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Eu me lembro de você. Claro que me lembro. Não foram poucas as vezes em que estivemos aqui, neste lugar. Algumas até na mesma mesa, entre outras tantas pessoas. Eram muitas pessoas. Eram outros os tempos, os assuntos. Debates, opiniões
Você se lembra? Talvez não. Eu me lembro de você, se incomodando com frio, com fumaça. Se enjoando após o segundo copo, não raro pedindo um refrigerante apenas para continuar mais um pouco à mesa. Eu achava engraçado alguém perguntar ao garçom “tem Sprite?”, após ter tomado dois chopps, muito engraçado. Acho que por isso nunca me esqueci de você, que, de toda maneira, era o primeiro a se levantar, sempre deixando sua “parte” da conta e se despedindo. O primeiro a ter sono era você.
Eu me lembro de você, olhos arregalados, diante dos meus excessos à mesa. Comida de botequim, a graça deve estar na falta de rigor com a higiene, não é? Você fazia uma expressão engraçada, entre nojo e desaprovação. Meu gosto pela improvável mistura. Pelo sabor mais nocivo. Pelo prato mais suspeito. Álcool e tabaco. Alho e pimenta. Peixe cru, café forte.
Você não beberia isso, não comeria aquilo.
Não mesmo.
Eu me lembro da sua cara espantada diante de revelações de um língua-de-trapo – e todas as línguas são de trapo depois de uma certa hora. A garçonete, no banco de trás do Fusca. Alguém cujo nome nem cheguei a saber, em pé, no jardim, antes que o marido chegasse. As histórias sobre os cabarés paupérrimos, lugares que você jamais freqüentaria, jamais freqüentou. Sobre as viagens sem destino, de tantos apuros, de dormir em qualquer canto. Seus olhos pareciam querer sair das órbitas. Você, seus medos. Das doenças, dos riscos todos. Você boquiaberto, ouvindo. Reconheço hoje algum sadismo em te contar.
Mas contava.
Das minhas histórias de amor, te contava. Você sabe, se lembra? Minhas paixões, sempre de arrasar quarteirão. De felicidade estrepitosa, exibida. De dores de cotovelo homéricas, de corno epopéicas. Sempre o céu ou o inferno, nunca existiu para mim um lugar entre dois extremos. Você ouvia. Você, sempre tão centrado! Que após um pé na bunda ou um par de chifres, logo já era amigo da ex. Uma pessoa equilibrada, você!
Tão diferentes nós dois, não é?
Mas não havia traço de maldade no meu ser diferente de você, lhe asseguro. Não mesmo. Nunca imaginei te ofender, te afrontar.
Só hoje eu sei que você nunca me suportou.
Nunca imaginei o quanto você achava, intimamente achava, que eu devesse ser punido pela minha perniciosidade. Pela minha promiscuidade, pelos meus abusos. Pela minha falta de modos. Por zombar dos riscos, das regras. Por falar demais, por alardear minhas mazelas como fossem troféus de guerra. Por ser roto, sujo, obsceno – e não fazer questão alguma de ocultar ou me desculpar por isso. Por atentar seguidamente contra minha própria saúde. Por tudo isso – e isso eu não imaginava – você me queria castigado. Era meu merecimento, você achava.
No entanto, passaram-se quase 30 anos, meu camarada, quase 30! E eu ainda estou aqui. Ainda tenho cabelos, dentes. Ainda respiro – e bem, para seu desespero.
Mas, você sabe como é, a gente envelhece, a gente muda. Não há como evitar, não é? Eu, por exemplo, ainda gosto dos bares, mas já não quero mais mudar o mundo, já não é isso que eu passo as noites conspirando, com os cotovelos sobre o mármore da mesa. Minha única ambição, hoje, é não permitir que o mundo me mude. E – você há de convir – essa já é uma grande ambição, não é?
Eu já não encontro vários conhecidos quando chego aqui. Não ando mais
Mas você observa bem, eu sei. Você sabe como é, que eu gosto de comer, de beber e de conversar, sempre gostei de conversar. É a essência da interação, não é? Conversar sem tempo, sem compromisso, sem ansiedade, sem hora pra levantar da mesa. Um lugar aconchegante, um garçom atencioso. Você sabe, mesinha de calçada não é pra gente, a gente não é menino, a gente tem um troco, pode pagar, não é? Mas eu não posso deixar minha namorada na mesa e ir lá fora rapidinho e voltar, como você, sarcástico, me fala pra fazer. Não tem como, tudo está ligado, é tudo uma coisa só. E você só faz de conta que não entende.
Por isso você vibrou quando soube da novidade, não é? Porque você de imediato percebeu que isso, que esse pequeno detalhe, teria o poder de arrasar com a minha brincadeira. Com uma das poucas coisas que ainda são capazes de me proporcionar prazer genuíno. Com meu derradeiro elo de ligação com aquela chama primitiva, dos meus olhos, naquele tempo. Você percebeu que o golpe era preciso, bem no alvo, você ficou feliz, eu sei que ficou.
Agora você se sente poderoso, não é? Afinal, você tem uma lei com você, foi feita por pessoas iguais a você. Você agora me olha de cima e eu sou o clandestino neste lugar que sempre foi meu! Nas mesas onde eu tramei revoluções. Pelos corredores onde vivi meus amores. Até no palco, onde eu me sentia artista e você me assistia. Resolveram que eu sou inadequado aqui. E você, justo você, que sempre dormiu nas cadeiras, você com a sua rinite, seu fígado sensível, com seu estômago fraco, suas opiniões frouxas, olha só: agora é você que manda, é seu, é tudo seu! Este lugar e todos os outros! Tudo, tudo seu, sem exceções, sem possibilidade de escolha, de opção. É a democracia como você a concebe, não é?
Então ta: será assim, como você sempre quis.
Eu estou saindo, é ao lado de fora que você me relegou.
Você venceu.
Mas antes que eu saia, antes que eu me despeça definitivamente, eu desejo te fazer uma pergunta.
Seja sincero, ao menos agora.
Não é o meu cigarro que te incomoda, não é?
Não é e nunca foi!
Te incomoda o que se desprende do tabaco, sim – mas não pela ponta em brasa e sim pela outra ponta. Não é a fumaça o que te perturba, é o meu prazer! Este – pequeno, trivial, corriqueiro, bobo até – e todos os outros. O meu prazer deletério, mundano, sujo, fugaz, perigoso. São as coisas que você sempre quis fazer, mas tinha medo. É o ódio que você tem pelos trinta anos que se passaram e estamos, os dois, aqui! Exatamente do mesmo jeito, os dois: vivos! Você fica pensando no tanto de coisa que não fez com esses seus temores todos, me vê aqui e não se conforma: de que te adiantou, não é? O que você ganhou mais que eu? Dinheiro, talvez, mas isso não te consola. Você pensa nas garçonetes fuleiras, na última dose daquela bebida barata, no sanduíche de pernil de botequim: e mira na ponta do meu cigarro. Sua vingança, não é?
O que te incomoda, camarada, não é fumaça: é eu ser quem sou e você ser quem é. Mas isso não vai mudar, não há como mudar, assim como não há como mudar o que já passou e o que já foi vivido – ou, no seu caso, o que não foi.
Você me queria doente, não é? Você não confessa, polido que é, mas queria. No fundo, sempre achou e ainda acha que eu merecia. Pois eu devo dizer que, enfim, você conseguiu. Eu estou doente, sim. Mas não é de câncer, cirrose, enfisema, cólera, úlcera, AIDS, sífilis, pancreatite, não é. É de tristeza.
Eu vou sair, sim.
Vamos ver como se vira sem mim.
Vamos ver o que você – e pessoas como você – fazem desse lugar.
Djavan
"Sabe Você"
(Carlos Lyra - Vinícius de Moraes)