quinta-feira, 23 de agosto de 2012

TRÊS FILMES SOBRE O AMOR

Audrey Hepburn em Breakfast at Tiffany's (1961), de Blake Edwards

Breakfast at Tiffany’s (1961), de Blake Edwards, é um dos meus filmes favoritos. Deveria ter sido a primeira & a última comédia romântica. Não há nada mais doce neste mundo do que Audrey Hepburn cantando “Moon River” à janela de seu apartamento, uma invitation au voyage mais simples, verdadeira & tentadora do que a que Baudelaire nos faz no poema célebre.

E me lembro, incidentalmente, da piada em um episódio de Seinfeld, em que George Costanza (tinha de ser ele) entra para um Clube do Livro, mas obviamente não quer ler. O livro é justamente Breakfast at Tiffany’s, escrito por Truman Capote. George assiste ao filme ao invés de ir ao livro (o que é uma sublime preguiça, já que a história não passa de 100 pp. em letras grandes), e a piada final é sobre as diferenças entre uma coisa e outra.

Prefiro o filme ao livro, ainda que Capote seja, no corpo da narrativa, mais duro e realista. E prefiro o filme justamente pelo que resolveu adotar de uma doce e elegante fantasia ideal, que se tornou um ícone dentro das histórias de amor memoráveis da ficção. É como o trecho daquela velha canção do Casa Loma Orchestra, “Under a blanket of blue”: Let’s dream a dream of love for two.

Celia Johnson em Brief Encounter (1945), de David Lean

Por contraste, há uma pequenina obra-prima de David Lean, de 1945, um filme chamado Brief Encounter, baseado em peça psicologicamente complexa de Noël Coward (que assina o roteiro, também). É preciso pensar esses filmes juntos: um é a consumada história de amor, em que as peripécias nos conduzem à catarse; o outro, o cuidadoso estudo de um impasse. Nesse impasse os personagens não são particularmente encantadores, não é uma comédia, a realidade é contrafeita, o sonho não tem forças.

Não sei se Sofia Coppola pensava no que vou dizer, mas Lost in Translation é, de certa forma, um passo intermediário entre ambos, ou um modo de combinar aspectos daqueles dois filmes: filma o impasse como uma comédia, sobretudo pela presença inspirada de Bill Murray, já velho, e pela doçura torturada de uma (ainda mais) jovem Scarlett Johansson.

Bill Murray e Scarlett Johansson em Lost in Translation (2003), de Sofia Coppola

São filmes complementares. Suponho que rendam o melhor de si se os absorvemos entendendo e apreciando neles o que têm a encenar de uma verdade exemplar, nos ensinando, juntos, ainda uma outra vez o porquê daquela verdade muito antiga, que podemos vez ou outra esquecer: o amor é agridoce.


PS: este já preguiçoso Demônio Amarelo entrará agora em período de férias, & por motivo de força infinitamente maior.

segunda-feira, 25 de junho de 2012


perder, mas lutando

allmählich aber breitete sich diese anfechtung
aus wie ein um sich fressender rost.
                              hugo von hofmannstahl, brief des lord chandos

nas escadarias do berliner dom
onde sentei e teria chorado,
estrangeiros, mas outros,
fotografavam a fachada,
velhas sentavam-se rubras
de andar pela ilha de tantos museus
e filas de ingresso, e deuses lutando.
eu teria chorado, aguardando
a revelação da alegria,
tochter aus elysium, e o fogo
que inundaria meus olhos,
tomando meu corpo e espírito,
mais uma vez.
é tolo aguardar, entre a pedra,
um sinal da vitória do fogo,
e logo acima eu lia: unser glaube
ist der sieg, der die welt
überwunden hat, e todos sorriam,
turistas que estão de passagem,
sem nada no peito senão
câmeras, óculos, falta de ar,
que é somente cansaço de andar.
eu perdia, e a pedra da fé em berlim
gargalhava da antiga prece pagã,
tão perfeita expressão da vontade,
tão viva em meus lábios, e nada.
eu tinha o signo, a blusa vermelha,
e meus olhos detrás das lentes escuras
cansavam de ver sem achar.
teria chorado, é verdade: patéticos,
eu e os estranhos com quem dividia
a fina chuva em pleno dia, víamos
o leão da vontade morto nas lanças
do pouco saber. a realidade nos vence
por mera tolice; mas sonhos são belos:
leões contra pedra, feitos de fogo.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Rio+20, Belo Monte & Gary Snyder

A Rio +20 não é séria.

Já não seria séria pela espécie de logomarca do chamado “desenvolvimento sustentado”, que é uma chancela de fachada para todo tipo de abutre ganancioso fingir que tem um distintivo verde que lhe permite destruir o que for preciso pra ganhar dinheiro.

Não se trata de “desenvolvimento” (que não tem definição coerente), e muito menos “sustentado”, a menos que se queira dizer com isso que o enriquecimento de grupos privados deva ser sustentado pela rapinagem dos recursos naturais.

Propagandeia-se a Rio + 20 como o Brasil se importando de fato com questões ambientais, o que é o contrário dos fatos, & o contrário dos fatos precisa apenas do sussurro de um nome infame: Belo Monte.

Os defensores desse monstro hidrelétrico, desnecessário & caríssimo, que vai inundar as terras em volta, descaracterizar o ecossistema, desfigurar as terras dos índios, e criar uma situação inteiramente artificial de deslocamento humano para o lugar, têm tentado fugir da questão afirmando que é um orgulho nacional de empreendedorismo que os estrangeiros atacam por ciúme, ou medo da competição.

O que é uma fácil, mas bem ordinária, cortina de fumaça.

Sobretudo porque há uma boa lista de empresas estrangeiras monstruosas metidas em Belo Monte.

O poeta Gary Snyder, em um texto apresentado na Índia, em 1992, já percebeu como a conversa dos negócios tenta driblar suas efetivas responsabilidades ambientais com esse truque barato para os olhos do público.

Escreveu: “como temos freqüentemente visto, as agências do governo, ou os interesses dos negócios, conseguem co-optar a hinterlândia local como propriedade privada ou “nacional” e, implacavelmente, a desenvolvem de acordo com um modelo industrial”.

Não está falando do Brasil, o texto tem 20 anos, & não creio q seja necessário sublinhar sua importância para o assunto em questão aqui, & como a coisa se repete.

Seria interessante, também sobre isso, que se lessem todos os ensaios de Snyder no livro re-habitar―ensaios e poemas (org. Luci Collin & Sergio Cohn; tradução & apresentação, Luci Collin), Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2005.

Por exemplo, o q eu disse lá em cima sobre essa expressão q virou moda, “desenvolvimento sustentável”, Snyder, no ensaio “Escrita não-natural” (1992, mesma edizione brasileira):

“Há um discurso verdadeiramente perigoso numa expressão ouvida em alguns círculos empresariais e do governo: ‘desenvolvimento sustentável’. O desenvolvimento não é compatível com a sustentabilidade e a biodiversidade. Temos que parar de falar em desenvolvimento e nos concentrar em como atingir uma condição estável de sustentabilidade real. Muito do que passa por desenvolvimento econômico é simplesmente a extensão ainda maior das funções desestabilizantes, entrópicas e desordenadas da civilização industrial”.

Ricardo Domeneck disponibilizou em seu blog “Belo Monte, anúncio de uma guerra”, o filme completo. É oportuno, não apenas por causa da hidrelétrica em pleno curso, mas pelo flagrante desrespeito a questões não-resolvidas que o governo simplesmente pôs pra baixo das máquinas que estão desfazendo a região.

Assinei, quando ainda estava em Londres, o abaixo-assinado para tentar oferecer resistência ao projeto. É preciso fazer o possível contra ele.

Recomendo a todos uma visita ao blog de Domeneck & atenção ao filme. É preciso rejeitar esse modo de fazer, ah-ham, “política ambiental”, e é preciso saber quem está mentindo para ganhar com a destruição.

Aqui:

http://ricardo-domeneck.blogspot.com.br/2012/06/belo-monte-anuncio-de-uma-guerra-filme.html

E há Eduardo Viveiros de Castro, grande antropólogo, autor da verdadeira obra-prima que é A Inconstância da Alma Selvagem (São Paulo, Cosac & Naify, 2002), livro que reúne ensaios revolucionários sobre questões de etnologia indígena pelo foco do que se chamou perspectivismo.

Sou perfeitamente leigo no assunto, mas me interessei profundamente, por exemplo, pelas questões de identidade entre os Araweté, que Viveiros de Castro estuda em "Imanência do inimigo".

Viveiros de Castro se pronunciou sobre o assunto de Belo Monte, porque trabalhou na região de Altamira & obviamente conhece melhor do que a maioria de nós a situação. Domeneck registra o vídeo em seu blog, e é importante assisti-lo também.

http://ricardo-domeneck.blogspot.com.br/2012/06/noticias-de-belo-monte-eduardo-viveiros.html

domingo, 17 de junho de 2012

PoesieFestival Berlin, por dentro


para Isabel von Holt
Ricardo Domeneck (de costas) e eu, em  foto de Timo Berger

O PoesieFestival Berlin eu vi mais por dentro, como autor convidado, do que por fora, como audiência. Digo isso porque vi muito pouco além do que se fez no Versschmuggel, a oficina do “Contrabando de Versos”. Vi, por exemplo, a Nacht der Poesie, na qual para mim se destacou, entre algumas outras leituras, a de Monika Rinck.

Trabalhei por três dias com o excelente poeta Ulf Stolterfoht, de Stuttgart, autor de uma poesia complexa, materialmente desafiadora e estimulante, e com o afiadíssimo tradutor Tiago Morais, quase tão alemão quanto português.

Ficamos os três encerrados em uma sala da KulturBräuerei (prédio q era uma antiga cervejaria, natürlich) do Literaturwerkstatt, destilando as traduções de um e outro que iríamos apresentar ao fim dos trabalhos. Mecanismo fascinante, que permitiu uma experiência única de leitura profunda, que uma tradução desse tipo acaba motivando. Nosso esforço era conseguir reproduzir forma & sentido do modo mais próximo possível, em efeito, do original.


E, depois, fomos apresentar as leituras.
Tiago Morais, Ulf Stolterfoht e eu (foto de Gerald Zörner, "gezett":http://www.gezett.de/)

E foi também quando pude ver o trabalho que os outros brasileiros desenvolviam com seus respectivos pares alemães: Ricardo Aleixo/Barbara Köhler, Érica Zíngano/Ann Cotten, Marcos Siscar/Jan Wagner, Jussara Salazar/Christian Lehnert, Horácio Costa/Gerhard Falkner.

Não apenas a curadoria de Ricardo Domeneck para os poetas brasileiros foi certeira (trazendo artistas representativos de diferentes gerações, de poéticas diversas), mas também o parear escolhido por rara sensibilidade com os poetas alemães rendeu no mínimo resultados muito bons, senão mesmo ótimos, e um entendimento frutífero. No meu caso, tanto as importantes semelhanças quanto as não menos importantes diferenças entre meu trabalho & o de Stolterfoht aguçaram meu interesse e exigiram da minha arte algo que ainda não havia tentado.

Por exemplo, a extrema compressão de múltiplos sentidos, de várias categorias do conhecimento, com engenhos de som, numa massa de versos espertos, maliciosos.

Sei q soa familiar para o(a) eventual leitor(a) da minha poesia, mas aquilo que Stolterfoht faz é de fato um novelo, algo muito espesso, poderoso. E montado como uma diversão. Há espaço para todo tipo de equívocos proveitosos lá, & ele os armou um a um: a linguagem de seus poemas despenteia o sentido normalmente atribuído às coisas.

Foi um prazeroso & laborioso aprendizado intensivo.

Stolterfoht gentilmente me presenteou com um exemplar de lingos I-IX, traduzido por Rosmarie Waldrop, um belo trabalho de tradução poética q, se por um lado me deu idéias de como lidar com o fibroso material que tinha em mãos, elevou também o nível da exigência.


Eu, com Ulf Stolterfoht lendo (foto de Gerald Zörner, "gezett": http://www.gezett.de/) 

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As leituras

Barbara Köhler e Ricardo Aleixo (foto de Gerald Zörner, "gezett":http://www.gezett.de/)


Nunca havia visto Ricardo Aleixo in loco, se apresentando, embora conhecesse e admirasse sua obra faz alguns anos, já. É um dos melhores poetas & performers brasileiros, um homem que conhece minuciosamente sua arte. Pude conversar com ele em diversas ocasiões em Berlim, e é de uma inteligência veloz. As raízes de seu trabalho notável estão por toda parte, do cancioneiro popular a Hélio Oiticica, do trovadorismo medieval à poesia concreta, da música eletrônica a Kurt Schwitters, e um etc. q cobre muito mal a variedade vivíssima de sua experiência. 

Costuma publicar os próprios livros, & de fato tem a mente mais independente q já encontrei em um poeta contemporâneo. Chega a ser feroz a sua invejável independência, mas você a ouvirá de Aleixo naquela tranqüilidade de sua voz licorosa, atenta e articulada.

A fatura de seus poemas na página é tão eficaz quanto o canto em que depois (ou ao mesmo tempo, ou antes) transforma as palavras, ou nos engenhosos meandros da performance que dota suas invenções de uma forma física, na voz e/ou no corpo.

Barbara Khöler o acompanhou com rigorosa perfeição (com destaque para o tour de force performático que é “Cabeça de serpente”) e foi, por sua vez, acompanhada por ele no mesmo nível. Assim como Érica Zíngano e Ann Cotten, que produziram uma apresentação brilhante pela diferença de performance: Cotten tem uma energia nervosa, intensa, enquanto Zíngano tem uma postura direta, que flui imperturbável, com uma atitude irônica, & ironicamente séria.

Érica Zíngano e Ann Cotten (foto de Gerald Zörner, "gezett":www.gezett.de)
 


Pode ser q esteja enganado, mas aparentemente o trabalho de ambas permitiu, em comparação com os outros, uma liberdade maior de criação, q parece ter surgido sugestivamente de dentro do texto e explorada para efeito por ambas, cada qual em sua língua. Certa cantabilidade de citação presente em alguns poemas de Zíngano, por exemplo, se tornava coisa interjetiva na tradução de Cotten, o q era absolutamente curioso de seguir poema a poema, duplicando o interesse então inovativo da leitura.

Da mesma forma, aspectos significativos da performance eram também traduzidos, no sentido de q signos não-verbais gerados juntamente com a leitura eram realizados de modos diferentes por cada uma. Por exemplo: em um dos poemas, Zíngano utilizava como um marcador de frase o estalar de dedos, enquanto Cotten resolveu aplicar um toque quase imperceptível fisicamente (mas perfeitamente audível) no apoio para papéis.


Horácio Costa e Gerhard Falkner (foto de Gerald Zörner, "gezett": www.gezett.de)


Algo parecido se deu quando Horácio Costa (poeta de que já falei neste Demônio) leu a última de suas traduções do ciclo de poemas sobre o famoso friso do Pergamon (friso grego ímpar que é uma das principais atrações museológicas de Berlim), de Gerhard Falkner: creio q Costa produziu conscientemente um híbrido mais pronunciado da sua voz com a de Falkner, o q me pareceu claro em contraste com as duas traduções q apresentara antes.

O efeito foi particularmente interessante pelo fato de q a leitura de Costa é bastante mais enfática do q o estilo contido de Falkner, q lê pelo fluxo frasal, e não pesando cada palavra, como Costa. Houve, então, uma faísca desse humor intelectual q risca voz em voz & extrai disso um brilho peculiar.

Marcos Siscar, assim como Horácio Costa, é um dos meus poetas favoritos de uma geração anterior à minha. As questões do verso, para Siscar, são muito importantes, assim como o q o verso significa hoje, na variedade de atitudes quanto ao modo de corte sintático, ou contra-sintático, ou q se meça pelo mecanismo de leitura q leva em consideração o espaço branco da página, ou q siga o ritmo, ou o contrarie, etc. Leitor cuidadoso da fina inteligência de Mallarmé no Crise de Vers (1891), texto complexo e muitas vezes premonitório, Siscar apresenta sua poesia em público de modo reservado, recolhido.


Jan Wagner e Marcos Siscar (foto de Gerald Zörner, "gezett": www.gezett.de)


Nesse sentido, é interessante notar como o silêncio, em torno, cresce, & todos os ouvidos se aguçam para o texto, q ele lê lentamente. Mais interessante é q eu ouvia claramente um dos textos como se recortado em versos, mas conversando com Siscar depois, ficou esclarecido q a disposição adotada na página é a do poema em prosa. Siscar me pareceu particularmente interessado nesse efeito q sublinha, também de modo muito interessante para a leitura, o ruído calculado entre forma na página & o sentido da leitura.

Mais do q efeitos de som, ou de performance, os poemas de Siscar, como os de seu parceiro Jan Wagner, são construídos a partir de imagens q saltam das coisas táteis para uma metafísica jamais despregada delas. Wagner tem uma imaginação tão elástica quanto pontual no registro de suas percepções.


Jussara Salazar e Christian Lehnert (foto de Gerald Zörner, "gezett": ww.gezett.de)


Já a poesia de Christian Lehnert é daquele tipo de metafísica calcada no sublime. Nesse sentido, seu parejamento com Jussara Salazar foi produtivo, porque deu um exemplo de contraste ao invés de convergência: enquanto a poesia de Lehnert é daquela metafísica sem coisas, voltada para uma abstração que convida ao silêncio e ao pensamento, ambos de raiz religiosa, Salazar, de raiz semelhante, parte das coisas e chega ― por vezes literalmente ― ao canto.

Aleixo ainda faria uma performance com Ricardo Domeneck, mas os aspectos fundamentais dela já assinalei acima.

Interessante aqui é notar que Domeneck produziu um vídeo-poema engenhosíssimo tirado das Soledades, de Góngora, por ocasião da comemoração dos 450 anos do cordovês (2011) em Córdoba.


Ricardo Domeneck (foto de Gerald Zörner, "gezett": www.gezett.de)


Ele o reapresentou em Berlim, e o mecanismo é de particular interesse: retirando todo seu texto de palavras constantes das Soledades, mas reorganizando-as para seus próprios interesses, conseguiu um texto poderoso que desenha claramente, em sua peculiar combinatória, as “distopias contemporâneas”.

Domeneck ainda mostraria outros trabalhos na mesma noite, mas o impacto da poderosa apresentação das “Entrañas de las Soledades” ainda reverbera na minha mente.

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Questões de tecnologia, poesia & a nossa estranha vida


Timo Berger, eu, Érica Zíngano e Ricardo Aleixo (foto de Gerald Zörner, "gezett": www.gezett.de) 

No breve debate que reuniu a mim, Ricardo Aleixo e Érica Zíngano, mediados pelo poeta e tradutor alemão Timo Berger (astutamente chamado Ótimo Berger pelo meu caro Aleixo), a reportagem presente, creio que da Deutsche Welle, afirmou después que eu era totalmente arredio a tecnologia.

Talvez um neoludista, um exterminador do exterminador do futuro.

Mas a culpa, obviamente, é minha mesma. “Eu e minha grande boca”, como diz o dito.

O fato é que Berger queria saber da relação dos poetas com a vídeo-poesia, und so weiter, & eu não resisto ao aspecto anedótico do q tenho a dizer, o q acaba não resultando muito claro.

O q por outro lado é claramente interessante.

Zíngano & Aleixo, como eu mesmo disse lá, são dois dos melhores nessa arte, no Brasil; não tenho nenhum, mas nem o mais velado parti-pris contra a coisa, sobretudo porque admiro os dois artistas citados, & um bom bando de outros, incluindo Domeneck, q nos ouvia da audiência.

Minha atitude é contra outra coisa, na verdade, e a explicação comporta duas partes.

1)  A “tecnologia” (palavra que passou a designar quase que exclusivamente produtos eletro-eletrônicos) tomou a vida das pessoas de um modo, para mim, claramente excessivo, e de um excesso que não me parece levar ao palácio da sabedoria.

A leitura em papel também traz, materialmente, os aspectos de uma experiência vicária, mas o exagero da leitura já vinha ironizado desde sempre, & de modo memorável em Das Narrenschiff (1494), ou a Nau dos Loucos, poema satírico de Sebastian Brandt, em que o primeiro dos tolos da nau é o dos livros, que está feliz em casa, cercado deles.


O tolo dos livros, na gravura ao poema de Brandt,
com as orelhas de burro cobertas pelo gorro.


É nesse sentido que as pessoas andam nas ruas falando em aparelhos celulares, ou com plugs na orelha, ouvindo coisa pré-gravada, ou jogando jogos, vão aos escritórios para trabalhar no computador, vão para casa para responder e-mail ou entrar nas redes sociais q as solicitam o tempo todo com ninharias, ou ficam diante da tv, ou jogando jogos.

Me parece óbvia a ênfase que a eletrônica tem na vida (por razões de mercado, sobretudo) transformando, em grande parte dos casos, a existência em algo vicário, vivida através de telas ou vozes que não estão no momento naquele lugar. Há um novo lugar na nau dos loucos, acho.

Isso, diria, tem apagado na arte mais recente o traço objetivo da observação direta & focalizada das coisas, capaz de diferenciar matizes de cores, ou texturas, ou associar coisas por esses & outros aspectos específicos que compõem a vida.

Ou, ao contrário, resulta em alguns momentos num hiperrealismo, q é a representação obsessivamente detalhada, incapaz de escolher um foco, perdida na superfície sem contraste das coisas para repetir q o sentido de tudo está confinado ao óbvio uso de um microscópio, ou à invasão não-afetiva, mas vulgarmente exploratória (como um abutre sobre uma carcaça) do espaço privado.

São opostos espelhados, esses. Igualmente preocupantes como esvaziamento da experiência.

2) Minha arte tem sido sobretudo a escrita também para ver até q ponto a sociedade decidiu se livrar dos meios mais, por assim dizer, “tradicionais”, de veiculação de informação estética. E é notável como de fato estamos predispostos a ser fisgados por algo chamativo, visual & auditivo, mas bem menos dispostos à travessia arenosa de um texto, sobretudo se de algum nível de complexidade q o retire da esfera comum das trocas linguísticas do dia-a-dia.

O que, deixo claro, não me impede de me meter a fazer qqer outra coisa, caso me ocorra. E eu sequer poderia bancar o anti-tecnologia (q, aliás, não sou), quando escrevo neste momento no meu notebook, prestes a postar no meu blog. Obviamente, a questão não é essa. A questão é a de uma ética dos limites, a de uma consideração filosófica das nossas opções, & de uma tentação sempre presente em mim de oferecer resistência à massificação de procedimentos q descascam ainda mais uma camada da nossa já duvidosa humanidade.

A minha impressão tem sido: estamos nos entregando a letargias mentais, estamos nos entregando sempre ao menor esforço, à impressão do imediato, sem a capacidade de conceber as coisas de longa duração & efeito, como se a dessensibilização da estética fosse também, e provavelmente sobretudo, uma dessensibilização da vida num imediatismo infantil (& na sua irmã, a repetição do mesmo), de aqui & agora suspendidos num tempo gerúndio, presente eterno, repetitivo.

E não é só o mundo eletrônico q opera isso. O surgimento do jornal, há mais ou menos quatro séculos, teria de ter posto uma questão a nossos antepassados, isto é: o quanto a compressão de informações, para nem dizer o critério de escolha delas, não distorce a nossa imagem mental do mundo com uma imensa desproporção assinalada no pressuposto de fato?

Desproporção verdadeiramente maligna, às vezes. Dirigida, muitas vezes, para o controle. Um exemplo: a coleção da violência mundial, q é minuciosamente levada diante dos nossos olhos pelos jornais diariamente (não dos meus, q parei de ler ou assistir a jornais faz 5 anos). Seria proporcional, considerando q isso cria um efeito psicológico de concentração da violência, puramente falso, incitando ao medo e, do medo, a mais violência?

E o quanto isso é proporcional, considerando q, objetivamente, a vida é composta de uma mistura mais equilibrada & caótica de coisas? E o quanto o medo não serve ao controle, uma vez q, quem teme, obedece? e o quanto a violência não serve ao dinheiro, se sabemos q qqer acidente de rua junta dezenas de pessoas em volta?

A tecnologia, como a chamam, se tornou o mercúrio por onde essas coisas deslizam sem critérios q não sejam o buyer, beware. São as telecomunicações. É a ironia de Andy Warhol, transformada em alegoria monstruosa.

Penso, de um modo resumido: o problema não é alguma inovação tecnológica ― especialmente na tecnologia de comunicação, neste nosso caso ― mas o fato de que há um claro incentivo social para o uso ininterrupto desses aparelhos, e o uso ininterrupto desses aparelhos está nos divorciando da vida, pela nossa falta de atenção à ética do uso.


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Um festival vivo de poesia & uma cidade viva


Berliner Dom, com o rio Spree ao lado (foto de Dirceu Villa)

A organização do festival berlinense é simplesmente exemplar. No topo dela estão Thomas Wohlfahrt e Aurélie Maurin, respectivamente o diretor do PoesieFestival e a responsável pelo projeto Versschmuggel (assistida por Isabel von Holt).

Cheguei & muitos alemães falavam um ótimo português, gentilíssimos, com todas as perguntas q pudesse ter imaginado já previamente calculadas em respostas úteis, fazendo com q me envergonhasse do meu quase inexistente alemão (não exatamente, me valeu uma boa piada quebra-gelo em uma das noites de leitura), q entra agora em processo de reconstrução.

Devo um agradecimento maior do q essas palavras seriam capazes de dizer a Isabel von Holt, Jacqueline Nsiah e Julia Ziesche, pessoas adoráveis, cultas, witty & verdadeiramente gentis, & q nos ciceronearam para todo lado, pacientes & precisas na solução de qqer problema q surgisse, interessadas nos trabalhos (Jacqueline chegou mesmo a participar, a pedido de Aleixo, de uma performance). E zelosas, de modo muito suave, dos horários.

Muitos de nós íamos à Bierhaus mais próxima tomar a Weizenbier após um dia duro no trabalho, ou jantar juntos, & certamente tagarelamos sobre rigorosamente tudo; o q, é claro, ninguém se atreveria a transcrever.

E a cidade de Berlim é bela de um modo muito particular: as cicatrizes da guerra vêm cedendo a uma população multiétnica & a um ambiente propício às idéias.

Na primavera, ainda cinzenta e chuvosa por vezes, ressalta-se o verde perfumado nas aléias, o grande número de pequenos, charmosos cafés, & dos variadíssimos restaurantes em toda parte, com uma ilha de museus no centro que pediria uma viagem inteira para se explorar decentemente.

É um lugar onde se percebe a vibração de inteligência & vontade. É uma atmosfera eletrificada.

E isso, suponho, predispôs os ânimos para o resultado realmente apreciável de algo q não foi apenas o rotineiro apresentar de poetas & textos, mas o gerar, de uma colaboração inusitada & intensiva, momentos notáveis de talento, invenção & ousadia artística.

O trabalho virá, no ano q vem, em uma edição bilíngüe alemão/português (& vice-versa) da editora 7Letras, incluindo um CD de leituras, gravado no estúdio da KulturBräuerei.

Então, por tudo isso, tenho mil motivos para já ter muitas saudades da cidade e de sua gente.

terça-feira, 29 de maio de 2012



Quando escrevi que o blog era feito no esquema otium cum dignitate, não estava brincando. Ultimamente, estando sem ócio, e com quase nenhuma dignidade, faço o blog aguardar seu autor voltar a ter ao menos alguns momentos de dolce far niente.

Não obstante, nota breve: o Literaturwerkstatt convidou a mim e a outros cinco poetas brasileiros a participar na edição deste ano do PoesieFestival Berlin. A curadoria é de Ricardo Domeneck, que já se apresentou no festival anteriormente.

Desse modo, estaremos em Berlim: eu, Horácio Costa, Érica Zíngano, Marcos Siscar, Jussara Salazar e Ricardo Aleixo.  Observo que, não sem motivos, a poesia brasileira contemporânea tem  despertado interesse no exterior, embora o Brasil ainda esteja por descobri-la. Não creio que demore muito, mas eu sou um velho otimista.

Faremos parte do Versschmuggel, ou Contrabando de Versos, no qual vamos trabalhar em pares com poetas alemães contemporâneos para a tradução deles para o português, e de nós para o alemão. Apresentaremos poemas, e falaremos em mesas discutindo a poesia atual no Brasil.

Notícias em breve, natürlich.

O evento acontece na Akademie der Künste, de 2 a 6 de junho.

segunda-feira, 12 de março de 2012

JEAN GIRAUD, ou MOEBIUS (1938-2012)

Moebius, par lui-même

Escrevi em 2005 um pequenino necrológio para o grande Will Eisner, que criou o Spirit, as notáveis narrativas sobre Nova York, a graphic novel, e, entre outras coisas, descreveu num livro de mestre a chamada arte seqüencial.

Devo igualmente a Moebius muitas horas de pura felicidade lendo suas obras-primas de HQ.

Não era apenas um dos maiores desenhistas & roteiristas que se possa conceber: desenvolveu um tipo específico de imaginação que se apropria do que estiver por perto e transforma isso em algo útil para se contar uma história que não tem começo, nem meio, nem fim (& duvido que tenha exatamente uma explicação).

Perdi a conta de quantas vezes entrei na Garage Hermétique, que ia se modificando conforme desenhava e ia incluindo referências. Seus personagens começavam de um modo (& em um estilo de desenho) e passavam a assumir outros, num ritmo desconcertante.

Les Yeux du Chat, com Jodorowsky, ou Silver Surfer: Parable, com Stan Lee,  um longo etc. & um verdadeiro monte de narrativas publicadas na Métal Hurlant provam substancialmente a enorme importâcia do quadrinista francês. 

Satirizou o "francês em férias". Ouvi dizer que conseguiu insuflar alguma vida até mesmo no Alquimista de Paulo Coelho. Era um artista verdadeiramente fora do comum.

Então esta é apenas a modesta lembrança, em sua homenagem, deste distante mas atento humanóide associado.

E que as HQs sejam cada vez mais reconhecidas no mundo da arte: Bill Watterson, Alan Moore, Guido Crepax (que também morreu recentemente), Robert Crumb, Laerte, Milo Manara, Miguelanxo Prado, e muitos outros desde o Yellow Kid (e sobretudo desde o Little Nemo, de Winsor McCay), neste pouco mais de 1 século de quadrinhos, estariam na lista essencial de qqer pessoa com algum interesse efetivo em arte.


O Major Fatal

sábado, 3 de março de 2012

LEGALIZAR HOMOFOBIA?



Faz algum tempo, chamei a atenção para o que tive de nomear "conservadorismo patológico" na sociedade brasileira. E teria de chamar a atenção para esse tipo de coisa todo dia, naturalmente. E é, todos devem saber, coisa não apenas brasileira.

Há quem defenda toda legalidade jurídica, mas um pouco de sensatez filosófica exige pôr uma questão séria entre legalidade e legitimidade. Um exemplo emergencial:

Ricardo Domeneck chama a atenção, em seu blog, para mais um desses problemas de legitimidade em coisa legal. Desta vez, e neste século XXI que se acha muito bacana e moderno, um projeto de lei em S. Petersburgo (Rússia) "que tornaria ilegal, um crime, a discussão, menção, publicação ou assembleia de qualquer coisa identificada como gay, transgênero ou um desvio da norma", entenda-se, heterossexual.

Abaixo, o link de Domeneck com o acesso para a petição contra essa coisa que, a passar, estabelece um dos mais perigosos precedentes:

sábado, 4 de fevereiro de 2012

EZRA POUND no Centro Cultural São Paulo

Ezra Pound (1939), por Wyndham Lewis: dizem que até Homero cochilava, às vezes.

Nesta terça-feira, dia 7 de fevereiro, falarei sobre a vida e a obra de Ezra Pound (1885-1972) e a minha recém-lançada tradução de Lustra (1916), do poeta estadunidense, dentro do projeto "Poetas de cabeceira", do Centro Cultural São Paulo, centro de cultura já histórico na cidade, e que comemora seus 30 anos de existência em 2012.

Serão lidos poemas de Personae e de The Cantos, veremos como Pound ajudou grandes artistas da vanguarda européia (e como, a seu turno, aprendeu com esses mesmos artistas), e como constituiu uma crítica de literatura e uma prática de tradução focalizadas respectivamente na idéia de paideuma, e na idéia de crítica via tradução.

Entre outras coisas.

Ezra Pound: vanguarda e retaguarda simultâneas

Dia: 7/02/2012
Horário: 19:30h -21h
Entrada franca
Onde: Centro Cultural São Paulo (CCSP)
Rua Vergueiro, 1000, Paraíso
Sala de Debates

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O VIOLINO NA METRÓPOLE


Simona Cavuoto, por Júlio Kohl

A violinista italiana Simona Cavuoto lança, no próximo dia 3, um CD em que interpreta obras de Willy Corrêa de Oliveira e de novíssimos compositores da música erudita brasileira. Algumas das peças foram compostas especialmente para a gravação e a violinista. O CD se chama O Violino na Metrópole, projeto que foi desenvolvido com o apoio do ProAC.

Já tive aqui no Demônio a oportunidade de falar de ao menos um desses notáveis compositores novos, Marcus Siqueira. Para aqueles que querem conhecer o que se faz na música erudita brasileira (ou para os que já conhecem e apreciam), esse é o evento. O lançamento do CD (ÁguaForte Produções) é ainda mais importante porque nele Cavuoto apresentará recital ao violino.  

Obras de:

Willy Corrêa de Oliveira
Maurício De Bonis
Rodrigo Lima
Marcus Alessi Bittencourt
Marcus Siqueira


Entrada franca (capacidade: 100 pessoas).  Abaixo, os necessários detalhes: 

O Violino na Metrópole, de Simona Cavuoto

03 de fevereiro de 2012 (sexta-feira)
21 horas
Espaço Cachuera! - Rua Monte Alegre, 1.094 - Perdizes - São Paulo
Info.: 11 3872 8113 11 3872 8113 . 3875 5563 .
www.cachuera.org.br

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

A POESIA NA VOZ DOS POETAS


Como convém ao menos de vez em quando, a poesia ouvida na voz dos poetas, incluindo este que vos escreve. 

Lerei em excelente companhia, com Fabiana Faleiros, Ricardo Domeneck, Fabiano Calixto e Veronica Stigger, segundo indica o formoso cartaz acima.

Sejam todos bem-vindos.


+ ps.

E amanhã, terça-feira, 17 de janeiro, será lançado o livro do poeta belga Antoine Wauters, De pé sobre a língua/Debout sur la langue (Lumme), em tradução de Juliana Bratfisch, no Club Noir.

Eu, a tradutora & outros poetas leremos no lançamento poemas de algumas partes do mundo, como se pode ver abaixo. E então esse é ainda mais um convite:

Juliana Bratfisch lê Antoine Wauters (Bélgica).

Ricardo Domeneck lê Ezequiel Zaidenwerg (Argentina), Robin Myers (Estados Unidos) e Monika Rinck (Alemanha).

Dirceu Villa lê Fernando Pérez (Chile) e Mairéad Byrne (Irlanda).

Fabiano Calixto lê Heriberto Yépez (México).

Mario Sagayama lê Christophe Tarkos (França).


17 de janeiro de 2012, terça-feira, a partir das 22:00.

Club Noir
Rua Augusta, 331
Consolação
São Paulo SP