Pepe Rodriguez e a Igreja e a mentira do CELIBATO
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Mentiras da Igreja Católica
Por Pepe Rodríguez
PRÓLOGO
(source)
Igreja Católica de São Pedro - Mentiras Da Igreja Católica
Pepe Rodríguez nos desvela nesta magnífica obra as entranhas da Igreja Católica, de que modo, com o passar do tempo, mal interpretaram as sagradas escrituras em benefício e lucro de uma instituição que longe de divulgar fielmente os ensinamentos de Jesus os perverteram para encher suas arcas.
O autor nos demonstra, após uma exaustiva investigação, que aqueles supostos guardiões da palavra de Jesus a transformaram, obrigando de maneira sutil e enganosa muitos fiéis laicos e clérigos a crer na postura do “celibato” como estado ideal para a concepção do divino no ser humano. No entanto, evidentemente, segundo a exposição de Pepe Rodríguez, a idéia do celibato não é apoiada pelos Evangelhos nem muito menos pelo próprio Jesus.
Mostra também o espinhoso tema das más formações psicopatológicas sofridas pelos sacerdotes por estarem obrigados a reprimir a necessidade de uma sexualidade normal.
E se destapam os motivos pelos quais a Igreja Católica prefere manter uma postura tão distante do Cristianismo como a do celibato, ainda que isto pressuponha: danar a saúde mental dos seus clérigos, prejudicá-los no seu desenvolvimento emocional e impulsioná-los muitas vezes a cometer atos “sexuais” delitivos contra menores e adultos.
Capítulo I
COMO A IGREJA CATÓLICA MAL INTERPRETOU DE FORMA INTERESSADA O NOVO TESTAMENTO PARA PODER IMPÔR SUA VONTADE ABSOLUTA SOBRE O POVO E O CLERO
A hermenêutica bíblica atual garante absolutamente a tese de que Jesus não instituiu praticamente nada e menos ainda qualquer modelo determinado de Igreja. Pelo contrário, os textos do Novo Testamento oferecem diversas possibilidades na hora de estruturar uma comunidade eclesial e seus ministérios sacramentais1.
Segundo os Evangelhos, Jesus só citou a palavra «igreja» em duas ocasiões e em ambas se referia à comunidade de crentes, jamais a uma instituição atual ou futura. Mas a Igreja Católica empenha-se em manter a falácia de que Cristo foi o instaurador de sua instituição e de preceitos que não são senão necessidades jurídicas e econômicas de uma determinada estrutura social, conformada a golpes de decreto no decorrer dos séculos.
Assim, por exemplo, instituições organizativas como o episcopado, o presbiterado e o diaconato, que começaram a formar-se nos fins do século II, foram defendidas pela Igreja como dadas “por instituição divina” (fundadas por Cristo)2, até que no Concílio de Trento, em meados do século XVI, foi mudada habilmente sua origem e passaram a ser «por disposição divina» (por arranjo, por evolução progressiva inspirada por Deus). E, finalmente, a partir do Concílio Vaticano II (documentos Gaudium et Espes, e Lumen Gentium), na segunda metade do século XX, a estrutura hierárquica da Igreja já não tem suas raízes no divino senão que procede “do antigo” (é uma mera questão estrutural que se tornou costume).
São muitas as interpretações errôneas dos Evangelhos que a Igreja Católica realizou e sustentou veementemente ao longo de toda sua história. Erros que, em geral, devem atribuir-se antes à malícia e ao cinismo e não à ignorância - nada depreciável, por outro lado -, já que, não por acaso, todos eles resultaram imensamente benéficos para a Igreja em seu afã de acumular dinheiro e poder. Mas neste capítulo vamos ocupar-nos só de duas mistificações básicas: a que corresponde ao conceito da figura do sacerdote e a que transformou o celibato numa lei obrigatória para o clero.
Os fiéis católicos levam séculos crendo de olhos fechados na doutrina oficial da Igreja que apresenta o sacerdote como um homem diferente dos outros - e melhor que os laicos -, “especialmente eleito por Deus” através de sua vocação, investido pessoal e permanentemente de sacro e exclusivo poder para oficiar os ritos e sacramentos, e chamado para ser o único mediador possível entre o ser humano e Cristo. Mas esta doutrina, tal como sustentam muitos teólogos, entre eles José Antonio Carmona3, nem é de fé, nem tem suas origens além do século XIII ou finais do XII.
A Epístola aos Hebreus (atribuída tradicionalmente a São Paulo) é o único livro do Novo Testamento no qual se aplica a Cristo o conceito de sacerdote – hiereus -4 , mas se emprega para significar que o modelo de sacerdócio levítico já não faz sentido a partir de então. “Tu [Cristo] és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec - se diz em Heb 5,6 -, não segundo a ordem de Aarão”.
Outros versículos - Heb 5,9-10 e 7,22-25 - também deixam assentado que Jesus veio a abolir o sacerdócio levítico, que era tribal - e de casta (pessoal sacro), dedicado ao serviço do templo (lugar sacro) para oferecer sacrifícios durante as festas religiosas (tempo sacro) -, para estabelecer uma fraternidade universal que rompesse a linha de poder que separava o sacro do profano5. E em textos como o Apocalipse - Ap 1,6; 5,10; 20,6 -, ou a I Epístola de São Pedro - IPe 2,5 - o conceito de hiereus/sacerdote já se aplica a todos os batizados, a cada um dos membros da comunidade de crentes em Cristo, e não aos ministros sacros de um culto.
A concepção que a primitiva Igreja cristã tinha de si mesma - ser “uma comunidade de Jesus”- foi amplamente ratificada durante os séculos seguintes. Assim, no Concílio de Calcedônia (451), seu cânon6 era taxativo ao estipular que “ninguém pode ser ordenado de maneira absoluta –apolelymenos - nem sacerdote, nem diácono (...) se não lhe foi atribuído claramente uma comunidade local”. Isso significa que cada comunidade cristã elegia um de seus membros para exercer como pastor e só então podia ser ratificado oficialmente mediante a ordenação e imposição de mãos. O contrário, que um sacerdote lhes viesse imposto desde o poder institucional como mediador sacro, é absolutamente herético6 (selo que, estrito sensu, deve ser aplicado hoje às fábricas de curas que são os seminários).
Nos primeiros séculos do cristianismo, a eucaristia, eixo litúrgico central desta fé, podia ser presidida por qualquer varão - e também por mulheres - mas, progressivamente, a partir do século V, o costume foi cedendo a presidência da missa a um ministro profissional, de modo que o ministério sacerdotal começou a crescer sobre a estrutura sócio-administrativa que se denomina a si mesma sucessora dos apóstolos - mas que não se baseia na apostolicidade evangélica e muito menos na que propõe o texto joanino - em lugar de fazê-lo a partir da eucaristia (sacramento religioso). E daquelas poeiras vêm as atuais lamas.
No Concílio III de Latrão (1179), que também pôs os alicerces da Inquisição, o papa Alexandro III forçou uma interpretação restringida do cânon de Calcedônia e mudou o original titulus ecclesiae -ninguém pode ser ordenado se não é para uma igreja concreta que assim o demande previamente - pelo beneficium - ninguém pode ser ordenado sem um benefício (salário da própria Igreja) que garanta seu sustento-. Com este passo, a Igreja traía absolutamente o Evangelho e, ao priorizar os critérios econômicos e jurídicos sobre os teológicos, dava o primeiro passo para assegurar para si a exclusividade na nomeação, formação e controle do clero.
Pouco depois, no Concílio IV de Latrão (1215), o papa Inocêncio III fechou o círculo ao decretar que a eucaristia já não podia ser celebrada por ninguém que não fosse “um sacerdote válido e licitamente ordenado”. Havia nascido os exclusivistas do sacro, e isso incidiu muito negativamente na mentalidade eclesiástica futura que, entre outros despropósitos, coisificou a eucaristia - despojando-a do seu verdadeiro sentido simbólico e comunitário - e acrescentou ao sacerdócio uma enfermiça - ainda que muito útil para o controle social - potestade sacro-mágica, que serviu para enquistar até hoje seu domínio sobre as massas de crentes imaturos e/ou incultos.
O famoso Concílio de Trento (1545-1563), profundamente fundamentalista - e por isso tão querido para o papa Wojtyla e seus ideólogos mais expressivos, leia-se Ratzinger e Opus Dei -, em sua seção 23, referendou definitivamente esta mistificação, e a chamada escola francesa de espiritualidade sacerdotal, no século XVII, acabou de criar o conceito de casta do clero atual: sujeitos exclusivamente sacros e forçados a viver segregados do mundo laico.
Este movimento doutrinário, que pretendia lutar contra os vícios do clero de sua época, desenvolveu um tipo de vida sacerdotal similar à monacal (hábitos, horas canônicas, normas de vida estritas, tonsura, segregação, etc.), e fez com que o celibato passasse a ser considerado de direito divino e, portanto, obrigatório, dando o ajuste definitivo ao édito do Concílio III de Latrão, que o considerava uma simples medida disciplinar (passo já muito importante por si porque rompia com a tradição dominante na Igreja do primeiro milênio, que considerava o celibato como uma opção puramente pessoal).
O papa Paulo VI, no Concílio Vaticano II, quis remediar o abuso histórico da apropriação indevida e exclusiva do sacerdócio por parte do clero, quando, na encíclica Lumen Gentium, estabeleceu que “todos os batizados, pela regeneração e unção do Espírito Santo, são consagrados como casa espiritual e sacerdócio santo (...). O sacerdócio comum dos crentes e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, ainda que diferem em essência e não só em grau, no entanto se ordenam um ao outro, pois um e outro participam, cada um a seu modo, do único sacerdócio de Cristo”.
Em síntese - embora seja entrar numa chave teológica muito sutil, mas fundamental para todo católico que queira saber de verdade que posição ocupa dentro desta Igreja autoritária -, o sacerdócio comum (próprio de cada batizado) pertence à koinonía ou comunhão dos fiéis, sendo por isso uma realidade substancial, essencial, da Igreja de Cristo. Enquanto o sacerdócio ministerial, como tal ministério, pertence à diakonía ou serviço da comunidade, não à essência da mesma. Neste sentido, o Vaticano II restabeleceu a essência de que o sacerdócio comum, consubstancial a cada batizado, é o fim, enquanto o sacerdócio ministerial é um meio para o comum. O domínio autoritário do sacerdócio ministerial durante o último milênio, tal como é evidente para qualquer analista, tem sido a base da tirânica deformação dogmática e estrutural da Igreja, da perda do sentido eclesial tanto entre o clero como entre os crentes, e dos intoleráveis abusos que a instituição católica tem exercido sobre o conjunto da sociedade em geral e sobre o próprio clero em particular. Mas, como é evidente, o pontificado de Wojtyla e seus assistentes lutaram mortalmente para ocultar de novo esta proposta e reinstauraram as falácias trentinas que mantêm todo o poder sob as sotainas.
Dada a falta de legitimação que tem o conceito e as funções (exclusivas) do sacerdócio dominante até hoje no seio da Igreja Católica, repassaremos também, brevemente, a absoluta falta de justificativa evangélica que apresenta a lei canônica do celibato obrigatório.
No Concílio Vaticano II, Paulo VI - que não se atreveu a restabelecer a questão do celibato tal como solicitaram muitos membros do sínodo - assumiu a doutrina tradicional da Igreja ao deixar determinado - em (PO 16) - que “exorta também este sagrado Concílio a todos os presbíteros que, confiados na graça de Deus, aceitaram o sagrado celibato por livre vontade a exemplo de Cristo7, a que, abraçando-o magnanimamente e de todo coração e perseverando fielmente neste estado, reconheçam este preclaro dom, que lhes foi feito pelo Pai e tão claramente é exaltado pelo Senhor (Mt 19,11), e tenham também ante os olhos os grandes mistérios que nele se representam e cumprem”.
À primeira vista, na própria redação deste texto reside sua refutação. Se o celibato é um estado tal como se afirma, isto é, uma situação ou condição legal na que se encontra um sujeito, igualmente o será o matrimônio e ambos, quanto a estados, podem e devem ser optados livremente por cada indivíduo, sem imposições nem ingerências externas.
Em segundo lugar, o celibato não pode ser um dom ou carisma, tal como se diz, já que, do ponto de vista teológico, um carisma é dado sempre não para o proveito de quem o recebe mas para o da comunidade a qual este pertence. Assim, os dons bíblicos de cura ou de profecia, por exemplo, eram outorgados para curar ou para guiar a outros, mas não podiam ser aplicados em benefício próprio.
Se o celibato fosse um dom ou carisma, sê-lo-ia para ser dado em benefício de toda a comunidade de crentes e não só para uns quantos privilegiados, e é bem sabido que resulta uma falácia argumentar que o celibatário tem maior disponibilidade para ajudar os outros. O matrimônio, por outro lado, sim que é dado para contribuir ao mútuo benefício da comunidade.
Em todo caso, finalmente, em nenhuma das listas de carismas que transmite o Novo Testamento - Rom 12,6-7; 1 Cor 12,8-10 ou Ef 4,7-11- cita-se o celibato como tal. Logo, não é nenhum dom ou carisma por mais que a Igreja assim pretenda.
A pretendida exaltação do celibato pelo Senhor, citada nos versículos 19,10 do Evangelho de São Mateus, deve-se, com toda probabilidade, a uma exegese errônea dos mesmos, originada em uma tradução incorreta do texto grego (primeira versão que se tem de seu original hebreu), cometida ao fazer sua versão latina Vulgata.
Segundo Mt 19,10 Jesus está respondendo uns fariseus que lhe perguntaram sobre o divórcio, e ele afirma a indissolubilidade do matrimônio (como meta a conseguir, como a perfeição à que deve tender-se, não como mera lei a impor), à qual os fariseus lhe opõem a Lei de Moisés, que permite o divórcio, e ele responde8:
“Moisés por causa da dureza de vossos corações vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas ao princípio não foi assim. Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de prostituição, e casar com outra, comete adultério. Os discípulos lhe replicaram: Se assim é a situação do homem relativamente à mulher, não convém casar. Mas ele lhes disse: Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido (ou pántes joroúsin ton lógon toúton, all’hois dédotail). Há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe, e há eunucos que foram castrados pelos homens, e há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do reino dos céus. Quem pode receber isso, receba-o”.
Neste texto, que aporta matizes fundamentais que não aparecem na clássica Vulgata, quando Jesus afirma que “nem todos podem receber esta palavra” e “quem pode receber isso, receba-o”, está referindo-se ao matrimônio e não ao celibato, tal como tem sustentado até o presente a Igreja. As palavras ton lógon toúton referem-se, em grego, ao que antecede (a dureza do matrimônio indissolúvel, que faz os discípulos expressar que não vale a pena casar-se), não ao que vem depois. O que se afirma como um dom é o matrimônio, não o celibato e, portanto, contrário à crença eclesial mais habitual, não exalta a este sobre aquele, mas o contrário9.
A famosa frase “há os que se castraram a si mesmos por causa do reino dos céus”, tomada pela Igreja como a prova da recomendação ou conselho evangélico do celibato, nunca pode ser interpretada assim por dois motivos: o tempo verbal de um conselho desta natureza, e dado nesse contexto social, sempre deve ser o futuro, não o passado ou presente, e o texto grego está escrito no tempo passado. E, finalmente, dado que toda a frase referida aos eunucos está no mesmo contexto e tom verbal também deveria tomar-se como “conselho evangélico” a castração forçada (“há eunucos que foram castrados pelos homens”), coisa que, evidentemente, seria uma estupidez.
É óbvio, portanto, que não existe a menor base evangélica para impor o celibato obrigatório ao clero. Os primeiros regulamentos que afetam a sexualidade - e subsidiariamente o matrimônio/celibato dos clérigos – foram produzidos quando a Igreja, da mão do imperador Constantino, começa a se organizar como um poder sociopolítico terreno. Quanto mais séculos iam passando e mais se manipulavam os Evangelhos originais, mais força foi cobrando a questão do celibato obrigatório. Uma questão chave, como veremos, para dominar facilmente a massa clerical.
Até o Concílio de Nicéia (325) não houve decreto legal algum em matéria de celibato. No cânon 3 estipulou-se que “o Concílio proíbe, com toda a severidade, os bispos, sacerdotes e diáconos, ou seja, todos os membros do clero, de ter consigo uma pessoa do sexo oposto, a exceção de mãe, irmã ou tia, ou bem de mulheres das que não se possa ter nenhuma suspeita”, mas neste mesmo Concílio não se proibiu que os sacerdotes que já estivessem casados continuassem levando uma vida sexual normal.
Decretos similares foram somando-se ao longo dos séculos - sem conseguir que uma boa parte do clero deixasse de ter concubinas - até chegar a onda repressora dos concílios lateranenses do século XII, destinados a estruturar e fortalecer definitivamente o poder temporário da Igreja. No Concílio I de Latrão (1123), o papa Calixto II condenou novamente a vida em casal dos sacerdotes e avaliou o primeiro decreto explícito obrigando o celibato. Pouco depois, o papa Inocêncio II, nos cânones 6 e 7 do Concílio II de Latrão (1139), incidia na mesma linha - como seu sucessor Alejandro III no Concílio III de Latrão (1179) - e deixava perfilada já definitivamente a norma disciplinar que daria lugar à atual lei canônica do celibato obrigatório... que a maioria dos clérigos, na realidade, continuou sem cumprir.
Tão habitual era que os clérigos tivessem concubinas que os bispos acabaram por instaurar o chamado rendimento de putas, que era uma quantidade de dinheiro que os sacerdotes tinham que pagar para o seu bispo cada vez que transgrediam a lei do celibato. E era tão normal ter amantes que muitos bispos exigiram o rendimento de putas de todos os sacerdotes de sua diocese, sem exceção. E os que defendiam sua pureza foram obrigados a pagar também, já que o bispo afirmava que era impossível não manter relações sexuais de algum tipo.
A esta situação tentou pôr limites o tumultuoso Concílio de Basiléia (1431-1435), que decretou a perda dos rendimentos eclesiásticos aos que não abandonassem suas concubinas após ter recebido uma advertência prévia e de ter sofrido uma retirada momentânea dos benefícios.
Com a celebração do Concílio de Trento (1545-1563), o papa Paulo III - protagonista de uma vida dissoluta, favorecedor do nepotismo em seu próprio pontificado, e pai de vários filhos naturais - implantou definitivamente os éditos disciplinares de Latrão e, além disso, proibiu explicitamente que a Igreja pudesse ordenar varões casados10.
Enfim, anedotas à parte, desde a época dos concílios de Latrão até hoje nada substancial mudou a respeito de uma lei tão injusta e sem fundamento evangélico - e por isso qualificável de herética - como é a que decreta o celibato obrigatório para o clero.
O papa Paulo VI, em sua encíclica Sacerdotalis Coelibatus (1967), não deixou lugar a dúvidas quando assentou doutrina com este teor:
• «O sacerdócio cristão, que é novo, não se compreende senão à luz da novidade de Cristo, pontífice supremo e pastor eterno, que instituiu o sacerdócio ministerial como participação real de seu único sacerdócio» (núm. 19)
• “O celibato é também uma manifestação de amor à Igreja” (núm. 26)
• “Desenvolve a capacidade para escutar a palavra de Deus e dispõe à oração. Prepara o homem para celebrar o mistério da eucaristia” (núm. 29)
• “Dá plenitude à vida» (núm. 30)
• «É fonte de fecundidade apostólica” (núm. 31-32).
Com o exposto até aqui, e com o que veremos no resto deste livro, demonstraremos, sem lugar a dúvidas, que todas estas manifestações de Paulo VI, em sua famosa encíclica, não se ajustam em absoluto à realidade na qual vive a imensa maioria do clero católico.
“Como sacerdote - explica o teólogo e cura casado Josep Camps11-, tive que viver muito de perto - em alguns casos tendo-as praticamente em minhas mãos - terríveis crises pessoais de muitos colegas e amigos. Um deles, um professor prestigiado de uma ordem religiosa muito destacada, confessou-me que esteve dez anos angustiado antes de se decidir por confessar a si mesmo que desejava abandonar o celibato. No decorrer de uns três anos celebrei as bodas de sete sacerdotes amigos, até chegar no ponto de sentir-me o “casacuras” oficial. E recusei em várias ocasiões propostas para casar “por baixo dos panos” e sem dispensa algum sacerdote que desejava legalizar sua situação e deixar o ministério”.
“Simultaneamente, certa aproximação e interesse por temas de psicologia e psiquiatria alertou-me e começou a me preocupar. Não me pesava demasiado um celibato vivido e querido - embora não fosse nada fácil mantê-lo - por uma decisão livre e constantemente renovada, mas comecei a me questionar sua imposição administrativa a uma só categoria de cristãos... porque é sabido que os sacerdotes de ritos orientais católicos podem casar-se, e o mesmo cabe dizer dos ministros das Igrejas surgidas da Reforma protestante”.
“Em pleno fragor do que a Igreja chama de “deserções” de sacerdotes com fins, entre outros, matrimoniais -, apareceu, em 1967, a encíclica de Paulo VI, Sacerdotalis Coelibatus. Havia chegado, para mim, o momento de aclarar todo este assunto do celibato”.
“O texto da encíclica é um belo panegírico, sábio e profundo, da virgindade consagrada a Deus, que faz parte dos chamados tradicionalmente “conselhos evangélicos” (por mais que se encontre apenas rastro deles nos evangelhos). Só que ao chegar ao ponto, para mim chave, das razões pelas que se exige o celibato aos sacerdotes seculares, a encíclica perde piso e se afunda estrondosamente: não há verdadeiras razões, só a “secular tradição da Igreja latina”, ou seja, nada. A encíclica matou em mim a idéia do celibato - obrigado, Paulo VI! - e desisti dele. Em teoria, claro, porque não tinha pressas nem especiais urgências, nem tinha aparecido ainda a pessoa com quem estabelecer uma relação profunda e séria.”
A Igreja Católica, ao longo de sua história, falseou em benefício próprio tudo aquilo que lhe interessou. Tem imposto sobre o povo um modelo de sacerdote (e de seu ministério) mistificado e cínico, mas lhe foi de grande utilidade para fortalecer seu domínio sobre as consciências e as carteiras das massas.
E, do mesmo modo, tem imposto sobre seus trabalhadores pesos sacros que não lhes correspondem, e leis injustas e arbitrárias, como a do celibato obrigatório, que servem fundamentalmente para criar, manter e potenciar a submissão, o servilismo e a dependência do clero a respeito da hierarquia.
“O celibato dos pastores deve ser opcional - afirma o sacerdote casado Julio Pérez Pinillos -, já que o celibato imposto, além de empobrecer o caráter de “Símbolo”, é um dos pilares que sustenta a organização piramidal da Igreja-aparelho e potencia o binômio clérigos-laicos, tão empobrecedor para os primeiros como humilhante para os segundos”.12
Neste final de século, quando muitíssimos teólogos de prestígio alçaram sua voz contra as interpretações doutrinárias errôneas e as atitudes lesivas que comportam, o papa Wojtyla os calou com a publicação de uma encíclica tão autoritária, sectária e lamentável como é a Veritatis Splendor. Esplendor da verdade? De que verdade? A mentalidade de Latrão e Trento volta a governar a Igreja. Correm maus tempos para o Evangelho cristão.
Capítulo II
A LEI DO CELIBATO, OBRIGATÓRIO CATÓLICO:
UMA QUESTÃO DE CONTROLE,
ABUSO DE PODER E ECONOMIA
“O motivo verdadeiro e profundo do celibato consagrado - deixa estabelecido o Papa Paulo VI, em sua encíclica Sacerdotalis Coelibatus (1967 ) - é a eleição de uma relação pessoal mais íntima e mais completa com o mistério de Cristo e da Igreja, pelo bem de toda a humanidade. Nesta eleição, os valores humanos mais elevados podem certamente encontrar sua mais alta expressão”.
E o artigo 599 do Código de Direito Canônico, com linguagem sibilina, impõe que “o conselho evangélico de castidade assumido pelo Reino dos Céus, enquanto símbolo do mundo futuro e fonte de uma fecundidade mais abundante num coração não dividido, leva consigo a obrigação de observar perfeita continência no celibato”.
No entanto, a Igreja Católica, ao transformar um inexistente “conselho evangélico” em lei canônica obrigatória - que, como já vimos no capítulo anterior, carece de fundamento neotestamentário -, ficou anos-luz de potenciar o que Paulo VI resume como “uma relação pessoal mais íntima e mais completa com o mistério de Cristo e da Igreja, pelo bem de toda a humanidade”.
Pelo contrário, o que sim tem conseguido a Igreja com a imposição da lei do celibato obrigatório é criar um instrumento de controle que lhe permite exercer um poder abusivo e ditatorial sobre seus trabalhadores, e uma estratégia basicamente economicista para baratear os custos de manutenção de sua planilha sacro trabalhista e, também, para incrementar seu patrimônio institucional, pelo que, evidentemente, a única «humanidade» que ganha com este estado de coisas é a própria Igreja Católica.
A lei do celibato obrigatório é uma mais entre as notáveis vulnerações dos direitos humanos que a Igreja Católica vem cometendo desde séculos, por isso, antes de começar a tratar as premissas deste capítulo, será oportuno dar entrada à opinião de Diamantino Garcia, presidente da Associação Pró-Direitos Humanos de Andaluzia, membro destacado do Sindicato de Operários do Campo, sacerdote a vinte e seis anos, e pároco dos povos sevilhanos dos Corrales e de Martín da Jara.
Continuará...
1. Cfr., por exemplo, os diversos modelos eclesiásticos de Jerusalém, Antioquia, Corinto, Éfeso, Roma, as comunidades Joaninas, as das Cartas Pastorais, Tessalônica, Colossas...
2. Nos três primeiros séculos não são reconhecidas como tais. São Jerônimo, por exemplo, um dos principais padres da Igreja e tradutor da Vulgata (a Bíblia em sua versão em latim), jamais as aceitou como de instituição divina e, com maior razão, nunca se deixou ordenar bispo. Dado que nos Evangelhos só se fala de diaconato e presbiterado, São Jerônimo defendia que ser bispo equivalia a estar fora da Igreja (entendida no seu significado autêntico e original de Eclésia ou assembléia de fiéis).
3. Cfr. Carmona Brea, J.A. (1994). Os sacramentos: símbolos do encontro. Barcelona: Edições Ángelus, capítulo VII.
4. Hiereus é o termo que se empregava no Antigo Testamento para denominar os sacerdotes da tradição e os das culturas não judias. Seu conceito é inseparável das noções de poder e de separação entre o sagrado e o profano (valha como exemplo, para os que desconhecem a história antiga, o modelo dos sacerdotes egípcios ou dos diferentes povos da Mesopotâmia).
5. «Porque o homem é o templo vivo (não há espaço sagrado), para oferecer o sacrifício de sua vida (toda pessoa é sagrada), em oferenda constante ao Pai (não há tempos sagrados)», argumenta o teólogo José Antenio Carmona.
6. E assim o qualificavam padres da Igreja como Santo Agostinho em seus escritos (cfr. Contra Ep. Parmeniani II, 8).
7. Ou “Quem pode receber isto, receba-o”. Na Bíblia católica de Nácar-Colunga, ao contrário se diz: “Disseram-lhe seus discípulos: Se assim é a condição do homem relativamente à mulher, não convém casar. Ele lhes contestou: Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido. Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do reino dos céus. Quem pode receber isto, receba-o”. Existe uma diferença abismal entre o “ser capaz de recebê-lo” do texto original e o “ser capaz de entendê-lo” do falaz texto católico, as implicações teológicas e legislativas que se desprendem de um e outro são também diametralmente opostas.
8. Isto, lógica e indubitavelmente, deve ser assim, já que, do ponto de vista sociocultural, dado que Jesus era um judeu fiel à Lei, tal como já mencionamos, jamais podia antepor o celibato ao matrimônio: a tradição judia obriga todos ao matrimônio, enquanto despreza o celibato.
9. A respeito da castração no âmbito da hierarquia eclesial, convém recordar aqui, por exemplo, que o grande teólogo Orígenes castrou a si mesmo - interpretando de forma patológica a frase de Jesus: “Se tua mão ou teu pé te escandalizar, corta-o e atira-o para longe de ti: melhor te é entrar na vida coxo ou aleijado, do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno” (Mt 18,8) -, talvez porque seu “membro causador de escândalo” lhe
10. A ordenação sacerdotal de varões casados tinha sido uma prática normalizada dentro da Igreja até o concílio de Trento. Atualmente, devido à escassez de vocações, muitos prelados - especialmente do terceiro mundo defendem de novo esta possibilidade e solicitaram repetidamente ao papa Wojtyla que facilite a instituição do viriprobati (homem casado que vive com sua esposa como irmãos) e seu acesso à ordenação. Mas Wojtyla a descartou pública e repetidamente - atribuindo sua petição a uma campanha de “propaganda sistematicamente hostil ao celibato” (Sínodo de Roma, outubro de 1990)-, apesar de que ele mesmo, em segredo, autorizou ordenar varões casados em vários países do terceiro mundo. No mesmo Sínodo citado, Aloísio Lorscheider, cardeal de Fortaleza (Brasil), desvelou o segredo e aportou dados concretos sobre a ordenação de homens casados autorizados por Wojtyla. Causou uma agonia que hoje deve soar muito ridículo ao clero católico, cujo 60% mantêm relações sexuais apesar de seu celibato oficial. Por outra parte, até o século passado, na corte papal se concedia um lugar de privilégio aos famosos castratí, cantores, selecionados entre os coros das igrejas, que foram castrados sendo ainda meninos para que conservassem uma voz com tons e matizes impossíveis para qualquer varão adulto. Esses sim eram autênticos eunucos pelo reino dos céus!
11. Cfr. Santa Sede (194). Código de Direito Canônico. Madri: Biblioteca de Autores Cristãos, PP. 273-275.
12. Segundo os últimos dados oficiais da Igreja, disponíveis em 1990, só houve trinta sacerdotes diocesanos matriculados em faculdades, de estudos civis, isso é um 0,14% do total de sacerdotes. A este respeito, resulta muito ilustrador saber que o Código de Direito Canônico que esteve vigente entre 1917 e 1983 em seu cânon 129 ordenava: “Os clérigos, uma vez ordenados sacerdotes, não devem abandonar os estudos, principalmente os sagrados. E nas disciplinas sagradas seguirão a doutrina sólida recebida dos antepassados e comumente aceita pela Igreja, evitando as profanas novidades de palavras e a falsamente chamada ciência”. Cfr. Rodríguez, P. (1995). Op. cit.,p. 72.
13. Os notáveis problemas psicossociais que padece uma boa parte do clero católico, especialmente do diocesano, não só derivam das carências afetivo-sexuais, embora sendo esta esfera uma parte fundamental para o desenvolvimento, maturação e equilíbrio da personalidade humana. A própria estrutura formativa do clero e algumas dinâmicas vitais forçadas contribuem para gerar problemas psicológicos que têm sido evitados, em grande parte, entre o clero de outras confissões católicas ou cristãs em geral. A este respeito pode consultar-se o capítulo 5 do já citado estudo: A vida sexual do clero e a bibliografia específica que nele se relaciona.