Peter Falk, na pele do sagaz detetive
Algumas confusões, remediadas
Há alguns problemas de sintonia quando se fala atualmente de poesia no Brasil & em muitas outras partes. Abordo este inicialmente: abstração ou, por oposição, poesia feita de coisas.
Nem concretista, nem solene
Vamos retirar, logo de início, algumas encrencas do caminho: poesia feita de coisas não é concretismo, & abstração não tem a ver com ser solene (assim como concisão não significa escrever pouco nem miúdo).
Um poeta, que se ache muito material & sólido, pode estar se enganando, pelo seguinte: discurso não é poesia. Ainda que se discurse de modo apontativo, nomeando coisas, pode se fazer discurso puro & simples.
E por que essa abstração, que é discurso, é ruim como poesia? Porque pode ser exercida de modo muito mais convincente em outros gêneros de escrita. Porque um ensaio recebe isso de modo mais adequado, ou um tratado, uma tese, uns capítulos graciosamente filosóficos & especulativos, cheios de circunvoluções excruciantes sobre Sein und Zeit.
A poesia precisa da energia de dizer, da velocidade de pensamento & conexões, que o discurso, por melhor que tenha sido contado & rimado (or whatever), não tem.
Pode ser esperto, mesmo erudito, mas é má poesia, &, obviamente, não dura. A poesia precisa de uma infusão mística que Rimbaud, aquele desordeiro ordenadíssimo, chamou alchimie du verbe.
Rochester: "coroemos de louros este macaquinho"
Rochester, Boileau
Voltaire percebeu isso comparando dois horacianos: Rochester & Boileau. Rochester é imprevisto, veloz, sagaz, aproxima coisas distantes, surpreende o leitor, tem essa energia mental poética, que o irmana além do tempo com Maiakóvski, Ovídio, Rimbaud, ou master William, ou Sá de Miranda, Sousândrade, ou ainda outros numerosos bons exemplares que a leitora ou o leitor certamente terão o prazer de lembrar.
Boileau tem o andamento de suas parcas idéias filosóficas, tiradas de outros, é moroso, mal consegue nos dizer algo que sabe, & não imagina. Faz um esforço, põe tudo em metro, regra, mas discursa para o tédio mortal da nossa inteligência poética & o cataclisma ecológico das fontes da Castália, que secam nem bem ele abre o bico de corvo, vaidoso de sua voz.
Fato?
Isso é um fato? Sim, é, mas um fato em arte. Ninguém aponta cientificamente as armas do crime & a linha funesta que liga o criminoso a ele. Um fato poético exige o nosso ouvido, exige habilidades raras de saber diferenciar sutilmente entre uma inteligência de brilho poético (a poesia “com duende”, que Lorca disse) & um arremedo bem construído & empolado.
Não deixa de ser fato, mas os preguiçosos lhe dirão fay ce que voudras, sem o tom distintamente rabelaisiano que adorna essas palavras.
Justificar um versejador como poeta é simples.
Basta destacar sua habilidade formal nos usos conhecidos, & louvar parafrasticamente o que ele diz, em geral coisa supostamente complexa & filosófica (mas ínfima se posta junto de seus paralelos daqueles gêneros). E naturalmente exigir, para criticá-lo, a leitura dos cinco tomos de suas obras completas, sob olhos lacrimejantes não de comoção, mas de desespero.
A um poeta nada disso interessa. Interessa notar como sua percepção molda a coisa em palavra, o “como” sendo o “quê”, a velocidade de suas conexões mentais que exclamariam, como Arquimedes de Siracusa terá exclamado ao perceber/descobrir o empuxo na banheira, quando seu corpo deslocou a água pra fora: eureka.
Longos discursos abstratos, metrificados regularmente ou não, sempre foram feitos & sempre serão feitos, recheados de muita, com o perdão da palavra, filosofia, & de, ah-ham, “imagens”.
Nota bene
Dante Alighieri, que escreveu seu poema teológico em três divinas partes, escreveu-as sem discurso (que aqui quer dizer aquela conversa fiada, versificar um assunto). Onde um versejador despejaria matéria logorrágica, Dante figurava. E ler a Commedia exige algum empenho, o de conhecer uma porção de coisas: o sistema retórico que Dante utilizou, parte da história de Florença & da Europa, alguma teologia patrística, questões de verso.
Mas quando queria discursar, buenas, escrevia um tratado, em latim ou italiano, como quiseres.
O caso hoje é: não se sabe diferenciar uma coisa da outra. Nos EUA, Europa, em toda parte como aqui em casa, os mais radicais poetas ultracontemporâneos fazem discurso. Picotado & exíguo, para parecer que estão fazendo aquela outra coisa enfeitada de louros, a poesia; se esforçam para aquilo ser mais ou menos o encontro de uma tese de doutorado em lingüística (ou estudos culturais) & uma sessão de psicanálise.
Os carolas da forma também: compõem longos tralalás que dariam um mau ensaio filosófico ou estético, ou estético-filosófico, muito atentos às regras antigas de composição metrificada, & ficarão deslumbrados quando alguém disser que notou uma variação métrica (colocar o nome técnico) usada apenas no século de (colocar o nome do cavalheiro ou da dama) .
E há os preguiçosos, que se acham, não obstante, inspirados. Para eles, qualquer poesia que não comunique diretamente é uma farsa, um engodo acadêmico, porque em sua opinião os poetas devem ser uma espécie de demagogos.
Uma poesia que envolva algo desconhecido é uma ameaça, porque, se pegar, será a prova de que não passam de impostores os que escrevem meros diários (de suas vidas ordinárias ou de suas idéias vagas) recortados em algo que nos lembra, de longe, versos (é, especialmente, uma poesia de adjetivos).
E há também aqueles que querem dizer uma coisa mas, para parecerem misteriosos, põem uma bruma ordinária de imagens, gelo seco, na frente dos olhos do leitor & da leitora. Ridiculus mus, como dizia o velho Horácio.
Pas possible, n’est pas? E, no entanto.
Uma horda de maus poetas tenta espetar Dante
Velhacos & velhuscos
Os modernos sabiam que, pela necessária ruptura (que se tornou tradição da, como Paz diligentemente explicou) com os condicionamentos antigos de como escrever & como ler, apareceriam duas coisas:
a) os aproveitadores: pessoas que não têm a mais vaga noção do que estão fazendo, nem desejam ter, mas fazem assim mesmo;
b) os antiquados: que, percebendo o apagamento da antiga maneira, fariam tudo a seu alcance para tentar instituir outra vez o que historicamente se fora, & desqualificar o que quer que viesse de novo, pondo todos os praticantes de uma arte que já não reconheciam dentro da hipótese a), acima.
Que essas duas categorias impediriam de ver com clareza quem não é uma coisa nem outra: quem dá nova vida às formas anteriores, ou quem traz formas novas à vida. Esses, a despeito do dispersivo ruído em volta, são os poetas.
Sol Robeson diria (Mark Margolis em π, de Darren Aronofsky): "You're not a poet any longer, you're a numerologist!"
De traseiros & imortalidade
Uma “antologia de antologias” provou, por estatística, que reproduz-se no Brasil o que o antologista prévio fez, com ligeira distinção aqui ou ali.
Sempre imaginei os autores mortos perfilados, &, quando acontecesse de se pôr um novo no panteão, todos os velhos se moveriam de lado, olhando rasteiro & de lábios curvos para baixo, para fazer caber o novo na galeria.
É um incômodo.
Tanto quanto ter de substituir o imortal (sic.) na Academia. O escritor pleiteante obviamente quer entrar para o clube, mas tem de aguardar, como na grande festa do Oscar, que o ocupante da cadeira se levante para “ir ao banheiro”: daí ele povoa aquele angustiante vazio com o seu traseiro substituto.
Ego sum papa
Existem várias pessoas inteligentes que deploram a idéia de um cânone. Existem várias pessoas morosas que impõem umas idéias de cânone.
Harold Bloom, notório canonizador, usa as papilas de seu gosto pessoal romântico (& indisfarçavelmente de foco anglófono, provinciano) que se empapa de Wordsworth, Shelley & derivados. Poderíamos ouvi-lo dizer, como o papa disforme de um panfleto antipapista do século XVI: ego sum papa.
(Não porque o simpático Sr. Bloom seja disforme, tome tento: trata-se de uma alegoria, onde lê-se que aquele invoca um poder sem na verdade fazê-lo com propriedade, por lhe faltarem qualidades essenciais ao tal uso).
Então, sinto-me no dever de, por respeito às pessoas inteligentes, & por justiça com os morosos, explicar porque me dou ao trabalho, para aqueles ocioso, para esses indigno, de discutir e repropôr o cânone de poesia neste país tropical, abençoado por Deus & bonito por natureza.
Algo sempre será proposto, mesmo que gente como eu cruze os braços & torça o nariz — a menos que chegue-se à idiocracia de nas escolas se ensinar apenas a contar números, como em Fahrenheit 451 —, então realmente acho mais simples sugerir umas coisas.
O “típico”
A peculiar infelicidade, no Brasil, quando pensamos (supondo que se pense nisso, que alguém o faça) numa educação literária, poderia ser, de início, o fato dela simplesmente não existir.
Mas vou evitar toda espécie de fatalismo, & direi que é, em uma palavra, o culto do típico.
Indiferente, mecanicamente turístico
Funciona da seguinte maneira: retrospectivamente, olha-se para os escritores de ― digamos ― um século atrás, e pensa-se neles como algum tipo de grupo, dotado, em geral também retrospectivamente, de um nome.
Acha-se o que os caracterizaria como grupo, normalmente puxando as referências européias do mesmo período. Selecionam-se, a partir das características, as mais freqüentes & gerais. O escritor que, no período considerado, for o que mais características apresentou do período, & as mais gerais, esse é o escritor.
É muito útil fazer isso, porque, do contrário, nos cansaríamos de ler cada um em suas particularidades. Distinguir por qualidade também é muito cansativo, primeiro porque não temos critérios, segundo, porque seria claramente antidemocrático, além de penoso aos nossos hábitos de abanador. Além do mais, assim lêem-se dez, quinze ou vinte escritores absolutamente medíocres de uma tacada só.
Portanto, à volta dele — escritor do período — juntam aqueles que não puderam aplicar tudo, os que não se meteram a empurrar para dentro dos textos todo o monte de dispositivos reconhecidamente “românticos”, “realistas”, & assim por diante & antecedente.
Times completos, penduramos cada pacote de escritores numa linha temporal imaginária, com o rótulo pronto, e os observamos na sucessão teleológica do tempo, como quem observa a troca da guarda no Palácio de Buckingham: parece interessante no começo, mas acaba entediando.
É só um registro de “ter estado lá”: algo indiferente, mecanicamente turístico, o modo de ler literatura no Brasil.
Lembretes:
A poesia foi nomeada a partir do grego poiésis, que significa um “fazer”: devemos então reter em nossas mentes essa qualidade singular & primordial de uma habilidade quando começamos a pensar no assunto.
A palavra que Aristóteles usa para arte é tékhne, de onde tiramos o conspícuo “técnica” hoje em português — porque então não havia nenhum tipo de conversa fiada que se intrometesse entre uma coisa & outra — mas que certos hábitos silvestres muito em moda assemelham a ou identificam com “tecnicismo”.
Aliás, há esse problema delicado no Brasil, apenas esboçado supra. Vejam só.
Appendix Probi
Um dos modos mais sacados de se defender o indefensável é adotar um limite do campo semântico. Exemplos.
“Popular” não deveria significar ignorante ou limitado; ruim ou fácil. “Formal” não deveria significar “formalista” nem “mecânico”, ou “frieza matemática”.
Por exemplo: usa-se “popular” para implicar: “o povo gosta”. Com “o povo” adota-se uma coletividade imaginária, à qual normalmente se atribui uma estupidez inebriante. E um gosto: coisa, como sabemos, que não se discute. O pessoal velho de Roma já dizia, frasista: de gustibus disputandum non est.
Ou se diz que "a voz do povo é a voz de Deus", & graças a ela & Ele, louvemos as celebridades.
E aí temos a coisa pronta juridicamente. Dá um ar democrático. O que é ainda mais gozado: é possível atacar, com isso, os “impopulares”, já que ser “popular” (ignorante, limitado, ruim & fácil) é o melhor que se pode querer para a arte.
Appendix Probi II
Os parnasianos deram um ótimo exemplo de definição confusa, também: buscavam usar a chamada “língua castiça”, “sem jaça”, “a última flor do Lácio, inculta e bela”.
Pois bem: talvez não tenham percebido (presume-se sempre a inocência) que usavam “castiça” em lugar de “castrada”.
Invenção
Giraut de Riquer, trovador provençal, escreveu o seguinte na persona de Afonso X, o Sábio:
segon proprietat
de lati, qui l'enten...
son inventores
dig tug li trobador.
Uma das acepções da palavra provençal trobar é “encontrar”, porque a invenção não sai do nada (como a inventio antiga demonstra).
Isidoro de Sevilha escreveu: “A poesia é uma arte porque tem regras”; séculos depois, Maiakóvski complementaria, sem sequer ter lido Sevilha: “O poeta é aquele que cria suas próprias regras”.
Complementaria é a palavra-chave, acima. Temos de parar de pôr biombos separando coisas que deveriam estar juntas, porque o ar está ficando irrespirável.
Apropriações
Abel Gance usou a técnica alegórica da ode XIV de Horácio, “Ad Republicam” em seu filme Napoleon (1927), quando figura por imagens compostas da Assembléia & do mar tempestuoso, numa montagem/colagem, a abrasão política.
Velhas técnicas podem ser reinventadas com proveito (Ted Berrigan escreveu um excelente livro de sonetos, mas redesfazendo, ou desrefazendo o soneto), & as artes se correspondem mais do que apenas superficialmente.
A Marquesa de Alorna sorri
O abismo olha de volta
É mais do que bizarro que Odorico Mendes não esteja em antologias de verso de língua portuguesa com suas traduções; que o Sapateiro Silva seja ignorado no meio de um bando de fingidos pastorinhos neoclássicos; que se joguem todos os poemas da Marquesa de Alorna naquele mesmo saco, ignorando a sua notável "musa que teme o dia"; que se conheça, quando muito, um poema de Maranhão Sobrinho; que não se saiba de Dom Tomás de Noronha; que não se saiba dos epigramas mineiros do fim do século XVIII, ou de dois poemas bons de Sousa Caldas; que se desconheçam pelo menos dois poemas de Marcelo Gama; que se trace uma interrogação quando se diz Martim Moya; ou que não se saiba do Cocktails de Luís Aranha; do soneto neoplatônico de D. Manuel I; dos poemas satíricos de Garcia de Resende; que nunca se tenha ouvido falar de Gomes Leal; que não se leia Camões a não ser com o amparo de uma lista de notas para uso em vestibular; que se ignore as grandes descobertas dos concretos: Sousândrade e Kilkerry; etc. etc. & etc.