30 de jun. de 2012

Poderíamos sair às ruas. Faz sol — imenso.
Poderíamos entrar no rio.
(Fosse tempo ainda de águas claras
e mansas).
Poderíamos cantar canções — antigas
de um tempo longe
quando
nossos mortos estavam todos bem
(vivos).
Poderia o tempo não ter passado — passou.

que estrelas e risos castos
que veia profunda
lembra? da sinfonia
das ventarolas azuis?
a garça, o lírio, amoras
lembra? da beira do rio?
era maio
manhã bem cedo. havia
laranjas na mesa. não era
ainda tempo de maçãs

28 de jun. de 2012

marcas de solidão grafadas no corpo-caverna
cinquenta e quatro ciclos
riscados — à lasca de pedra
sobre paredes frias
(dia após dia)
junto a símbolos outros — vermelhos
indecifráveis
criatura rupestre, que se escondeu do sol
mas vive a contar estrelas
e luas — pingos de água vindos da superfície
numa canção antiga telúrica-hipnótica
até que um dia - tudo - seja pedra

23 de jun. de 2012

o negro dessa veste — áspera
o véu que esconde a face
desconhecida — morte e vida são
mulheres
travestidas de transparências
e opacidades
verdades nuas
que nos afrontam
ladys godivas em seus cavalos
de fogo — galopam
rumo ao desconhecido
sob brumas espessas — ventania

19 de jun. de 2012

um rasgo de silêncio no som tecido à estopa
da cidade
e o sol. não mais apenas uma pedra
atirada
contra paredes mofadas
que parecem
chorar
Granadas
de Espanhas são - gelosias
uma canção em braile - em áspero ruído
é tarde
Andaluzias - só
nessa hora os gatos são - quase todos - pardos
parcos pedaços de rua
farta fatia de lua
e o zinco
do telhado estala. antes. da mudez fractal

16 de jun. de 2012

o foco. o abajur antigo
o limbo
o espaço entre
luz
e sombra
o lírio
na capa de um precário
caderno
onde
palavras
ao acaso riscadas
prenúncio
do que talvez. poema

15 de jun. de 2012

o escriba se lança como num precipício
homem de fibra. papirus. papel
são tantas tintas que as mãos vivem sujas
e os olhos ardem terebintinas
penas e mata-borrões
escrevedor antigo. vincos na pele. face
grafada em letras. facas e gumes
horizontais
sorvo da tua boca-palavra. palato. fala
que me alimenta. embora arranhe
línguas-gargantas
no meu silêncio te aguardo carta de amor
cartografia do verso-veia. via
coração

Galeria Rui Cavaleiro Azevedo - (2)


mulher tropical 7
o dia é só um esboço ainda do que talvez não seja
telas em branco, tantas
outras são cores abstratas
puro concreto á vezes se impõe
viver é mesmo arte. que seja:- pintura ou palavra
um barco à vela. vento
ao acaso

12 de jun. de 2012

faz poemas no claustro
foi sempre assim. enclausurado
o tempo todo dentro
de si
cárcere interior:- invisível prisão
intransponível pois
que não se sabe
onde
a porta a chave a tranca – sequer
a extensão da cela. o crime
e a duração da pena

8 de jun. de 2012

Esta cidade não é minha. Não me pertence
a dureza angular das esquinas
nem a parábola das pedras que piso
e as luzes
enquadradas no concreto perfeito
não.
Nem o chorume que escorre
de olhos e gretas
negras sarjetas
nem.
Antigo e lento carregar de casas sobre
as costas
pesado fardo
animal.
Este arrastar-se sobre trilhas de caramujos
em busca
da cidade improvável:- faro ancestral.
O rumo — e a que se destinam — apenas
pressentem.

7 de jun. de 2012

há no fundo de todo verso uma dor latente
ou detonada
exposta
ou. travestida de tintas outras
muito bem ancorada
num ângulo
que se requer exato
protendida linguagem que se traciona
no limite do som — e do sentido
volumetrias
imensos vãos : livres : sem escoras
solos instáveis — risco iminente de ruptura
ou. solidez de pedra

4 de jun. de 2012

regresso então, numa ilusão distraída
buscando em mim destroços
de uma estrela morta
restos que busco — rostos
que desconheço
tentam reconstruir
como eu
a cada dia, vida — um
poema
nas horas de deserto
e cansaço — tristezas são
adagas
grande o mistério que aproxima almas
predadores de luz, olhos no céu
seguimos — rebentos
a rasgar folhas com gravetos
incendiados do brilho frio
metal — incandescente — das utopias

3 de jun. de 2012

incontacta, mando sinais de fumaça
só pra dizer que estou viva

nenhuma outra intenção

Eldorado, esquecida cidade
mapas perdidos, matas fechadas

meu grito na fumaça

1 de jun. de 2012

Galeria Bottelho - (1) Eugenio de Andrade


É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Eugenio de Andrade
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