sábado, 31 de outubro de 2009
a prosa de sérgio rodrigues
A mulher de Botero
João Pontes, o escritor, olhou um dia pela janela ao lado de sua mesa de trabalho, no nono andar de um edifício na Gávea, e viu na cobertura do outro lado da rua, bem à sua frente, entre vasos de planta, uma mulher de Botero. A visão o desagradou, como o desagradavam as mulheres de Botero. Mas logo João a decompôs numa ilusão de folhas amarelas e vasos escuros, tela nublada pela lâmina de vidro que tudo recobria, com seus reflexos e sombras.
Terminou por achar graça: a assombração era um incrível trompe-l’oeil produzido pelo acaso. Concentrou-se então no trabalho por mais meia hora – escrevia seu quinto romance, uma ficção histórica sobre o bando de Lampião – e, mal deixou o olho escapar pela janela atrás de um nome próprio, a palavra cardo, o adjetivo ressequido, lá estava a mulher de Botero outra vez.
Era uma visão súbita, perfeita, de uma nitidez que dava náusea. E de novo, o que era estranho, João a recebeu com a surpresa de um tapa na cara. Não conseguia estar preparado para a mulher de Botero.
Aquilo se repetiu por dias: olhar pela janela, tomar um susto ao ver a mulher de Botero a secar seu progresso penoso do outro lado da rua, como se dissesse: “Escritor? Pois sim…”, e perder mais uma vez o fio da meada de Virgulino, a pegada entre clássica e pop que buscava para o faroeste brasileiro que tinha na imaginação.
Aquela mulher de Botero era ainda mais desagradável do que a média das mulheres de Botero: xale preto, as mãos dois peixes inchados no colo preto, sorrisinho estúpido, o olhar entre frio e lunático – um olhar alienígena, com a hostilidade suprema da indiferença. Aquela coisa toda fofa, teratológica em seu balofismo. Misógina. E sempre chegando de tocaia. Duas semanas depois João parou de escrever.
O que o levou a tomar tal decisão foi o orgulho de autor: tinha perdido o controle da história. Às vezes achava agradável a sensação de estar à deriva em sua própria narrativa, ser levado por ela, mas só quando a direção era mais ou menos a que tinha planejado. E seus planos passavam longe do lugar onde estava agora. A coisa ia descambando de vontade própria de Quixadá para Querétaro: cada cena que lhe saía dos dedos, empurrada pela anterior e já puxando a seguinte, era de um realismo-socialista-quase-fantástico latino-americano de décima terceira categoria. Maria Bonita ficou enorme de gorda, os cangaceiros desenvolveram músculos de peão de Portinari, a luz amarela que tudo banhava era artificiosa, como se fosse de estúdio. Lampião, vanguarda do campesinato, organizava as massas e fundava sovietes. Parou.
Não tinha dúvida de que a culpa era da mulher de Botero. Pensou em atravessar a rua, descobrir o número do apartamento em que ela morava e interfonar. Soaria como um louco, mas, de certa forma, não era pedir tanto: será que a senhora se incomodaria de redecorar a cobertura só um pouquinho, um nada? Um vaso deslocado alguns centímetros seria o bastante para me restituir a felicidade.
Tímido, não atravessou a rua. Dizer o quê, sem soar ridículo: tem o fantasma de uma mulher gorda no seu jardim me impedindo de trabalhar?
Meses depois, já quase esquecido da mulher de Botero, tão acostumado estava a vê-la diariamente em seu habitat sombreado, reparou com uma vertigem que ela se fora. Na cobertura do outro lado da rua havia apenas vasos, folhagens – os centímetros de que precisava chegavam por obra do mesmo acaso que tinha engendrado o virago.
Seu primeiro impulso foi sorrir e pensar que voltaria à história engavetada de Lampião. Mas no instante seguinte ficou sério, sério e abatido, porque soube com clareza que voltaria à história de Lampião apenas para abandoná-la definitivamente logo depois – abandoná-la com tal fúria que só lhe restaria deletar qualquer traço de sua existência.
João compreendeu que era tarde, o livro exterminado: seu faroeste brasileiro era um aborto. E a mulher de Botero já nem estava lá para que ele pudesse mirá-la com ódio.
+ em Todoprosa
OGRANDEIRMÃO
"Quer falar o que aconteceu em junho de 1998?"
Greg olhou para ele e disse. "Como?"
"Você colocou uma mensagem em alt.burningman3 em 17 de junho de 1998, sobre os seus planos para ir a um festival. Você perguntou 'São os alucinógenos assim tão nocivos?'"
O interrogador na sala de controle era um homem mais velho, tão magro que de frente parecia estar de lado. E de lado parecia ter ido embora. As suas perguntas iam muito além da curiosidade de Greg sobre alucinógenos.
"Fale-me sobre seus passatempos. Você gosta de aeromodelismo ou lançamento de réplicas de foguetes em miniatura?"
"O quê?"
"Foguetes em miniatura."
"Não," disse Greg, "Não, não lido com isto." Já imaginando o rumo que a conversa ia tomar.
O homem tomou umas notas e digitou qualquer coisa. "Pergunto isto porque vejo um grande número de anúncios relacionados a combústivel de avião nos resultados de suas pesquisas no Google e também no e-Mail."
Greg sentiu um aperto. "Você está vendo os resultados das pesquisas que fiz? Está acessando meu e-Mail?" Greg não tocava num computador há mais de um mês, mas sabia que o quer que tivesse introduzido naquele campo de pesquisa seria bem mais revelador do que tudo o que já tinha dito ao seu psiquiatra.
"Senhor, tenha calma, por favor. Não estou vendo suas pesquisas e nem acessando seu e-Mail”, disse o homem com seriedade. "Isto seria violação de privacidade e é anticonstitucional. Nós apenas vemos os anúncios que aparecem quando você lê seu e- Mail e faz pesquisas no Google. Tenho aqui um folheto da companhia que explica tudo. Poderá lê-lo quando terminarmos."
“Mas os anúncios não significam nada”, contestou Greg. “Eu recebo anúncios de termas toda vez que recebo por e-Mail notícias de uma amiga em meu celular. Ela fala muito de uma cadela que cuida desde filhote!”
O homem acenou em concordância. "Entendo. E é exatamente por isso que estou falando contigo. Porque acha que estes anúncios sobre combústivel de aviação aparecem tão frequentemente?"
Greg pôs os neurônios para funcionar. "Faça isto. Procure por clube do café". Ele era um membro bastante ativo do clube, ajudando-os a lançar o site e o serviço café-do-mês. A mistura que iam lançar chamava-se Jet Fuel4. "Jet Fuel" e "lançamento" – isso faria com que o Google enchesse a página com anúncios de combústivel para motores a jato e aviação.
Já estavam na reta final da entrevista quando o funcionário encontrou as fotos do Halloween. Estavam na terceira página dos resultados da busca por "Greg Lupinski".
"Era uma festa com o tema Guerra do Golfo," disse ele.
"E você está vestido de...?"
"Homem bomba", respondeu meio constrangido.
Dizer aquelas palavras era bastante comprometedor àquela altura do campeonato.
"Venha comigo, Sr. Lupinski," disse o agente.
Vi no Capacitor Fantástico.
terça-feira, 27 de outubro de 2009
Trecho do livro ‘No Sufoco’
Todos nós podemos passar a vida deixando que o mundo diga quem somos. Mentalmente sãos ou insanos. Santos ou sexólatras. Heróis ou vítimas. Deixando que a história nos diga até que ponto somos bons ou maus.
Deixando que o passado decida nosso futuro.
Ou então, podemos decidir por nós mesmos.
Chuck Palahniuk
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
Frase (herege) para pensar:
domingo, 25 de outubro de 2009
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
Jornal dos EUA abre vaga para 'crítico de maconha'
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
Deus, Luceraldo, Adão...
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
Minhas Putas Tristes
Trecho de Memória de Minhas Putas Tristes,
de Gabriel García Márquez
No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem. Lembrei de Rosa Cabarcas, a dona de uma casa clandestina que costumava avisar aos seus bons clientes quando tinha alguma novidade disponível. Nunca sucumbi a essa nem a nenhuma de suas muitas tentações obscenas, mas ela não acreditava na pureza de meus princípios. Também a moral é uma questão de tempo, dizia com um sorriso maligno, você vai ver. Era um pouco mais nova que eu, e não sabia dela fazia tantos anos que podia muito bem estar morta. Mas no primeiro toque reconheci a voz no telefone e disparei sem preâmbulos:
- É hoje.
Ela suspirou: Ai, meu sábio triste, você desaparece vinte anos e volta só para pedir o impossível. Recobrou em seguida o domínio de sua arte e me ofereceu meia dúzia de opções deleitáveis, mas com um senão: eram todas usadas. Insisti que não, que tinha de ser donzela e para aquela noite. Ela perguntou alarmada: Mas o que é que você está querendo provar a si mesmo? Nada, respondi, machucado onde mais doía, sei muito bem o que posso e o que não posso. Ela disse impassível que os sábios sabem de tudo, mas não tudo: Virgens sobrando neste mundo só os do seu signo, dos nascidos em agosto. Por que não encomendou com mais tempo? A inspiração não avisa, respondi. Mas talvez espere, disse ela, sempre mais sabichona que qualquer homem, e me pediu nem que fossem dois dias para revirar o mercado a fundo. Eu repliquei a sério que numa questão dessas, e na minha idade, cada hora é um ano. Então não tem jeito, disse ela sem o menor fiapo de dúvida, mas não importa, assim é mais emocionante, merda, deixa que eu telefono em uma hora.
Não preciso nem dizer, porque dá para reparar a léguas: sou feio, tímido e anacrônico. Mas à força de não querer ser assim consegui simular exatamente o contrário. Até o sol de hoje, em que resolvo contar como sou por minha livre e espontânea vontade, nem que seja só para alívio da minha consciência. Comecei com o telefonema insólito a Rosa Cabarcas, porque, visto de hoje, aquele foi o início de uma nova vida, e numa idade em que a maioria dos mortais está morta.
Vivo numa casa colonial na calçada de sol do parque de San Nicolás, onde passei todos os dias da minha vida sem mulher nem fortuna, onde viveram e morreram meus pais, e onde me propus morrer só, na mesma cama em que nasci e num dia que desejo longínquo e sem dor. Meu pai comprou a casa num leilão público no final do século XIX, alugou o andar de baixo para lojas de luxo de um consórcio de italianos e reservou-se este segundo andar para ser feliz com a filha de um deles, Florina de Dios Cargamantos, intérprete notável de Mozart, poliglota e garibaldina, e a mulher mais formosa e de melhor talento que jamais houve na cidade: minha mãe.
O espaço da casa é amplo e luminoso, com arcos de estuque e pisos axadrezados de mosaicos florentinos, e quatro portas envidraçadas sobre uma sacada corrida onde minha mãe sentava-se nas noites de março para cantar árias de amor com suas primas italianas. Dali se vê o parque de San Nicolás com a catedral e a estátua de Cristóvão Colombo, e mais além os armazéns do cais fluvial e o vasto horizonte do rio grande da Magdalena a vinte léguas de seu estuário. A única coisa ingrata na casa é que o sol vai mudando de janelas no transcurso do dia, e é preciso fechar todas elas para tratar de dormir a sesta na penumbra ardente. Quando fiquei sozinho, aos meus trinta e dois anos, mudei-me para a que tinha sido a alcova de meus pais, abri uma porta de passagem para a biblioteca e para viver comecei a vender o que estava sobrando, e que terminou sendo quase tudo, exceto os livros e a pianola de rolos.
Durante quarenta anos fui o domador de telegramas do El Diario de La Paz, tarefa que consistia em reconstruir e completar em prosa indígena as notícias do mundo, que agarrávamos em pleno vôo pelo espaço sideral através das ondas curtas ou do código Morse. Hoje me sustento, mal ou bem, com minha aposentadoria daquele ofício extinto; me sustento menos com a de professor de gramática castelhana e latim, quase nada com a crônica dominical que escrevi sem esmorecimento durante mais de meio século, e nada em absoluto com as resenhas de música e teatro que me publicam de favor nas muitas vezes em que intérpretes notáveis passam por aqui. Nunca fiz nada diferente de escrever, mas não tenho vocação nem virtude de narrador, ignoro por completo as leis da composição dramática, e se embarquei nessa missão é porque confio na luz do muito que li pela vida afora. Dito às claras e às secas, sou da raça sem méritos nem brilho, que não teria nada a legar aos seus sobreviventes se não fossem os fatos que me proponho a narrar do jeito que conseguir nesta memória do meu grande amor.
No dia de meus noventa anos havia recordado, como sempre, às cinco da manhã. Por ser sexta-feira, meu compromisso único era escrever a crônica que é publicada aos domingos no El Diario de La Paz. Os sintomas do amanhecer tinham sido perfeitos para não ser feliz: me doíam os ossos desde a madrugada, meu rabo ardia, e havia trovões de tormenta depois de três meses de seca. Tomei banho enquanto passava o café, bebi uma caneca adoçada com mel de abelhas e acompanhada por duas broas de farinha de mandioca, e vesti o macacão de brim de ficar em casa.
O tema da crônica daquele dia, é claro, eram os meus noventa anos. Nunca pensei na idade como se pensa numa goteira no teto que indica a quantidade de vida que vai nos restando. Era muito menino quando ouvi dizer que se uma pessoa morre os piolhos incubados no couro cabeludo escapam apavorados pelos travesseiros, para vergonha da família. Isso me impressionou tanto que tosei o coco para ir à escola, e até hoje lavo os escassos fiapos que me restam com sabão medicinal de cinza e ervas milagrosas. Quer dizer, me digo agora, que desde muito menino tive mais bem formado o sentido do pudor social que o da morte.
Fazia meses que tinha previsto que minha crônica de aniversário não seria o mesmo e martelado lamento pelos anos idos, mas o contrário: uma glorificação da velhice. Comecei por me perguntar quando tomei consciência de ser velho, e acho que foi pouco antes daquele dia. Aos quarenta e dois anos havia acudido ao médico por causa de uma dor nas costas que me estorvava para respirar. Ele não deu importância: É uma dor natural na sua idade, falou.
- Então — disse eu —, o que não é natural é a minha idade.
O médico me deu um sorriso de lástima. Vejo que o senhor é um filósofo, disse ele. Foi a primeira vez que pensei na minha idade em termos de velhice, mas não tardei a esquecer o assunto. E me acostumei a despertar cada dia com uma dor diferente que ia mudando de lugar e forma, à medida que passavam os anos. Às vezes parecia ser uma garrotada da morte e no dia seguinte se esfumava. Nessa época ouvi dizer que o primeiro sintoma da velhice é quando a gente começa a se parecer com o próprio pai. Devo estar condenado à juventude eterna, pensei então, porque meu perfil eqüino não se parecerá jamais ao caribenho cru que era meu pai, nem ao romano imperial de minha mãe. A verdade é que as primeiras mudanças são tão lentas que mal se notam, e a gente continua se vendo por dentro como sempre foi, mas de fora os outros reparam.
Na quinta década havia começado a imaginar o que era a velhice quando notei os primeiros ocos da memória. Revirava a casa buscando meus óculos até descobrir que os estava usando, ou entrava com eles no chuveiro, ou punha os de leitura sem tirar os de ver de longe. Um dia tomei duas vezes o café da manhã porque me esqueci da primeira, e aprendi a reconhecer o alarme de meus amigos quando não se atreviam a me lembrar que estava contando a mesma história que havia contado na semana anterior. Naquele tempo tinha na memória uma lista de rostos conhecidos e outra com os nomes de cada um, mas no momento de cumprimentar não conseguia que as caras coincidissem com os nomes.
Minha idade sexual não me preocupou nunca, porque meus poderes não dependiam tanto de mim como delas, e quando querem elas sabem o como e o porquê. Hoje em dia dou risada dos rapazes de oitenta que consultam o médico assustados por causa desses sobressaltos, sem saber que nos noventa são piores, mas já não importam: são os riscos de estar vivo. Em compensação, é um triunfo da vida que a memória dos velhos se perca para as coisas que não são essenciais, mas raras vezes falhe para as que de verdade nos interessam. Cícero ilustrou isso de uma penada: Não há ancião que esqueça onde escondeu seu tesouro.
Com essas reflexões, e tantas outras, havia terminado o primeiro rascunho da crônica quando o sol de agosto explodiu entre as amendoeiras do parque e o barco fluvial do correio, atrasado uma semana por causa da seca, entrou bramando pelo canal do porto. Pensei: Aí estão chegando os meus noventa anos. Jamais saberei por quê, nem pretendo, mas foi ao conjuro daquela evocação arrasadora que decidi telefonar para Rosa Cabarcas pedindo ajuda para honrar meu aniversário com uma noite libertina. Fazia anos que estava na santa paz com meu corpo, dedicado à releitura diária dos meus clássicos e a meus programas privados de música culta, mas o desejo daquele dia foi tão urgente que me pareceu um recado de Deus. Depois do telefonema não consegui continuar escrevendo. Pendurei a rede num canto da biblioteca onde o sol não bate pela manhã, e me estendi com o peito oprimido pela ansiedade da espera.
Eu havia sido um menino mimado com uma mãe de dons múltiplos, aniquilada pela tísica aos cinqüenta anos, e com um pai formalista de quem jamais se conheceu erro algum, e que amanheceu morto em sua cama de viúvo no dia em que foi assinado o tratado da Neerlândia, que pôs término à guerra dos Mil Dias e a tantas guerras civis do século anterior. A paz mudou a cidade num sentido que não se previu nem se queria. Uma multidão de mulheres livres enriqueceu até o delírio os velhos bares da rua Ancha, que foi depois o calçadão Abello e agora é o passeio Colón, nesta cidade da minha alma tão apreciada pelos próprios e por alheios pela boa índole da sua gente e a pureza de sua luz.
Nunca me deitei com mulher alguma sem pagar, e as poucas que não eram do ofício convenci pela razão ou pela força que recebessem o dinheiro nem que fosse para jogar no lixo. Lá pelos meus vinte anos comecei a fazer um registro com o nome, a idade, o lugar, e um breve recordatório das circunstâncias e do estilo. Até os cinqüenta anos eram quinhentas e catorze mulheres com as quais eu havia estado pelo menos uma vez. Interrompi a lista quando o corpo já não dava mais para tantas e podia continuar as contas sem precisar de papel. Tinha minha ética própria. Nunca participei em farras de grupo nem em contubérnios públicos, nem compartilhei segredos nem contei uma só aventura do corpo ou da alma, pois desde jovem me dei conta de que nenhuma é impune.
A única relação estranha foi a que mantive durante anos com a fiel Damiana. Era quase uma menina, mais para forte e xucra, de palavras breves e terminantes, que se movia descalça para não me estorvar enquanto eu escrevia. Recordo que eu estava lendo La lozana andaluza na rede do corredor, e a vi por acaso inclinada no tanque com uma saia tão curta que deixava a descoberto suas coxas suculentas. Presa de uma febre irresistível levantei-a por trás, baixei suas prendas até os joelhos e avancei pelos fundos. Ai, senhor, disse ela, com um queixume lúgubre, isso não foi feito para entrar, mas para sair. Um tremor profundo percorreu seu corpo, mas se manteve firme. Humilhado por tê-la humilhado quis pagar a ela o dobro do que custavam as mais caras daquele tempo, mas não aceitou nem um tostão, e tive que aumentar seu salário com o cálculo de uma montada por mês, sempre enquanto lavava roupa e sempre pela retaguarda.
Algumas vezes pensei que aquelas contas de camas seriam uma boa base para uma lista das misérias da minha vida extraviada, e o título me caiu do céu: Memória de minhas putas tristes. Minha vida pública, em compensação, carecia de interesse: órfão de pai e mãe, solteiro sem porvir, jornalista medíocre quatro vezes finalista nos Jogos Florais de Cartagena de Índias e favorito dos caricaturistas por causa da minha feiúra exemplar. Quer dizer: uma vida perdida que havia começado mal desde a tarde em que minha mãe me levou pela mão aos dezenove anos para ver se conseguia publicar no El Diario de La Paz uma reportagem da vida escolar que eu havia escrito na aula de castelhano e retórica. Foi publicada no domingo com um preâmbulo esperançado do diretor. Passados os anos, quando soube que minha mãe tinha pago por aquela publicação e pelas sete seguintes, já era tarde para me envergonhar, pois minha crônica semanal voava com asas próprias, e além do mais eu era o domador de telegramas e crítico de música.
Desde que consegui meu diploma de bacharel com grau de excelência comecei a dar aulas de castelhano e latim em três colégios públicos ao mesmo tempo. Fui um mau professor, sem formação, sem vocação nem piedade alguma por aqueles pobres meninos que só iam à escola por ser o jeito mais fácil de escapar da tirania dos pais. A única coisa que pude fazer por eles foi mantê-los debaixo do terror de minha régua de madeira para que pelo menos levassem a lembrança do meu poema favorito: Estes, Fabio, ó dor, que vês agora, campos de solidão, desolados outeiros, foram noutro tempo a Itálica famosa. Só depois de velho fiquei sabendo, e por casualidade, do apelido malvado que os alunos me puseram pelas costas: Professor Desolado Outeiro.
Isso foi tudo que a vida me deu e não fiz nada para conseguir mais. Almoçava sozinho entre uma aula e outra, e às seis da tarde chegava na redação do jornal para caçar os sinais do espaço sideral. Às onze da noite, quando fechava a edição, começava minha vida real. Dormia no Bairro Chinês duas ou três vezes por semana, e com tão variadas companhias, que em duas ocasiões fui coroado como cliente do ano. Depois do jantar no vizinho café Roma escolhia um bordel qualquer ao acaso e entrava às escondidas pela porta dos fundos. Fazia isso por gosto, mas acabou sendo parte do meu ofício graças à ligeireza de língua dos grandes falastrões da política, que prestavam conta de seus segredos de Estado às amantes de uma noite, sem pensar que eram ouvidos pela opinião pública através dos tabiques de papelão. Foi desse jeito enfim que descobri que meu celibato inconsolável era atribuído a uma pederastia noturna que se saciava com meninos órfãos da rua do Crime. Tive a sorte de esquecer esse ponto, entre outras boas razões porque também conheci o que se dizia bem de mim e apreciei isso em sua medida e em seu valor.
Nunca tive grandes amigos, e os poucos que chegaram perto disso estão em Nova York. Quer dizer: mortos, pois é para lá que eu acho que vão as almas penadas para não digerir a verdade de sua vida passada. Desde que me aposentei tenho pouco a fazer, além de levar meus papéis ao jornal nas tardes de sexta-feira, ou então outras tarefas de pequena monta: concertos no Belas-Artes, exposições de pintura no Centro Artístico, do qual sou sócio fundador, uma ou outra conferência cívica na Sociedade de Melhorias Públicas, ou algum acontecimento grande como a temporada da divina Fábregas no Teatro Apolo. Quando jovem ia aos salões de cinema sem teto, onde tanto podíamos ser surpreendidos por um eclipse lunar como por uma pneumonia dupla por causa de algum aguaceiro desnorteado. Mais, porém, que os filmes me interessavam as pássaras da noite que se deitavam pelo preço da entrada ou davam de graça ou fiado. Pois o cinema não faz meu gênero. O culto obsceno de Shirley Temple foi a gota que transbordou o copo.
Minhas únicas viagens foram quatro aos Jogos Florais de Cartagena de Índias, antes dos meus trinta anos, e uma noite ruim na lancha a motor, convidado por Sacramento Montiel para a inauguração de um de seus bordéis em Santa Marta. Quanto à minha vida doméstica, sou de comer pouco e de gostos fáceis. Quando Damiana ficou velha não se tornou a cozinhar em casa, e minha única refeição regular desde então foi a fritada de batatas no café Roma depois do fechamento do jornal.
Assim, na véspera de meus noventa anos fiquei sem almoçar e não pude me concentrar na leitura à espera de notícias de Rosa Cabarcas. As cigarras apitavam até arrebentar no calor das duas da tarde, e as voltas do sol pelas janelas abertas me forçaram a mudar três vezes o lugar da rede. Sempre achei que pelos dias do meu aniversário estava o dia mais quente no ano, e tinha aprendido a suportar isso, mas o humor daquele dia não deu para tanto. Às quatro tentei me apaziguar com as seis suítes para cello solo de Johann Sebastian Bach, na versão definitiva de dom Pablo Casals. Acho que é o que de mais sábio existe em toda a música, mas em vez de me apaziguar como de costume me deixaram num estado da pior prostração. Adormeci com a segunda, que me parece um pouco malemolente, e no sonho misturei o queixume do cello com o de um barco triste que se foi. Quase no mesmo instante o telefone me despertou, e a voz enferrujada de Rosa Cabarcas me devolveu à vida. Você tem uma sorte do demônio, disse ela. Encontrei uma franguinha melhor do que você queria, mas tem um porém: ela tem uns catorze anos. Eu não me importo em trocar fraldas, disse a ela em tom de burla e sem entender seus motivos. Não é por você, disse ela, mas quem vai cumprir por mim os três anos de cadeia?
Ninguém, e ela menos ainda, é claro. Fazia sua colheita entre as menores de idade que se exibiam em seu armazém, e que ela iniciava e espremia até passarem a vida pior, a de putas diplomadas no bordel histórico da Negra Eufemia. Nunca tinha pago uma única multa, porque seu quintal era a arcádia da autoridade local, do governador até o último bedel da prefeitura, e não era imaginável que à dona daquilo tudo faltassem poderes para delinqüir a seu bel-prazer. Assim, seus escrúpulos de última hora só tinham como justificativa poder levar vantagem com seus favores: quanto mais puníveis, mais caros. A questão se arranjou com um aumento de dois pesos na tarifa dos serviços, e combinamos que às dez da noite eu estaria em sua casa com cinco pesos em dinheiro, e adiantados. Nem um minuto antes, pois a menina tinha que dar de comer aos irmãos menores e pôr na cama sua mãe entrevada pelo reumatismo.
Faltavam quatro horas. À medida que passavam, meu coração ia se enchendo de uma espuma ácida que me atrapalhava para respirar. Fiz um esforço estéril para pastorear o tempo com os afazeres da roupa. Nada novo, é claro, pois até Damiana diz que eu me visto com o ritual de um bispo. E me cortei com a navalha barbeira, tive que esperar que a água do chuveiro aquecida pelo sol no encanamento refrescasse, e o simples esforço de me secar com a toalha me fez suar de novo. Eu me vesti de acordo com a ventura da noite: o terno de linho branco, a camisa de listas azuis de colarinho acartolinado com goma, a gravata de seda chinesa, as botinas remoçadas com parafina e o relógio de ouro de lei com a corrente abotoada na casa da lapela. No final dobrei para dentro as barras das calças para que ninguém notasse que com a idade eu diminuíra quatro dedos.
Tenho fama de unha-de-fome porque ninguém consegue imaginar que eu seja pobre do jeito que sou se moro onde moro, e a verdade é que uma noite como aquela estava muito acima dos meus recursos. Do cofre das economias disfarçado debaixo da cama tirei dois pesos para o aluguel do quarto, quatro para a dona, três para a menina e cinco de reserva para meu jantar e outros gastos miúdos. Ou seja, os catorze pesos que o jornal me paga por um mês de crônicas dominicais. Escondi o dinheiro num bolso secreto do cinturão e me perfumei com o borrifador de Água de Florida de Lanman & Kemp-Barclay & Co. Então senti a fisgada do pânico e ao primeiro badalar das oito desci tateando as escadas nas trevas, suando de medo, e saí para a noite radiante da minha celebração.
Havia refrescado. Grupos de homens solitários discutiam futebol aos berros no passeio Colón, entre os táxis parados em fila no meio da rua. Uma banda de metais tocava uma valsa lânguida debaixo da alameda de flamboyants floridos. Uma das putinhas pobres que caçam clientes mais pobres ainda na rua dos Notários me pediu o cigarro de sempre e respondi a mesma coisa de sempre: Hoje está fazendo trinta e três anos, dois meses e dezessete dias que parei de fumar. Ao passar na frente de O Arame de Ouro me olhei nas vitrines iluminadas e não me vi como me sentia, porém mais velho e mais mal vestido.
Pouco antes das dez abordei um táxi e pedi ao chofer que me levasse ao Cemitério Universal, para que ele não ficasse sabendo aonde na verdade eu estava indo. Ele me olhou divertido pelo espelho, e disse: Não me assuste desse jeito, dom Sábio, oxalá Deus me mantenha vivo assim que nem o senhor. Descemos juntos na frente do cemitério porque ele não tinha dinheiro miúdo e tivemos que trocar no La Tumba, um botequim indigente onde os bebadinhos da madrugada choram seus mortos. Quando acertamos a conta, o motorista me disse a sério: Tome cuidado, senhor, que a casa de Rosa Cabarcas já não é nem sombra do que foi. Não pude fazer outra coisa a não ser agradecer, convencido como todo mundo de que para os choferes do passeio Colón não havia nenhum segredo debaixo do céu.
Fui adentrando um bairro de pobres que não tinha nada a ver com o que conheci nos meus tempos. Eram as mesmas ruas amplas de areias quentes, com casas de portas abertas, paredes de tábuas ásperas, tetos de sapé e pátios de cascalho. Mas sua gente havia perdido o sossego. Na maioria das casas havia as farras de sexta-feira cujos bumbos e pratos repercutiam nas entranhas. Qualquer um podia entrar por cinqüenta centavos na festa que mais gostasse, mas também podia pegar carona e entrar de contrabando. Eu caminhava ansioso de que a terra me engolisse dentro da minha fatiota de ver Deus, mas ninguém prestou atenção em mim, a não ser um mulato esquálido que cochilava sentado no portão de uma casa da vizinhança.
- Salve, doutor! — me gritou de coração —, feliz trepada!
Que mais eu podia fazer a não ser agradecer? Tive que me deter três vezes para recobrar o fôlego antes de alcançar a última ladeira. Dali vi a enorme lua de cobre que se erguia no horizonte, e uma urgência imprevista do ventre me fez temer pelo meu destino, mas passou ao largo. No final da rua, onde o bairro se transformava num bosque de árvores frutíferas, entrei no armazém de Rosa Cabarcas.
Não parecia a mesma. Havia sido a cafetina mais discreta e por isso mesmo a mais conhecida. Uma mulher corpulenta que queríamos coroar sargenta dos bombeiros, tanto pela corpulência como pela eficácia para apagar os candeeiros da paróquia. Mas a solidão tinha diminuído seu corpo, havia acanelado sua pele e aveludado sua voz com tanto engenho que parecia uma menina velha. De antes, só lhe restavam os dentes perfeitos, com um que tinha mandado forrar de ouro por coqueteria. Guardava luto fechado pelo marido morto depois de cinqüenta anos de vida comum, e o aumentou com uma espécie de boina negra pela morte do filho único que a ajudava em suas vilanias. Só lhe restavam vivos os olhos diáfanos e cruéis, e através deles me dei conta de que ela não tinha mudado de índole.
O armazém tinha uma lâmpada macilenta no teto e quase nada para vender nas prateleiras, que nem mesmo cumpriam a função de servir de disfarce para um negócio que todo mundo conhecia mas ninguém reconhecia. Rosa Cabarcas estava despachando um cliente quando entrei na ponta dos pés. Não sei se me desconheceu de verdade ou se havia fingido para manter as aparências. Sentei-me no banquinho de espera enquanto ela se desocupava e tentei reconstruí-la na memória tal como ela havia sido. Mais de duas vezes, nos tempos em que nós dois estávamos inteiros, também ela havia me livrado de meus sustos. Creio que leu meu pensamento, porque virou-se para mim e me examinou com uma intensidade alarmante. O tempo não passa em você, suspirou com tristeza. Eu quis agradá-la: Em você, passa, mas para melhor. De verdade, disse ela, até ressuscitou um pouco em você a cara de cavalo morto. Vai ver é porque mudei de pasto, respondi com picardia. Ela se animou. Pelo que lembro, você tinha um mastro de caravela. Como é que ele tem se portado? Escapei pela tangente: A única coisa diferente desde que nos vimos pela última vez é que às vezes meu rabo arde. Seu diagnóstico foi imediato: Falta de uso. Só tenho rabo para o que Deus fez, disse eu, mas na verdade ardia fazia tempo, e sempre na lua cheia. Rosa remexeu sua gaveta de alfaiate e destapou uma latinha de uma pomada verde que cheirava a linimento de arnica. Diga à menina que unte seu rabo com o dedinho, assim, disse ela movendo o dedo indicador com uma eloqüência procaz. Repliquei que graças a Deus eu ainda era capaz de me defender sem ungüentos selvagens. Ela caçoou: Ai, professor, perdoe e me deixe continuar viva. E foi cuidar de seus assuntos.
A menina estava no quarto desde as dez, me disse; era bela, limpa e bem-educada, mas estava morrendo de medo, porque uma amiga dela que escapou com um estivador de Gayra em duas horas tinha sangrado até o fim. Mas, admitiu Rosa, isso dá para entender, porque o pessoal de Gayra tem fama de fazer até as mulas cantarem. E retomou o fio: Pobrezinha, além de tudo tem de trabalhar o dia inteiro pregando botões numa fábrica. Não me pareceu que fosse um ofício tão duro. Isso é o que os homens acham, replicou ela, mas é pior que picar pedras. Além disso, me confessou que tinha dado à menina uma beberagem de valeriana com brometo, e que ela estava dormindo. Tive medo que a compaixão fosse outra artimanha para aumentar o preço, mas não, disse ela, minha palavra é de ouro. Com regras fixas: cada coisa paga por separado, em dinheiro vivo e por antecipado. E assim foi.
Segui-a através do pátio, enternecido pela murchidão da sua pele, e pela maneira com que mal caminhava, com as pernas inchadas dentro das meias de algodão ordinário. A lua cheia estava chegando ao centro do céu e o mundo parecia submerso em águas verdes. Perto do armazém havia um cobertiço de palma para as farras da administração pública, com numerosos tamboretes de couro e redes dependuradas nas vigas. Atrás do quintal, onde começava o bosque de árvores frutíferas, havia uma galeria de seis alcovas de adobe sem emboçar, com janelas de tela para os pernilongos. A única ocupada estava à meia-luz, e Toña la Negra cantava no rádio uma canção de amores malogrados. Rosa Cabarcas tomou fôlego: O bolero é a vida. Eu estava de acordo, mas até hoje não me atrevi a escrever isso. Ela empurrou a porta, entrou um instante e tornou a sair. Continua dormindo, disse. Você faria bem em deixá-la descansar tudo o que o corpo pedir, sua noite é mais longa que a dela. Eu estava atordoado: O que você acha que eu devo fazer? Você é que sabe, disse ela com uma placidez fora de lugar, não é à toa que é sábio. Deu meia-volta e me deixou sozinho com o terror.
Não havia escapatória. Entrei no quarto com o coração desvairado e vi a menina adormecida, nua e desamparada na enorme cama de aluguel, tal e como sua mãe a tinha parido. Jazia meio de lado, de cara para a porta, iluminada pelo lustre com uma luz intensa que não perdoava detalhe algum. Sentei-me para contemplá-la da beira da cama com um feitiço dos cinco sentidos. Era morena e morna. Tinha sido submetida a um regime de higiene e embelezamento que não descuidou nem os pêlos incipientes de seu púbis. Haviam cacheado seus cabelos e tinha nas unhas das mãos e dos pés um esmalte natural, mas a pele cor de melaço parecia áspera e maltratada. Os seios recém-nascidos ainda pareciam de menino, mas viam-se urgidos por uma energia secreta a ponto de explodir. O melhor de seu corpo eram os pés grandes de passos sigilosos com dedos longos e sensíveis como se fossem de outras mãos. Estava ensopada num suor fosforescente apesar do ventilador, e o calor se tornava insuportável à medida que a noite avançava. Era impossível imaginar como seria a cara lambuzada de cores, a espessa crosta de pó-de-arroz com dois remendos de carmim nas bochechas, as pestanas postiças, as sobrancelhas e pálpebras que pareciam pintadas com tição, e os lábios aumentados com um verniz de chocolate. Mas nem os trapos nem as tinturas eram suficientes para dissimular seu gênio: o nariz altivo, as sobrancelhas encontradas, os lábios intensos. Pensei: Um meigo touro de briga.
Às onze fui aos meus assuntos de rotina no banheiro, onde estava sua roupa de pobre dobrada sobre uma cadeira com um esmero de rica: um vestido de algodãozinho barato com borboletas estampadas, umas calcinhas amarelas de chita e umas sandálias de corda trançada. Em cima da roupa havia uma pulseira de miçanga e uma correntinha muito fina com a medalha da Virgem. Na beira da pia, uma bolsinha de mão com um batom, um estojo de ruge, uma chave e umas moedas soltas. Tudo tão barato e envilecido pelo uso que não consegui imaginar ninguém tão pobre como ela.
Me despi e dispus as peças de roupa do melhor jeito que pude no cabide para não estropiar a seda da camisa e o linho bem-passado. Urinei na privada sentado e como me ensinou, desde menino, Florina de Dios, para que não molhasse a beira do vaso, e ainda, modéstia à parte, com um jorro imediato e contínuo de potro bravio. Antes de sair cheguei perto do espelho da pia. O cavalo que me olhou do outro lado não estava morto mas lúgubre, e tinha uma papada de Papa, as pálpebras inchadas, e mirradas as crinas que haviam sido minha melena de músico.
- Merda — eu disse a ele —, o que é que eu posso fazer se você não gosta de mim?
Tratando de não despertá-la, sentei-me nu na cama com os olhos já acostumados aos enganos de luz avermelhada, e revisei-a palmo a palmo. Deslizei a ponta do dedo indicador ao longo de sua nuca empapada e ela inteira estremeceu por dentro como um acorde de harpa, virou-se para mim com um grunhido e me envolveu no clima de seu hálito ácido. Apertei seu nariz com o polegar e o indicador, e ela se sacudiu, afastou a cabeça e me deu as costas sem despertar. Tentei separar suas pernas com meu joelho por causa de uma tentação imprevista. Nas duas primeiras tentativas ela se opôs com as coxas tensas. Cantei em seu ouvido: A cama de Delgadina de anjos está rodeada. Relaxou um pouco. Uma corrente cálida subiu pelas minhas veias, e meu lento animal aposentado despertou de seu longo sono.
Delgadina, minha alma, supliquei ansioso. Delgadina. Lançou um gemido lúgubre, escapou de minhas coxas, me deu as costas e enroscou-se como um caracol em sua concha. A poção de valeriana deve ser tão eficaz para mim como para ela, porque não aconteceu nada, nem com ela nem com ninguém. Mas não me importei. Perguntei-me de que adiantaria despertá-la, humilhado e triste do jeito que me sentia, e frio que nem uma pescada amarela.
Nítidas, inelutáveis, soaram então as badaladas das doze da noite, e começou a madrugada do 29 de agosto, dia do Martírio de São João Batista. Alguém chorava aos gritos na rua e ninguém dava confiança. Rezei por ele, se fizesse falta, e também por mim, em ação de graças pelos benefícios recebidos: Que ninguém se engane, não, pensando que o que espera haverá de durar mais do que durou o que viu. A menina gemeu em sonhos, e também rezei por ela: Pois eis que tudo haverá de passar dessa maneira. Depois apaguei o rádio e a luz para dormir.
Acordei de madrugada sem me lembrar onde estava. A menina continuava dormindo de costas para mim em posição fetal. Tive a sensação indefinida de que havia sentido a maneira como ela se levantava na escuridão e de ter ouvido a descarga do banheiro, mas bem que podia ter sido um sonho. Foi algo novo para mim. Ignorava as manhas da sedução e sempre tinha escolhido ao acaso as noivas de uma noite, mais pelo preço que pelos encantos, e fazíamos amores sem amor, meio vestidos na maior parte das vezes e sempre na escuridão para imaginar-nos melhores. Naquela noite descobri o prazer inverossímil de contemplar, sem as angústias do desejo e os estorvos do pudor, o corpo de uma mulher adormecida.
Levantei-me às cinco, inquieto porque minha crônica dominical deveria estar na mesa da redação antes do meio-dia. Fiz minha deposição pontual, ainda com os ardores da lua cheia, e quando soltei a corrente da água senti que meus rancores do passado foram-se embora pelos canos. Quando voltei fresco e vestido ao dormitório, a menina dormia de barriga para cima na luz conciliadora do amanhecer, atravessada lado a lado na cama, com os braços abertos em cruz e dona absoluta da sua virgindade. Que Deus a conserve, disse a ela. Todo dinheiro que me sobrava, o dela e o meu, pus no travesseiro, e me despedi para sempre e nunca mais com um beijo em sua testa. A casa, como todo bordel ao amanhecer, era a coisa mais parecida com o paraíso. Saí pelo portão do pomar para não encontrar ninguém. Debaixo do sol abrasador da rua comecei a sentir o peso dos meus noventa anos, e a contar minuto a minuto os minutos das noites que me faltavam para morrer.