecer para todo o sempre. Só isso que estou a fazer agora. Ao passo que não consigo ignorar a morte que caminha comigo - posto que é ela a própria alma da sombra que me projeta maior ou menor dependendo do ângulo de incidência da luz -, assino minha qualidade de ser essencialmente mortal. Borges me diz que "ser imortal é coisa sem importância", e aceito. Minha imortalidade estaria em não me preocupar com ela, e com nada parecido - o que é, de fato, quase impossível. A afirmação por algo, de ser alguma coisa, é a própria constatação de que não se é ou não se pertence. Ninguém é deus ou será apenas se auto-afirmando como um. E depois disso, novamente penso nas pessoas com seus rinocerontes de estimação, nas mulheres tagarelando pieguices, nos velhinhos jogando a tarde sobre um tabuleiro quadriculado, nas crianças brincando sem economias. E penso em mim, mais uma vez. E mais uma vez penso no que será de mim após o ponto que finalizará o texto que agora redijo. Estarei morto mesmo, como que pronto para um funeral ligeiro e sem pompas? Continuarei vivo e mudarei alguns conceitos acerca das minhas imaterialidades tão presentes e indefiníveis? O que será de mim após meu pensamento? Mas, Borges, eu também não pretendo ser tão débil a ponto de morrer por qualquer coisa. Por favor, não me entenda mal. Eis o meu ponto final.

Tango eterno



Por Germano Xavier

Levamos sempre a parte que nos falta. Embrulhados e formidáveis, levamos, quando saímos, também nossas proezas e nossas vinganças. Apavorados, berramos cinturados por látegos e grilhões. Nossas imediatas evidências são os ápices de quando conhecemos as coisas. Precisamos sempre do primeiro encontro, ainda puro, sem análise, sem estudo de caso, sem tese. Assim o flúmen desce a correnteza banindo dérbis e outras maiores sentenças heráldicas. Os tangos sempre existem e também esquinas por onde os sinos dobram badalos. Somos diversidades iguais, em tons entusiastas, no passo de uma mazurca noturna, mentalizando deuses, arrancando confirmações, iludindo nossos sentidos, fabricando supremacias, centrando e desacoplando geometrias e álgebras. Ela trouxe à baila nossa verdade e foi para ela que escrevi minha febril penitência. Eu estava saindo de casa. Dormi pouco e muito era. Não dava mais. Insuportável esfera de doer no peito, machucando minha infância de amar. Dor no peito que é passeio sem mãos. Eu saía de casa, àquela hora da noite, chuva em ópera, pássaros acuados, e era eu quem regressava. Era eu quem voltaria a vê-la trôpega, preguiçosa, o sempre tropeçar no pano sempre da porta do banheiro. Aquele dela vestidinho de menina roceira, rocio de madrugadas da gente, égua cavalgando meus pastos, patos e lagoas, patos. Eu singraria toda aquela água negra e côncava, encharcado no meu próprio charco, meu defunto, atirado em êxtase, e também vivo, pirata que eu era, saqueador, afanador de tesouros, perfurador de petróleo.


Foi para ela que escrevi a palavra que escorria de mim.
Nosso tango, rodopiado sob o teto do Grand Palais.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Educandário de Safo



Por Germano Xavier

"De mim te sei esquecida, e não mais
tu me amas: a um outro sim - e mais".
(Safo de Lesbos)


quando me beijas,
feito boca de Átis,
eu te prefiro eternamente.
mulher, eu me refiro
amantemente que sou
nosso todo amor.

amo a lira do teu ventre e
gero teu filho
na eólica cama, e
na varanda te amo te amo
te amo, trancafiadamente.

nascemos em Lesbos
e para sempre hei de senti-la.
teu beijo é mais que fala, vem
como quem cala
- e qual dos silêncios não ama?

não repara no grito profano
que estala na noite. olha o humano
que há no desumano encontro
das dores. ama o amor na instância
irresoluta, no sagrado templo

estica a adolescência das essências nossas.
iremos, assim, travar a luta do amor com fim: fatalidade.
sacrificar as plêiades, buscar
esta falta que sangra. ó quando
me beijas!,

tal língua d'amada, eu parto contigo
sem solidão e sem saudade,
sobrecarregada, parto contigo em
retirada. e nesta ausência,
amor, amo mais e

me torno forte, aprisiono o fogo
no leito da contramão e da vontade
do poder, porque, a despeito do que amo
e do que aceito, sinto fumegar cá dentro
do peito este seixo em lava,

que de tão intenso e tão contrário
se decompôs em vaidade.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Pássaros no panorama



Por Germano Xavier

Eu, um ghost writer.
Para a Srta. A.
E dela para o Ted.

Ela era uma menina alva, sei lá, parecia. Adorava um país frio que falava inglês. Talvez sonhasse em um dia morar nele. Lugar longe. Vivia dizendo que de palavras não brotariam flores, que a natureza nos tinha como sedentos inúteis. Seu rosto era lindo, dono de uma cor rósea. Um dia, caminhando pela praça, encontrei-a sentada num banco, com um livro grosso nas mãos. Eu pedi licença e fui sentando. Ela me olhou rapidamente entre o sol no horizonte e o livro que segurava e disse que nós, humanos, não acrescentamos nada à vida, a não ser tirar dela o que não temos: a paz que paira sobre as coisas simples.

Para ela, pude inferir depois de certo tempo, em um copo preparamos lucidez enquanto as árvores recebem canções. Embriagamo-nos de prazeres por acreditarmos que neles estão todas as satisfações da alma e acertamos. As satisfações, assim como os desejos, foram feitos para se consumirem em si mesmos e morrerem no instante claro após sua consumação. Eu nem acreditava muito no dia, mas ela, assim, emprestando sua beleza às flores da pequena praça, deixava-me crente de que tudo era possível. O mundo, a humanidade, a paz, o fim das coisas ruins, mesmo que o tom de sua voz quase sempre fosse o da melancolia.

Entre uma página e outra que ia lendo, filosofava belissimamente, como em: “Bebemos poemas, quebramos xícaras em nome da arte, pintamos os olhos de vaidade para cegos alcançarmos mais rápido toda a sorte de ilusão. Sim, amamos as mentiras, são elas que nos tornam fortes, invencíveis, mais do que Ricardo III diante da amada.” Era um espetáculo ouvi-la, tinha o poder de adormecer as libélulas suas frases desconcertantes, de acalentar os musgos, sua voz doce e sábia pintava borboletas no ar. Num determinado instante, depois de vermos uma criança brincando com outra da mesma idade em nossa frente, tocou meu joelho com uma das mãos e disse, candidamente:

- Os pássaros... Eles sabem de toda a verdade. Eles têm raiz solta e uma leveza profunda. Seus olhos falam e seus corações, de ouvirem passar o vento, valem por tudo. E os meus erros de português valem muito mais, mas batem em mim. Arrancam-me a pele como uma mordida devidamente apaixonada em seu tempo. Como se eu não morresse nunca e eternamente te buscasse em mim, como uma explosão. O fim é a salvação do nosso desespero. Nós precisamos acabar. Acabar é esquecer.

Eu fingia que a entendia, mas por vezes parecia que eu estava diante de uma coisa muito maior. Não saberia descrever, era apenas muito maior que eu. E por isso eu me calava e continuava ouvindo. Ela usava uma capulana lindíssima neste dia – não sei por que razão, já que admirava tanto os fatores europeus -, com a qual fazia uma saia de aparência demasiado rústica. Na parte superior, uma blusa branca conseguia dar contorno aos seios. Uma sandália estilo romana lhe calçavam os pés suaves. E o seu rosto no espelho era sempre o mesmo, ainda que meus olhos mudassem frequentemente.

- Agora que enfim achou o que procurava, por que está triste? – perguntei.
- Porque não era meu.
- Como assim?
- Não era meu. Eu achei, mas já era de outra pessoa.
- E o que você fez? Devolveu?
- Nem cheguei a tocar.
- É guitarra?
- Não.
- É o que?
- Não sei de que nome eu chamo.
- Era importante?
- Sim.
- Como uma coisa pode ser importante para você se nunca a teve?
- É que eu sinto falta do que nunca existiu.
- Hum, entendi. Quer café?
- (...)

Tal qual fez Sherazade diante do rei enlouquecido, ela distraía o tempo com o volume que brotava de sua garganta. Eu, mero espectador, buscava absorver as cores de suas palavras com meus olhos de espanto. Ela não entendia o quanto estava sendo maravilhoso tudo aquilo. Parecíamos contadores de histórias maquinando uma nova mitologia de formas incríveis. Éramos as mensagens dos povos passadas de geração para geração, os valores, a ética, as superstições, os conflitos, os mistérios sagrados e profanos, as religiões e as crenças místicas, simplesmente abauladas em um diálogo puro no meio de uma tarde que, ao modo borgeano, mais parecia um porto.

- Você tá muito chato.
- Os italianos colocam nomes de rios em seus cachorros.
- Você não tem cachorro, você nem gosta deles.
- Muito menos dos italianos.
- Não faz sentido mudar de assunto assim.
- É melhor do que ficar calado.
- Sua voz metálica não disfarça a irritação, tampouco a vontade de ficar quieto.
- Vai ver o silêncio tem alguma utilidade, assim como a tragédia.
- A arte não tem nenhuma.
- A música tem.
- Quem garante?
- Olha, o gelo acabou.
- Mas que gelo? Dá pra completar o raciocínio pelo menos uma vez?
- Do whisky.
- Pensei que fosse o seu.
- Eu não sou gelada.
- É verdade, você é tão quente, hohoho. A Islândia tem inveja. É um husky siberiano numa alma de pássaro.
- O que isso significa?
- Born to be wild.
- Wilde?
- Wild!
- Violento e leve ao mesmo tempo?
- Não tem como.
- Tem sim, se sou um husky-passarim.
- Tá, tem sim. Viu como o seu humor já melhorou?
- Que nada, é sexta à noite e tô sozinho em casa.
- Qual é o problema?
- Tenho algo que não é meu e sonho com lugares que não estão.
- E onde eles estariam?
- Em Mikonos.
- Han?

Eu preciso dizer: ela construía pássaros. Quando falava. Vocês nem imaginam como isso se dava. Mas a paisagem transformava-se inteiramente a partir do momento em que ela pronunciava as coisas. Em um dado momento ela fez uma cachoeira imensamente vertiginosa aparecer ao meu lado, com suas águas chuás-chuás caindo próximas ao meu ouvido. Outra vez me cobriu de estrelas cintilantes. Era tonteante a sensação. Apesar de uma parte de mim não entendê-la bem, outra parte regozijava-se de tanto delírio, deleitando-se em completude.

- É, lá onde a comida me entende melhor do que as pessoas. Coisa fina, sabe. Exausto de gente rústica. Mas não quero falar disso agora, estou com cansaço antecipado de todas as coisas.
- Você está entendiado só porque seu final não chegou ainda. É outro figurino antes de terminar a cena. Não obstante, na hora de seguir estrada, de mãos dadas, como no final naquele filme - e de todas as novelas, você vai continuar assim.
- Assim como?
- Mudando de assunto.
- Tá, mas eu não entendo de vinhos e nem sei do que está falando, agora.
- Estou falando de você, o seu assunto preferido. Aliás, você adora fugir de assuntos favoritos. Vou acabar achando que não são tão queridos assim.
- Eu já disse que não entendo de vinhos, mas acredito.
- Você precisa viver sem precisar das pessoas. Veja o mar, está à sua frente. Entre nele como quem pula cordas ao amanhecer.
- Eu nunca pulei cordas ao amanhecer. Eu não pulo cordas.
- Mas certamente conhece crianças que pulam.
- Eu não conheço crianças que pulam cordas.
- Os deuses tinham razão em eleger a Grécia como lugar ideal para nascerem, mas tinham ainda mais razão em te eleger como o mestre da tristeza. Ter coração de filósofo não é pra qualquer um. Por que não escolhe outra profissão?
- E quem disse que eu sou filósofo?
- Você só faz perguntas e na hora de responder se agarra a devaneios. Filosofia é isso, meu caro.
- Eu gosto de pessoas que falam "meu caro". Na verdade, tenho tara e queda por pessoas educadas em geral.
- Em geral?
- Na verdade, em especial.
- Uma em especial?
- Isso não é redação de vestibular pra você retornar à introdução.
- Tudo bem, Miles Davis fala por nós.
- É, deixa tocar a música, ganhamos mais com isso, ela traduz o que eu não sinto.
- E o que você sente, quem traduz?
- Ninguém. Acho que só o tradutor do google, eu só falo línguas estranhas.
- Há um belo subtexto nessa frase.
- Não tive a intenção.
- Você nunca tem nenhuma, esse é o problema.
- Por que você só fala sobre mim? Não existem outros temas pra você desenvolver? Por que falar sobre a minha vida? Não gosta de viagens? Fale delas. Fale sobre qualquer coisa.
- Você sabe dançar?
- Eu não sei dançar, eu odeio valsas, me dão labirintite e tenho problema de reumatismo.
Fico girando, tonto, a pele dói.
- Quanta frescura! Céus!
- Eu não quero conversar, eu já disse. Se ao menos você fosse bonita e tivesse me apertando contra alguma rua estreita em Alexandria. Mas você é feia e chata. Deixe-me em paz com meus pensamentos, daqui a pouco esqueço deles.
- Mas essa era a minha missão, será que consegui?
- Quanto mais você fala, mais eu lembro.
- Por quê?
- Porque está em todos os lugares.
- Não está não, ninguém é onipresente, só Deus. Está apenas na sua mente. Você é tão infinito assim?
- As pessoas que gostam de gatos tendem a ser bem parecidas com eles.
- Você gosta de gatos?
- Nem tanto.
- Gosta?
- Odeio.
- Realmente é uma pessoa estranha.
- Que nada, sou um normal, apenas, cercado de diferentes.
- Eu também não gosto de filmes imperdíveis, acho todos uma bobagem.
- Depois eu que não faço sentido na conversa.
- Agora me diga, de verdade, qual é a regra para uma verdadeira história de amor?
- Regra?
- Sim, regra, algum problema?
- Nenhum, eu acrescentaria apenas o plural.
- Existem regras?
- Claro que existem. Eu, por exemplo, não me encaixo em nenhuma, por isso sou sozinho, sempre.
- Não é, está.
- Sou, sempre serei, sempre fui.
- Coitadinho do Senhor Sapiência. Sua nostalgia tem hora marcada com a dor nos ombros, sabia?
- A noite nos torna densos.
- Você é denso em qualquer horário, querido.
- Você me disse que eu era leve como um pássaro.
- E o lobo, esqueceu?
- Lobo não, cachorro.
- Ah, dá no mesmo.
- Pássaros não dão no mesmo.
- Não dão no mesmo porque são únicos. Existem coisas que são, você sabe.
- É exatamente o que eu não queria saber. Tenho tanta coisa arquivada na minha memória que meu hipocampo podia simplesmente explodir. Eu não consigo deixar de ser assim, nem poderia ser de outra forma, mas eu insisto.
- Insiste em quê?
- Em não insistir.
- É uma boa oportunidade de insistir sim, mas em coisas bonitas. As primeiras luzes da cidade estão se acendendo. O céu está claro.
- Eu não consigo ver isso às 22h.
- Você não consegue ver isso às 10h.
- Eu não vou insistir nesse papo.
- Porque você não consegue insistir em existir de outra forma.
- E existe outra forma possível de existir?
- Sim...
- Eu acho que não.
- Por que não? Procure uma forma.
- Eu nunca tentei.
- Agora eu sei por que está triste.
- E o que eu faço com isso?
- Escreve.
- Pra quê?
- Escrever é esquecer.
- Mas eu não quero esquecer.
- Então me leia.

sábado, 22 de janeiro de 2011

A lama


Por Germano Xavier


esta cama
este não-amor
esta chama
esta dor
já me tem
e o mundo
tão fundo

esta lava
este dissabor
esta flama
este calor
não me tens
e o imundo?
este ardor

esta cama
esta chama
esta lava
esta flama
este não-calor
este dissabor
dissador

este ditador
o amor!

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O chinelo, o gato e o Imperador



Por Germano Xavier

O fabuloso, o fantástico, o estupendo, o incrível, o inenarrável, o maravilhoso, o magnânimo, o impermeável, o inclassificável, o parafinado, o memorável, o homem que Deus guarda, o mosqueteiro das ínfimas situações, o fantasma da ópera, o paraninfo dos covardes, o homem que tudo vê, o grande, o maior, o incomensurável, o independente, o abominável homem das pequenas coisas, o dono do mundo, o prefeito dos formigueiros, o presidente das reuniões inacabáveis, o magnífico, o tirano e respeitadíssimo Napoleão Joujaumontx acordou atordoado e o relógio marcava 06:32 da matina.

Sem água no condado, Napoleão Joujaumontx resolve conferir um de seus Impérios do Ártico...

- Pô, u supe bondi qui comprei onti já tá cum u bico intupido. Qui disgraça di cola é essa qui cola até ela mesma!? Tô aqui matutano umas idéia, pera ainda... Deve havê algum poblema cum alguma coisa, purque num é possíve umas coisa dessa! Paguei foi quato pila na bosta da cola pá agora ela ficá assim...

Indignado e pensativo, o grande Imperador das libélulas rastejantes, o imprevisível Napoleão Joujaumontx, aparece com uma lâmpada acesa sobre a cabeça, como nos desenhos animados de antigamente...

- Issu! Suspeitei desdi us primórdio das civilização! É a disgraça da geladêra. É daquela do comercial i tá cum menos di um mêis qui ela invadiu a cuzinha aqui di casa. É issu! Motô novo só podi dá nissu, congela dimais. É purisso que cultuo u som dus bulachões. Já ouvi dizê qui quem iscuta muinta música em aparei de Mp3 fica surdo em seti anus. Pur causa das finas feqüências. Bulachão é uma onda, u chiado pareci música clássica.

Fingindo uma melhora em seu estado de nervos, Napoleão Joujaumontx é acometido por um pequeno desvio de comportamento e acaba reagindo de maneira abrupta e impensada...

-Pô!!! Gastei dinhêro pá dedéu na merda dessa cola maluca! Vô jogá é no lixo!

Depois de atirar o objeto na pequena lixeira da cozinha, o insubstituível Napoleão Joujaumontx tenta o pneumotórax...

- Meu chinelu! Cadê u meu chinelu!? Pô, cadê u meu chinelu? Qui disgraça di dia é essi qui já amanheceu dano tudo errado! Pô, devi tê sido o Pinóquio. Ah, quandu eu pegá aqueli gatu safadu eu acabu cum a raça dêli... ah, si acabu! Pinóooooooquioooo!!! Ô, Pinóoooquio! Bichano, psiu, psiu, psiu!!! Venha cá, meu herdeiro!!! Pinóoooquioooooooo...

Depois do insucesso da investida, o inabalável Napoleão Joujaumontx conversa silenciosamente com os seus botões...

- Pô, num sei u qui é qui eu faço agora. Nem cola nem u qui restava di meu chinelu, e muinto menus sei du paradêru du Pinóquio... Eu tenhu qui bolá um planu!

O estrategista Napoleão Joujaumontx encara o desafio de encontrar o seu calçado com a seriedade dos grandes generais. Quando todos pensavam que o Imperador dos imperadores precisaria de muito tempo para elaborar uma tática de abate, o gênio Napoleão Joujaumontx aponta o dedo indicador de sua mão direita na direção de sua testa e vocifera como um leão enfurecido...

- Já sei u qui fazê, pô!
...

Não perca o próximo capítulo da saga de Napoleão Joujaumontx!
Você não perde por esperar...

Feito assombramento do cão



Por Germano Xavier

Hoje, apresento a vocês a história de Doró. Mais uma criação minha, talvez minha melhor criação. Talvez o "menino dos meus olhos". Tenho muitos capítulos já escritos e hoje ele me pediu a vida. Cansou da escuridão das gavetas e do negro dos meus arquivos. Doró ganha vida a partir de hoje e aprende o caminho do mundo. Doró que sou eu, que é você, que é tudo e todos. Um menino que não aprendeu a maldade, que ainda acredita na água cristalina. Um menino que sonha, e só.


I
doró juntava as mãos
numa saraivada de aplausos
toda vez o vento abraçava
a velha mangueira
perto ali quintal de casa
perto ali quintal de sonhos

doró cria do mundo ensimesmado
pensava os seus botões
morenidão
do seu gesticular descamisado
"se mesmo sô do mato bicho levado
e se rio eu sozinho desmiolado
acredite culpa num sofro no fundo
esses homi tudo aconjuntado
rasga de inveja pru mim abençoado
p'essas nuve d'algodão amaciado
p'esses vento de coração lavado"

doró cai cai
e tôma bâi pelado de outras roupa
da alma
quiaqui num tem fantasma na gente colado
feito assombramento do cão

pra bicho grande cassaco foge

e era mesmo dessa maneira o menino
arredio mas bem conversado

esperto doró bicho do mato
via tudo pelos buracos
e tresmalhava tudo pra outras bandas
que não as dele, e era e só

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Minhas puçangas


Por Germano Xavier

I

Viver é uma provocação. Digo isso... ou melhor, escrevo isso (já que é notável a minha boca fechada) por acreditar na existência de "Mundos". É isso. Viver é uma provocação e eu acredito em "Mundos". Calma, ainda não é hora para se assustar! Porém, vou logo alertando: já tomei alguns psicotrópicos, alguns medicamentos para dormir (verbo que não consegui conjugar durante toda a minha infância-adolescência), perdi o grande amor da minha vida, até então, há pouco... já pensei seriamente em suicídio, cultivo a solidão do meu quarto sempre que não sou impedido, sou um sujeito pouco sociável e que rói as unhas sempre que pouso as mãos sobre o teclado de uma máquina de escrever. Ah, já ia me esquecendo, também já furtei muitos objetos em uma grande loja de departamentos (lembranças eternas).

Por favor, não pense que eu sou um louco. Sou apenas um sonhador e, por vezes, um proxeneta. É isso mesmo! Gosto quando os outros se prostituem. E é justamente por isso que tomo barbitúricos. Não entendo essa prostituição mútua disfarçada em "ficâncias". "Oh! Última flor do Lácio...", como te ferem! Palavras sem destino! Palavras indecisas! Eles não tem pena de ti! Perdoai a eles, pois não sabem o que fazem.

Não! Não se exalte por minha causa. Eu sou um humano pseudestésico (tenho essa sensação quando leio a Constituição da República Federativa do Brasil). Eu não estou nem aí para esta "realidade". Eu sou apenas um sonhador. Continue! Viva! Apenas viva! Você sabe onde eu deixei a minha puçanga?

Não sei se devo insistir, pois acho que já estou ficando chato. Mas é que... você sabe... as meninas pós-modernas são indignas por demais, nunca vi - Julieeeeeeeeeeeettaaaaaaaas!?!?. Calma, eu posso explicar! Não fique chateada, eu sou apenas um sonhador e estou aqui só de passagem! Não quero criar confusão. Eu sou apenas um sonhador e acredito em "Mundos". Não deixe de viver por minha causa. Sirva-se de seus pseudofrutos, mas continue vivendo! Eu sou apenas um sonhador que acredita em "Mundos".

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Iraquara, muito além do esquecer



Por Germano Xavier

Ouvindo Mautner, com "Todos os fogos, o fogo" do Cortázar¹ aqui ao meu lado direito, espiando-me para ver se não farei nenhuma besteira, dou-me mais uma vez a esta "coisa assassina" que é escrever. É esta minha labuta diária, brotada numa sexta-feira treze de algum mês do presente ano, ainda girino em mil novecentos e oitenta e quatro, indefeso nascendo no único hospital da cidade, ali na Praça das Árvores – ainda hoje o único, após mais de vinte anos -, a manha para minhas constantes transformações e reformas humanas interiores. Tem um Dauphine² aqui, vazio, com a chave na ignição – é o que sempre digo a mim mesmo, até quando a chuva aponta longe-perto nos morros gigantes da Chapada Diamantina, avisando-nos sobre o tédio. “Não deseja acelerá-lo?”, diz, sempre, uma voz irrequieta.

Eu falarei de Iraquara, cidade baiana natal, lugar que me possuiu em plenitude até os idos de minha adolescência de quatorze anos. Falarei, falando-me também, porque sou parte. Há de precisarmos da memória, daquele sentir guardado no escrínio de nossa alma, lugar mais ameno. É ela, e também o esquecimento, a mãe de todas as benfeitorias. Eu começo gritando a todos vocês, conhecidos e desconhecidos, que eu perdi Iraquara. Não, eu não estou blefando. Há muito não vivo em Iraquara, não ando suas escuridões noturnas, não cheiro suas manhãs vazias de automóveis nem bebo o rebusnar dos jumentos chegando das vilas e povoados para o movimentado e cansativo dia de feira-livre. Todavia, mesmo sendo este o meu último-inaugural barulho, reforço-me na idéia de pertencimento.

Pertencer é uma palavra difícil, pesa uma tonelada e, para ser mais direto, demanda um conjunto inteiro de vivências. Porque pertencer é ter consciência de construção, de participação, de si próprio. Mas voltemos a Iraquara e às palavras que por ora teço. Minha rua, a Tito Luna Freire, já não é mais a mesma, as praças idem, os domingos de se visitar a parentada, amigos se foram – para nunca mais? -, o Educandário José de Arimatéia não existe mais, as brincadeiras de bola e a amurada pequena do vizinho, onde cada timinho esperava sua vez no “baba” vespertino, também são só lembranças. Muita coisa mudou nesses anos em que andei fora, trocando o encardido dos meus pés pisantes de paralelepípedos sujos de terra vermelha por uma alva pele acostumada ao asfalto sem gordura.

Quando, em mil novecentos e noventa e nove, aportei em outros solos, eu não sabia que o ontem pudesse ter sido o meu último dia como iraquarense nato. Talvez eu jamais desconfiasse de tal acontecimento. Um último dia é sempre algo tão longe, tão dissoluto. O derradeiro dia é tão... tão... infinito. Distante! E também impalpável, incompreensível, sem medidas. Mas, então, o que me faz escrever esta crônica-dor senão a existência de um fim, de uma presente imagem daquilo que se acaba? Por que não deixar um último registro de mim, de uma experiência de troca, para que um derradeiro olhar atinja meu universo e o universo dessa cidade tão nova, mesmo que seja apenas a forma de minha arcada dentária num pão dormido, ali mesmo, sobre a velha mesa de todos os dias?

Perder dói, eu sei. Mas ninguém foi derrotado, é preciso que se diga. Nem eu nem você, absolutamente ninguém venceu. A única vantagem que vejo em tudo isso, em toda essa nossa relação, e isso vale para todos que namoram sua cidade - se é que há vantagem nesse jogo -, é que todos nós aprendemos, e o melhor de tudo, aprendemos a crescer. Não é que eu, Iraquara, filho de tuas profundezas, esteja reclamando a tua face antiga, saudoso e nostálgico. Nada disso. Sei bem que não és mais ingênua como antigamente, que em teus vãos ratos e outras nojeiras compõem agora sua paisagem, o perigo das entradas e saídas, a violência, assim como renovadas fontes de alegria e beleza. Você cresceu, eu também cresci. E continuamos crianças, flores anônimas, desabrochando.

Ao contrário do que possa parecer, Iraquara, só estou cuidando um pouco de ti. Esse cuidado em te querer, inesgotável em riquezas e sofrenças, ambígua fonte de sorrir-chorar, de odiar-amar, que dormir-sonhar, que tanto me formou, não pode tomar sereno e se adoentar. Eu perdi minha cidade, cidade que nem só das grutas será, mas que a ela pertenço. Eternamente. E ternamente. E por isso, e muito por você, Iraquara, é que sigo te esperando lá na frente, "onde ninguém saiba nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para a frente³".


Notas.1 – Escritor belga-argentino, autor da obra-prima O jogo da amarelinha.
2 – Automóvel de origem francesa, fabricado pela Renault em meados do século XX.
3 – Frase retirada do conto A auto-estrada do sul, presente no livro Todos os fogos, o fogo de Julio Cortázar.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Abril ou maio


Por Germano Xavier

Pouso.
Embora fosse a hora
de ir,

lamentou o sorriso preso na xícara,
o grito gasto
nas cortinas, a sinergia
do corpo tal

muro,
tão. Se em boa hora for
do teu agrado
o grave apelo do vão,
do não, seco -

pão do nada, pão da perfeição? -,
deixai adormecer, ó viril órgão,
do ventre de partida,
amolecer do óleo da intriga,
da moeda pobre ao menos

um senão
do coração...

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Vereda seca



Por Germano Xavier


“Eu devia estar diante da mulher da minha vida!”, exclamei. Fiz isso com a voz rouca e peculiar do menino para o menino que existia dentro de mim mesmo, na porta da escola, naquele dia azulado. Era tarde, o dia ensolarado, o local metálico demais, sem rosas, sem flor alguma, nem uma sequer anônima flor que varasse qualquer metro daquele asfalto e diminuísse a angústia instalada em meu peito. Apenas uma árvore exibia uma modesta sombra sobre a calçada abarrotada de estudantes. Eu moço ainda, em terra estrangeira, calor danado, típico garoto com o sonho de ser alguma coisa na vida. Eu me lembro do colégio e de quase todos os meus colegas, dos professores, do simpático casal dono do colégio. E que o coordenador, Sr. Adimar, com aquele celular na cintura e pose de mafioso do Mario Puzo, fazia a gente tremer de medo nas aulas. Tinha o professor gago de química que no começo era insuportável porque além da gagueira ele tremia e suava de tanta vergonha e a gente não aceitava aquele disparate todo dentro de uma sala de aula. Afinal de contas nossos pais pagavam caro e queríamos professores bons. Tirando isso, era um colégio normal, mas naquele dia algo de muito especial havia sido selado entre dois corpos, alguma sensação ainda sem nome e sem rosto. A perplexidade tomou conta de mim. Foram poucos segundos de uma eternidade mágica.

“Até amanhã”, disse a menina, olhando profundamente para o semblante imótuo que era justamente o meu rosto. Logo depois dobrou a esquina que dava sentido ao centro da cidade, e sumiu feito um arco-íris. Sem saber como agir, repeti com a voz suave e trêmula as mesmas palavras da moça: “Até amanhã!” Ao sentir os olhos perderem de vista a figura que a pouco beijara, coloquei minha mão na altura do peito e percebi o pulsar do meu coração acelerar. O compasso desmarcado dos batimentos confundia-se com a profusão de idéias que se instalara em minha mente após o ocorrido. O toque labial ainda ingênuo, a proximidade absurda da carne, tudo se revelava inesquecível. Tive a impressão de estar em outra dimensão, flutuando no vazio de um sentir-se preenchido, tamanho o vigor impactante do instante. Foi somente um beijo, um curto querer estar junto, um mergulho na descoberta de si, um vôo... “para onde fostes, minha amada? Como podes me deixar aqui, na solidão de ser só eu, quando poderíamos ser o produto de uma só criatura? Não tens pena de mim?”, resmunguei, agigantando a vitalidade de uma recém-nascida saudade.

Foi meu destino alcançar-te com a rouquidão e fraqueza de minha voz. Devia estar escrito em alguma nuvem deste longínquo firmamento. Eu devia ter luz própria. Seria eu uma estrela? Quando criança, em conversas de família, ouvia minha mãe dizer que quando eu me tornasse um homem de verdade iria me casar com uma loira, alta, rica e dona de longos fios de cabelo. Para ela, bastava ser bonita e andar bem arrumada. Naqueles idos, tais palavras soavam como uma verdadeira intimação, um ultimato severo e sem direito a outra escolha. Tentei não idealizar a natureza estética de minha futura namorada ou esposa. A única vaidade que tinha concernente a este fato era a de imaginar que fosse ela bastante inteligente. Partia do pressuposto de que o ato de idealizar algo nos faz sofrer, torna-nos seres humanos indefesos e imaturos. Falo isso, pois sempre idealizei muito. Na época natalina, por exemplo, ou nas vésperas dos meus aniversários, nunca meu pensamento alcançou a pequenez material do que sempre era presenteado. Eu era grande, quase um homem, porém meus anseios eram diminutos. Isso me fazia mais feliz que outrora. O meu silêncio agora podia ser ouvido a léguas de distância. O murmurinho do meu coração parecia estar querendo emanar a atenção de seres extraterrenos, tamanho era o barulho oriundo de toda aquela minha inquietação interior.

“Por que há de me abandonar justamente nestas horas inexperientes do meu ser? Volte para os meus braços! Abrace-me com o calor da sua pele branca!”, continuava. Do outro lado da rua, quase chegando ao centro da cidade a moça pensava consigo mesma “estou apaixonada por você! Estou encantada com o teu expressar tímido e pensativo”. À tarde, o caminho longo da volta, o ruído do pneu do carro tocando o asfalto ardido, as árvores passando velozmente diante da janela, o silêncio desesperador da minha alma. Sensações únicas sentidas na germinação de meus odores raros. Naveguei em águas profundas e azuis, soçobrando-me em minha solidão. Acabei no fundo do mar, na companhia de corais das mais diferentes formas. Estava perdido. Não havia oceano, e não havia água, não havia coral, nem a face magnífica do amor! Mas quem é você para me deixar assim, neste estado existencial indesejado e dicotômico? Será preciso a escuridão para perceber o quanto é acolhedora a claridade? Para te ver não basta que eu te sinta! Fechar os olhos e imaginar a imagem contínua do meu complemento... eu não posso chorar do teu lado, de saudade? Apertar sua mão, olhar nos seus olhos de floresta, e até mesmo ver uma fileira de formigas se dispersarem por um risco feito no meio do caminho? Será preciso uma despedida para eu ter consciência de que os momentos dessa vida, por mais que durem, são efêmeros?

Pensar que foi ontem que nos encontramos, sendo que há dois meses nos vemos todos os dias, como dois a se olharem num espelho. Não canso de refletir a minha imagem na sua. Minha cronologia é a da batida do meu coração. O seu bater silencioso e límpido nas ruas do mundo simbolizam o meu costume de querer-te. Faz pouco que senti o farfalhar das árvores sobre minha cabeça. Isso não me é de uma maciez incólume! Mas o que é a mulher em si? O que ela pode representar para a vida de um homem? Como não se deixar apaixonar por tal divindade? Comparo as mulheres às ostras. Mulheres... mas eu acordei sonolento. Era manhã do outro dia. Quarto pequeno, noite turbulenta e o pensamento distante. Distante léguas e léguas daquele lençol quente e daquele olhar desentendido. Parei por alguns segundos, observei os porta-retratos na estante e os meus livros sobre a mesa de madeira ao lado da porta. Os perfumes do meu tio, os discos de Dance e as roupas. Tudo estava ali, intocado e sem nenhum movimento. Estava tudo dentro da normalidade da minha vida normal. O mesmo vento que balançava as algarobas da praça da igreja matriz, as mesmas forças operantes e invisíveis que dobravam aquela esquina de lembranças e recordações moleques e infantis. As brincadeiras improvisadas com as meninas e os meninos até onde a rua conseguia se estender. Bila, pega-pega, esconde-esconde, bolo, e claro, o bom e velho futebol. Tudo muito similar à manhã do dia anterior, mas eu acordei, minha avó prestes a despertar de seu sono leve e preparar aquele cuscuz com requeijão delicioso...

Segundo dia e a gente já pensava em casamento e demos as mãos na festinha do meio do ano, depois da igreja, e estávamos andando nas nuvens, eu estava, não sei você, você nunca dizia nada e pior era eu, e seu horário estipulado para o regresso à casa. Seus pais no portão entravam quando apontávamos na esquina, deviam não gostar de mim, mas eles já estavam sabendo e isso para mim era realmente importante porque ser sombra é muito ruim. O seu irmão, aquela coisa aboiolada que sempre ficava rondando o nosso namoro, era mesmo um mestre na hora de sumir, quando eu ia deixar você na porta da tua casa. Confesso que tinha vontade de dar um murro bem no meio do olho dele sempre que se aproximava para dizer com aquela voz de garça aidética “olha a hora, viu!”. Mas eu era um bom moço, comportado, que vestia camisa de manga longa dobrada no cotovelo e que combinava o sapato com o cinto. Tudo para não te decepcionar e parecer alguém promissor. Sua mãe era uma boa mulher, seu pai um idiota de cabelos brancos. Dentro de mim eu sempre mostrava o dedo para ele, saiba disso. Foi bom conhecer os teus avós naquela tarde calma e a aparente simplicidade com que venciam os dias. Vocês apareceram no carro e me chamaram. Nada combinado, sempre melhor assim. Você não percebia que o improviso era gostoso de praticar. Foi isso que começou a me matar, matar o que eu tinha aqui dentro. Você não tinha vontade própria, tinha leis a seguir, e eu, apesar de todo engomado, sabia que banho de chuva tinha um gosto especial.

Aí fui não agüentando mais e mesmo assim quatro anos, não foi isso?, quatro anos e nada de você ficar de quatro para mim. Eu me sentia o homem mais imbecil do universo, como que traído não por você, mas por mim mesmo. Eu com essa cara de machão e quatro anos sem comer você. Nessa época era só isso que eu queria, mesmo com você longe fazendo o teu curso, eu ficava imaginando o dia em que voltaria e de novo eu te apertava contra a parede da sala, tentava uma investida mais forte, baixar a mão na direção dos teus vales ou das tuas montanhas, morrinhos pontiagudos no seu caso, e lembro da tua cara de “menino, deixa disso!, meus pais estão no quarto e podem aparecer”. Eu mandava todo mundo para a puta que pariu quando me olhava assim. Vá se foder você também, não corre sangue dentro de você, merda? Não quero me casar com uma barata, inseto de sangue frio. E você nada, nem uma pegada firme no meu membro para sentir que você era minha dona, nada, nada.

Agüentei tudo e você foi trabalhar na cidade grande e na Semana Santa atravessei o mundo por vinte e seis horas seguidas dentro da desgraça de um ônibus e fui chegar aí altas horas da madrugada e sem ninguém. Parei na frente dum posto de combustível abandonado, olhei para os lados e só vi medo e vontade de correr para algum lugar. Dava para ver a cidade inteira de onde eu estava, as luzes acesas e em cima um punhado de estrelas alumiando. Desceu um cara comigo e perguntou qual era o meu nome. Eu disse e ele falou “você é meu xará. Sou polícia e agüenta aí que vem logo um carro do departamento, te deixo na rodoviária do centro”. Vinte e seis horas com você no meu pensamento, mas a verdade mesmo é que fui porque agora, com seus pais distantes da gente, minhas chances de te furar eram muito maiores. O carro chegou e logo estava dentro da cidade, ainda perdido. Esperei o sol se animar e liguei para tua casa. Você veio com pouco tempo, você era a mulher da minha vida, porra!, apareceu de mansinho, quase não falou nada, sentou na minha perna esquerda, tuas coxas grossas pesando sobre mim, teus olhinhos verdes, eu o homem mais feliz do mundo, subindo uma lava de dentro, eu querendo agradecer até a Deus por qualquer coisa e principalmente por estar ali, você num cheiro que me castigava, tão quentinha debruçada no meu abraço, quatro anos, amor!, você disse que queria uma aliança bem grossa e treinamos até o beijo que daríamos dentro da igreja depois dos sins.

Você me pôs para descansar um pouco e preparou um leite. Ficou comigo o tempo todo e de tarde lembro do vestido jeans que você usou quando fomos à farmácia comprar o gel. Dia de domingo e as ruas vazias, as lojas fechadas, um ar tão doce, respirei. Ainda deu tempo para almoçar e voltamos. Como tatus, fomos para dentro do seu quarto. Fui teu professor, você travada, dura em tudo, nem conseguia abrir a perna direito. Estava morrendo de fome de você, quatro anos famélico e agora o dia tão esperado. Agimos sem cerimônias, você tirou tudo e me mostrou o teu V carnudinho. Faltei babar, aquela história de lava de novo, beijos, a gente se enrolando no lençol, peguei o gel e fui passando devagarzinho em tua boceta pequenina. Meus dedos na melhor valsa, dançavam, eu esfregava, você esboçava um gemido, você era a mulher da minha vida, empurrei o indicador e fui sentindo. Logo você colocaria uma bala de hortelã na boca e começaria a chupar meu pau de joelhos, lembra? Você dando seus primeiros ares de mulher, como foi gostoso. Lembro que fodemos muito naquela tarde, e também durante a noite quando voltamos da igreja. Pensei em ouro 24 quilates.

O tempo foi passando e chegamos a trepar até na casa dos meus pais. Lembro do colchão manchado e da desculpa que você deu para minha mãe no dia seguinte, dizendo que tinha menstruado durante o sono. Você ficou tão linda para mim naquele dia, lingerie bege toda desenhada. Um luxo. Depois te mostrei um lugar bonito e você na volta veio literalmente agarrada em mim. Quatro anos, nem acredito, eu consegui!, sou mesmo um felizardo. Você era virgem e sangrou teu primeiro amor nas minhas pernas. Engraçado como dou risada de você agora, quando passa por mim de mãos dadas com aquele idiota do teu marido. Fiquei sabendo que nem em casa ele gosta de ficar. No bar, certo dia, reparei o teu anel, um 18 quilates qualquer. Teu marido parece um mongolóide. Pensando bem, sou muito feliz, sabe. Aquele sangue que você derramou é a prova inconteste de que você não foi qualquer uma. Acho-te mágica também, e nem sei se você desconfia, mas não é toda mulher que tem o poder de edificar sentidos quando abre as pernas para um homem. Mas, de todo modo, releve tudo, talvez eu não preste mesmo. E ponto final.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A barcarola febril


Por Germano Xavier

o bico da águia
desperta
os luzeiros de sangue
nos tetos vermelhos
e adormecidos
da caverna feminil

cavando, cavando...

e insiste a ave
em deleitosa escavação

cavando, cavando...

e os sorrisos histéricos
em transe
embevecidos e sem controle

águia e pomba
contemplam a umidade escamosa
que brota

das minas ancestrais
dos vãos

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Alertimaginário


Por Germano Xavier

menino acorda acorda que já é hora que já passou da hora da hora de levantar levanta menino vai brincar na chuva vai sorrir encanto não deixa pra depois não que depois a gente cresce e vê que a gente esquece que a vida é uma brincadeira que não passa de ilusão vai não durma não que o sono é véu de morte vai venha logo e chama também o teu irmão traz a sacola de sonhos a chave dos mundos a roupa da infância a alegria do coração acorda que talvez não seja agora quando as estrelas surgem o momento de fechar os olhos e dizer que não

Indelicados tempos


Por Germano Xavier

Entrei em um supermercado Bom Preço no bairro de Brotas, na capital baiana, era ainda fim do primeiro mês do ano que vigora. Eu estava passeando com meu primo Mathias, de pouco mais de 10 anos de idade, quando resolvi comprar um pacotinho de barras de cereal. Preço da guloseima: R$ 3,98. Eu tinha cinco reais no bolso. Ok, vou levar - disse comigo mesmo. Mas aí, próximo ao caixa, deparei-me com uma destas prateleiras giratórias repletas de livros de bolso que tomaram conta do Brasil. E fui girando, girando, Proust, Flaubert, Lima Barreto... girando, girando e opa!, quatro reais e quatorze centavos o livro Tempo de delicadeza, do poeta Affonso Romano de Sant'Anna. Uma promoção! - livros estão custando os olhos da cara, concorda comigo?, o que é uma pena, principalmente em se tratando de um país tão necessitado como o nosso. O resto da história vocês já devem suspeitar. Falei para Mathias recolocar o pacotinho em seu lugar de origem e paguei pelo livro. Nada mal. Voltamos para casa e logo li a primeira crônica, que tem o mesmo título do livro - sim, o poeta é também um craque da crônica. Dali por diante não desgrudei do meu mais novo objeto. Como sugere o nome da obra, Affonso objeta que o leitor olhe mais atentamente para o mundo que está acontecendo, que está sendo produzido a toque de caixa através de relações humanas cada vez mais contraditórias, fumaçando e atravessando o tempo com uma pressa que beira o absurdo. São pequenos e doloridos beliscões dados na carne de nossa epiderme, tudo no intuito de fazer com que despertemos de um sono de olhos e mãos. Para isso, o autor esbanja intertextualidade, a todo momento remetendo-nos a outras paragens, sejam elas no campo filosófico, antropológico, sociológico ou poético. Não menos fascinantes, as crônicas que demarcam certas experiências pessoais vividas pelo escritor mineiro também encantam de maneira igual, como a que relata o dia em que viu o doutor Fritz operar uma multidão com métodos que, contrariando o que diz o ditado, nem Freud explicaria. Para quem gosta de crônica, como eu, trata-se de um livro indispensável. Affonso Romano foi o substituto de Carlos Drummond de Andrade na coluna que assinava no Jornal do Brasil, quando este nos deixou em 1984. Certamente é ele o cronista que mais admiro na atualidade. O pior de tudo foi depois ter parado para refletir e ter percebido o que eu tinha feito. Meu pequenino primo talvez tivesse passado fome naquele momento ou simplesmente ficado com uma imensa vontade de saborear uma deliciosa barrinha de cereal - e por minha causa, vejam só! -, haja vista o sol escaldante e o calor úmido típico de Salvador... enquanto eu me deliciava com o "suculento" livro que tinha acabado de comprar numa imperdível liquidação. Ah, quanta indelicadeza! - suspirei. Mas um dia ele vai entender.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Buena Vista Social Club


Por Germano Xavier

Resistir como símbolo maior da perpetuação de uma vida, de uma história - nesse caso, de várias vidas e de várias histórias. A música serve para isso? Em se tratando de luta, um território propício ao uso de tal termo é o cubano. Ou tudo foi mesmo espetacularizado e nada mais irreal considerar? Distante pouco mais de 150 quilômetros dos Estados Unidos da América, o único país socialista – ainda é plausível tal definição? - do continente americano foi o palco principal para a realização do documentário Buena Vista Social Club, que tem como diretor o consagrado Win Wenders, mestre na arte de documentar. O filme, que contou com cenas gravadas em diversos países, tais como Alemanha, Estados Unidos e França, além da própria Cuba, alcançou posição de destaque nos festivais de que participou, levantando o público e obrigando loas quase que intermináveis em grande parte das platéias. Mas, até onde o poder da manifestação artística pode chegar? Até quando a melodia de uma música enraizada, como é o caso da que o grupo musical retratado faz, pode soar mais forte que os clangores e estalidos metálicos do espectro cultural regado ao artificial e gratuito do mundo em que vivemos? Quais os limites ou as fronteiras da música, da boa música? Certamente, após assistir ao documentário, que possui 101 minutos de duração, fiquei com a nítida impressão de que para a música não existe barreira, que nada ou quase nada é capaz de impedir que a produção do som reverbere uma vibração de ordem construtiva ou destrutiva, não importa – importa?. E o melhor de tudo é perceber que a música também ultrapassa as trincheiras do tempo, tendo em foco que os protagonistas do evento estavam com idades entre os setenta e os noventa anos. Indubitavelmente, uma espantosa e, ao mesmo tempo, deliciosa redescoberta de toda uma geração de grandes músicos que, enfrentando inúmeras dificuldades, conseguiu abrilhantar novamente os campos da arte musicada. E o fizeram com muito orgulho e acurácia. O recheio de tudo isso é uma grande história de amizade e companheirismo, assim como de batalhas e conquistas. Luis Barzaga, Joachim Cooder, Ry Cooder, Julio Alberto Fernández, Ibrahim Ferrer, Carlos González, Rúben Gonzalez e mais outros vários componentes, acabaram registrando ao mundo uma marca que, precisamente, ficará para a posteridade. Tudo começou quando, no ano de 1996, o guitarrista Ry Cooder produziu um disco intitulado Buena Vista Social Club, onde colheu e armazenou recortes de velhos temas da música cubana. Não demorou muito e o disco foi premiado com um Grammy. Pronto. A tenda já estava aramada, só faltava reunir o "rapaziada". Essa reunião também não tardou muito e logo em 1999 o grupo foi convocado a reviver o passado, revelando ao mundo todo o "desencadeamento e desenvolvimento" dos "Buena Vista". Wenders passeia por Cuba, revelando em cada nova cena um retalho de uma antiga e demorada história de isolamento e resistência. A sociedade cubana, o seu atual estado, a sua população que carece de muitas coisas, o sentimento mesclado de fúria e orgulho que marca os semblantes das pessoas de uma geração que permanece à margem do progresso global, também são personagens contundentes e sufocantes no e do documentário. Um projeto onde os músicos não apenas contam suas histórias particulares, mas de toda uma nação, no mínimo, classificável como diferente das demais. No entanto, culpa-se "Buena Vista" de ser um material extremamente ambíguo, profundamente ideológico e que, de alguma maneira, tenta vender o modelo de vida norte-americano para o restante do planeta. E a bem da verdade é que não tarda muito para que percebamos as suas "questionáveis" intenções – estaria louco eu? Tenta-se criar uma atmosfera cult sobre o filme, localizá-lo como manifesto social preocupado em retratar a realidade daquele determinado país, de colocá-lo como um produto do gênero alternativo, entre outros mecanismos. Todavia, o que se vê são recursos até certo ponto medíocres e banais, que só ajudam a elaboração de mais pareceres polêmicos. Outro ponto a se destacar é o fato de que Ry Cooder ser americano e não um cubano. O "Buena Vista Social Club", que é o nome de um antigo clube em Havana, foi descoberto pelos americanos - e aí você pode imaginar as consequências várias de tal afirmação. Tudo está envolto numa densa cortina de fumaça. Porém, a tentativa de fazer um cinema transparente é logo destruída e, por certo ponto de vista, até facilmente. A recompensa para tanta exposição e tanto talento e tanto trabalho estaria em uma apresentação no teatro mais famoso do mundo? E onde, adivinha? Foi isso que, numa análise muito pessoal, foi a mim passado. Sem querer esquecer, é preciso refletir também sobre o deslumbramento dos músicos cubanos quando estão passeando entre os gigantes edifícios de Nova York, já no final do documentário. Não sou o mais indicado a falar de cinema, mas, para mim, não é um cinema experimental ou inovador em algum sentido, talvez seja a frase mais cabível para uma produção como essa que, mesmo tão discutível, apaixona os amantes da boa música e, porque não dizer, os amantes do bom cinema. Cinema verdadeiro ou não, a conclusão deixo na mão de vocês.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Amor de aprendiz


Por Germano Xavier

Tem criança que é uma danadura que dá gosto – ou desgosto -, não? Pintam o sete, como a vovó dizia, onde quer que estejam. Bom assim, diriam alguns, pois demonstram usufruir de uma vida absolutamente saudável. Algumas, conquanto, mereciam apelidos bem pertinentes aos seus comportamentos em “condições normais de temperatura e pressão”, algo do tipo “Espoleta”, “Foguinho” ou “Brasinha”, de tão espevitados e “quentes” que são. Além de pai, mãe e de toda a parentada, professor sabe muito bem do que agora vou contando. Depois que são “entregues” em suas respectivas escolas nos períodos de aula, é o professor que, querendo ou não, passa o maior tempo ao lado da meninada, ainda mais em se tratando das classes com idades mais inferiores.

Partindo do meu ponto de vista, ensino desde os meus dezoito anos de idade e durante estes oito anos dentro da sala de aula – com essas informações já podem calcular a minha idade hoje -, mesmo não estando em contato direto com a garotada infantil em algumas dessas temporadas, posto que é de minha predileção as turmas mais elevadas, pude perceber, com muita admiração e instinto analítico, as divergências pelas quais a relação docente-discente enfrenta ao longo dos anos letivos, o que decerto não é nenhuma novidade para ninguém.

Todo mestre assina um pacto de amor ou ódio com o seu alunado assim que entra na sala de aula pela primeira vez, seja ele quem for, em que estado de maturação intelectual estiver ou o grau de conhecimento abarcar. Não custa muito averiguar, já de supetão, quem foi ou não com a sua cara – ou com a sua lábia, há de se convir. Geralmente os meninos e as meninas das cadeiras da frente te olham com olhos de “Isso mesmo, professor, vá em frente! Estamos contigo! Confiamos no senhor!”, o pessoal dos lados, encostados em suas respectivas paredes e com as pernas quase ou totalmente estiradas, meio que esboçam, sem-querer-querendo, um olhar de esguelha, como que dizendo do fundo de seus eus “Hum, sei não, esse aí parece ser muito chato!”; a turminha dos fundos, geralmente, nem dá muito liga, vai levando sem muito pestanejar, e quase sem nenhum estresse, curtindo tudo em seu devido movimento.

O ano vai passando, as aulas sendo ministradas, as provas sendo aplicadas, os trabalhos executados, passeios idos e vindos, recuperações diagnosticadas, intrigas e burburinhos assinalados, e você acaba se tornando mais amigo de alguns e “inimigo” de outros. É sempre assim – as exceções são raras. Por mais que você seja um professor calmo, respeitador, ou mesmo o tipo brincalhão, que saiba conduzir de forma satisfatória o andamento do currículo previsto pela escola, essa dicotomia sempre irá existir. O que é bom, penso, até para servir de matéria-prima para uma auto-avaliação no final dos períodos de ensino. Desses pólos inversos eu, sempre que posso, tento adquirir mais sapiência para lidar com outros meninos e meninas nos anos vindouros ou em outras experiências.

Felizmente, no meu caso, a quantidade de “amigos” supera, e muito, a de “inimigos” conquistados nos corredores escolares por onde passei. Nesse quesito, os meninos são mais recatados, demonstram gostar de você com gestos e expressões mais sutis, menos ornadas, com aquela meia palavra que para o bom entendedor basta. Já as meninas, não. São sempre mais espontâneas, vivazes, preparam altas declarações de amor ao professor, te abraçam no início, no meio e no fim das aulas, escrevem bilhetinhos decorados com florzinhas e corações escritos com canetas de várias cores, chamam você para mostrar os seus pais, quando estes estão por perto, e assim vai...

Confesso, dá um ânimo danado você chegar à escola e ser recebido com um abraço carinhoso de uma aluna sua, um beijo na face, um dizer de pureza que só nessa idade podemos possuir. Nessas minhas relembrações, nessas minhas reminiscências incuráveis, vem em mente a Isadora, aluna minha do 5º ano na Escola Ana Nery, situada na cidade pernambucana de Petrolina. Era só eu apontar a minha moto na rua da instituição que ela partia em disparada para me abraçar e me beijar e me encher de coisas fascinantes que toda a minha sensibilidade podia captar. Isadorinha era meu remédio para todos os meus cansaços de quem fazia duas faculdades, fadigas de tantas provas para corrigir, desânimos de estagiário, desestímulos de razões as mais diversas... quanta saudade que tenho de você, minha aluninha adorável!

E quantos outros e outras também existiram! Aqueles que deixavam recadinhos no painel da minha moto para quando eu fosse sair e poder lê-los. Aquela turminha mágica de 6º Ano que caiu em prantos, um a um, e que fez coro de “Germano, nós te amamos!” na porta da escola quando eu disse que ia precisar deixar a turma por falta de tempo e por causa de minhas monografias. Aqueles que fizeram festas de aniversário para mim, com tudo que tinha direito, aqueles que não deixavam eu sair da sala de aula quando o sino insistia em tocar, aqueles que me chamavam de pai, que gostavam de me ver e de me escutar, que me emprestavam um pouco de suas vidinhas curtas e radiantes, aqueles que mandavam imprimir até em pedras a sua “paixão” pelo professor que era eu, que viajavam léguas e léguas juntos comigo na hora das explicações.

Meninos e meninas, carentes ou não, estudantes de escolas públicas e particulares, que guardei ou esqueci os nomes, que jamais esquecerei seus rostinhos alegres, pondo seus coraçõezinhos em festa, sempre sinceros, alimentando esta profissão que decidi, com orgulho, seguir. Que seria de nós sem vocês, espoletinhas-amáveis? Que faríamos sem vós, foguinhos-insubstituíveis? Quem nos queimaria de vontade de perseverar senão vocês, brasinhas-únicos? Nada, creio. Absolutamente nada. O amor tem dessas facetas, amor-perene, com gosto de saudade, com vontade de ver a criança crescer bonita e vencedora, com armas brancas e capazes na luta pela vida. O professor tem desses encantos, nasce para nunca morrer, porque fica, mesmo sem saber...