segunda-feira, 25 de julho de 2022

CITANDO JACQUES DOS SANTOS

EU, E O PRESIDENTE JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS O título sugere proximidade, quiçá, alguma afinidade. Porém, nada similar existiu na minha distante e fugaz relação com o falecido ex-Presidente, Engenheiro José Eduardo dos Santos. Estive, se tanto, umas três vezes em presença do antigo Chefe de Estado angolano. Nessas ocasiões, em lugares distintos, cumprimentei-o com a cerimónia e o respeito que lhe eram devidos. Aconteceu no período em que exerci o cargo de deputado à Assembleia Nacional, quando era normal e me era permitido andar nas cercanias dos círculos do poder. Ao ser convidado para escrever algumas palavras sobre o ex-Presidente angolano, na hora do registo da sua morte e do preparo do seu funeral, fujo da narrativa comum, aquela que é normal fazer-se em momentos como este. Na verdade, não é fácil falar-se de alguém que foi simplesmente o Presidente do nosso país durante cerca de quatro décadas. O exercício obriga à repetição de chavões obrigatórios ligados à sua eminente figura de Estado e aos seus feitos. Em vez de enveredar por palavras convencionais que ficam bem proferir, preferi utilizar outras para recordar a sua figura em imagens diferentes. Retenho uma delas, em Salvador da Bahia de todos os Santos, nos jardins da residência do empresário brasileiro Emílio Odebrecht, onde foi servido um lanche ou cocktail ao presidente e sua comitiva. Um pequeno grupo de escritores angolanos no qual me incluía esteve presente nesse encontro, acontecido no quadro duma visita feita àquele Estado, com o fim de S.Exa. ser distinguido com o título de cidadão honorário da cidade. Era acompanhado pela primeira-dama e seus dois filhos menores. Corria o mês de Maio do ano de 2005. Lembro-me de um comentário meu, feito a mim mesmo, depois de observá-lo, distante e sereno, com um sorriso discreto nos lábios, em passeio curto pelo bem tratado jardim: este senhor tem tudo para ser um bom homem. Tinha tudo mas não era, porque não quis ou não o deixaram ser, continuei em tom afirmativo o meu solilóquio, porque por essa altura, eu sentia os efeitos da indiferença inexplicável (talvez um certo desprezo mesmo) que o governo manifestava pela intervenção na sociedade angolana de grupos como o que eu liderava na altura. Na verdade, o movimento cívico que há uns anos despontava no país, firmemente determinado a trabalhar a favor da edificação de uma sociedade civil forte e participativa, encontrava dificuldades de se impor, mercê de uma política de exclusão adoptada pela governação. Exclusão para quem defendia os valores democráticos, inclusão plena para os que os desvirtuavam claramente. Eram constantes os insucessos que a organização cultural a que eu estava vinculado ia acumulando nas mais diversas iniciativas de aproximação aos órgãos estatais. Os fracassos eram deliberadamente promovidos por instâncias influentes, quer a nível do Estado como do partido no poder, a quem desagradava nitidamente o nosso posicionamento, face a questões como a democracia, a sociedade civil e o estado democrático e de direito. Lembro ainda que ali mesmo, em Salvador da Bahia, eu e alguns dos meus colegas enfrentamos diariamente e durante o tempo da nossa estadia, manifestações explícitas de um preconceito não escondido que exalava dos comportamentos de certos indivíduos, em exibição de atitudes deploráveis que um dia, em local apropriado, eu terei o gosto de relatar e desmascarar. Não se tratavam de casos isolados, eram acções concertadas, nascidas de atitudes de agentes e governantes. A propósito, lembro um episódio em que um deles, no exercício do seu cargo governativo, numa recepção de uma embaixada estrangeira em Angola, chegou ao desplante de dizer-me, cara-a-cara, que eu e o meu grupo éramos um corpo estranho no mosaico cultural da Angola moderna. Ora, por esses factos insólitos e outros que se seguiram, todos eles resultantes de políticas de Estado conscientes e assumidas, devo neste momento, por força da razão que me assiste, dizer que, se admirei o estadista lúcido que soube com a sua peculiar serenidade manter a integridade territorial do nosso país; se enalteci o político magnânimo que na hora mais difícil escolheu os caminhos da reconciliação nacional, conquistando a opinião pública nacional e internacional; se, como a maioria dos angolanos o apoiei incondicionalmente nesses momentos difíceis, não consegui concordar nunca com muitos dos seus descuidados e levianos gestos administrativos que, para além das facilidades concedidas à prática da exclusão atrás referida e verificada a vários níveis nas estruturas partidário-governamentais, permitiu igualmente a ausência de fiscalização e controlo sobre a gestão da coisa pública, gestos que redundaram no tremendo fracasso que conhecemos e nos empurrou para a situação desesperada, quer do ponto de vista político como económico que bem conhecemos. Deste modo, passado que está o período mais emotivo das manifestações registadas em torno do passamento de José Eduardo dos Santos, o antigo Presidente da República de Angola, direi que temos que voltar à vida, já que a morte é sempre certa. Entretanto, os dias que se seguiram e seguem ao triste acontecimento, têm permitido aferir os sentimentos dos seus entes queridos, os gestos, as palavras, as opiniões mais desencontradas, a paixão, o culto e o desafecto evidenciados em relação ao de cujus. Dos Santos foi uma figura tão idolatrada quanto odiada, resultado do enorme protagonismo político que teve em vida, até na agonia e na própria hora da morte. Principal intérprete de uma vida repleta de assuntos delicados e controversos, de gestos nobres na vida pública e de outros não tanto assim, levou a constante polémica até chegar ao cenário do seu calvário e morte. Um cenário a mostrar aos angolanos e ao mundo que, sobre o muito comentado óbito de Zedú ainda se falará bastante. É, ao fim de tudo, o desígnio que marca e acompanha a vida, para lá da morte, dos homens e mulheres que, pelo seu percurso de combatente e intervenção política como aconteceu com José Eduardo dos Santos, entram, como ele entrou, no bem e no mal, na história dos países e do mundo. O desaparecimento do homem que governou Angola durante 38 anos ininterruptos deixou também, em termos sentimentais, não há como negá-lo, a população angolana visivelmente dividida. De um lado, os que o veneraram com paixão, como se adoram os deuses. Alguns deles espalhando pelos quatro cantos do mundo, encantos e frenesins acerca da sua veneranda figura. Querença compreensível pelo que representou na ascensão política e social na vida dos seus aduladores, nos passos de gigante que lhes proporcionou e permitiram subidas meteóricas na escala social, com poderes conquistados, nunca sonhados. Do outro lado, e não obstante reconhecerem a sua enorme dimensão de estadista, os que amarguraram com desespero o efeito de muitas das suas decisões, marcadas por castigos e condenações incompreensíveis, acções resultantes da sua frieza de carácter e insensibilidade própria da sua natureza, mostrada em variadíssimos momentos. Entre as muitas declarações públicas que ao longo dos anos fiz na comunicação social angolana acerca da situação política e social do país, destaco uma entrevista concedida em finais da primeira década de 2000 ao semanário Novo Jornal, na qual contestei o tipo de vida que se vivia no nosso país. NÃO ESTOU SATIFEITO COM ESTE REGIME, foi a manchete que referia claramente o Presidente José Eduardo dos Santos. Assim mesmo, com letras garrafais saiu a matéria, com a minha fotografia a preencher todo o espaço da capa a cores. Tivesse eu a raiva e a vingança entranhadas no meu espírito, tivesse eu o espírito vingativo que muitos hoje não escondem, estaria eu aqui a integrar-me no exército dos que se atiram agora contra a figura do falecido ex-Presidente, com muitos a evidenciar até um certo pudor no orgulho de ser angolano. Pelo contrário, e a despeito de não olvidar a maldade que o tempo passado forjou, não me esqueço do período difícil em que representou condignamente o nosso país e foi garante da paz e da integridade nacional. Não cultivo o ódio e não exulto com a morte de ninguém. Sempre me comportei assim na hora da morte, no caso, dos que estiveram politicamente expostos. Questão de princípios, de educação. Pugnando sempre, até ao limite das minhas forças, pela instauração da democracia em Angola e pela real implantação do Estado Democrático e de Direito, na expectativa da educação de um povo cioso da sua juventude democrática, assim estarei, na hora da partida dos que falecerem antes de mim. Luanda, 11 de Julho de 2022 Jacques Arlindo dos Santos