A Mulher Vampiro
de E. T. A. Hoffmann
O conde Hipólito tinha voltado das suas extensas viagens, a fim de tomar posse da rica herança do pai, que morrera pouco tempo antes. O solar da família era situado numa das mais pitorescas regiões, e as rendas do patrimônio permitiam embelezá-lo custosamente. O conde resolveu reproduzir ali tudo o que durante as suas viagens o impressionara vivamente pela magnificência e bom gosto. Chamou uma nuvem de artistas e de operários, que começaram logo a embelezar, ou para melhor dizer, a reconstruir o castelo, rasgando ao mesmo tempo um parque do mais grandioso estilo, onde se encravaram, como dependências, a igreja paroquial e o cemitério. Possuidor dos conhecimentos necessários, o conde dirigiu em pessoa os trabalhos e entregou-se completamente a esta ocupação.
E assim decorreu um ano, sem que lhe passasse pela idéia ir brilhar, como lhe aconselhava um tio velho, na sociedade da capital, sob os olhares das meninas casadoiras, afim de desposar a melhor, a mais bela e a mais nobre de todas.
Estava, uma manhã, sentado à mesa desenhando o plano duma nova construção, quando lhe anunciaram uma parente de seu pai. Ao ouvir o nome da baronesa, Hipólito recordou-se logo de que o pai se lhe referia sempre com a mais profunda indignação, de mistura com certo receio. Sem explicar o perigo que havia na convivência, afastara sempre dela as pessoas que lhe eram caras. Se teimavam em pedir-lhe explicações, o conde respondia que havia coisas em que era melhor não falar.
O certo é que na capital circulavam certos boatos a respeito de um processo criminal muito singular, em que a baronesa estivera envolvida e em conseqüência do qual se havia separado do marido e fora obrigada a retirar-se para o campo. Todavia o príncipe perdoara-lhe.
Hipólito experimentou uma sensação desagradável à aproximação da pessoa detestada pelo pai, apesar de desconhecer as razões dessa aversão. Os deveres da hospitalidade, que se respeitam principalmente no campo, impunham-lhe, porém, a necessidade de receber a importuna visita.
A baronesa estava longe de ser feia, mas nunca pessoa alguma produzira no conde repugnância tão manifesta.
Ao entrar, a baronesa cravou no dono da casa um olhar incendido, mas logo baixou os olhos, e pediu-lhe desculpa da sua visita nos termos mais aviltantes de rasteira humildade.
Lastimou que o pai do conde, possuído das mais extraordinárias prevenções inspiradas maldosamente pelos seus inimigos, a tivesse odiado de maneira tão acirrada. Apesar de ter caído em profunda miséria, chegando quase a padecer de fome, o conde nunca a socorrera. Ia agora refugiar-se numa cidade da província, tendo acabado de receber inesperadamente uma pequena quantia. Rematou dizendo que não pudera resistir ao desejo de ver o filho do homem, a cujo ódio irreconciliável sempre correspondera com profunda estima.
Estas palavras, pronunciadas com o acento tocante da verdade, conseguiram comover o conde, para o que também muito contribuiu a presença da graciosa e encantadora menina que acompanhava a baronesa. Calou-se esta finalmente, mas o conde pareceu não reparar em tal, e ficou silencioso e contrafeito. A baronesa pediu-lhe então desculpa duma falta em que o embaraço a fizera incorrer e apresentou-lhe a sua filha Aurélia.
Corando como um rapaz dominado por suave embriaguez, o conde suplicou-lhe que lhe permitisse reparar os agravos do pai, devidos certamente a uma inadvertência, oferecendo-lhe hospitalidade no castelo. Ao certificar-lhe as suas boas disposições, pegou-lhe na mão e estremeceu de terror. Sentiu-lhe os dedos gelados, sem vida, ao mesmo tempo que o vulto descarnado da baronesa, que fixava nele uns olhos embaciados, tomava o aspecto dum cadáver vestido de brocado.
- Valha-me Deus! Que contrariedade! E logo nesta ocasião! - exclamou Aurélia.
E com voz terna, que se insinuava na alma explicou que a sua desgraçada mãe tinha às vezes ataques de catalepsia, mas que estas sincopes passavam de pronto sem auxílio de remédios.
O conde retirou com dificuldade a mão que a baronesa apertava nervosamente, e, no arroubamento dum amor nascente, pegou na de Aurélia cobrindo-a de beijos.
Chegara à idade madura, mas experimentava agora pela primeira vez uma forte paixão, tornando-se-lhe impossível dissimular o que sentia, tanto mais que era animado pela graça encantadora com que Aurélia lhe acolhia as amabilidades.
A baronesa voltou a si passados alguns minutos, sem se recordar do que lhe tinha acontecido. Afirmou ao conde que se sentia honrada com aquele convite, e que este procedimento lhe apagava para sempre da lembrança a injusta conduta do pai de Hipólito.
Foi assim que o viver íntimo do fidalgo mudou subitamente. Chegava a crer que um favor especial do destino lhe trouxera a única pessoa que podia, como esposa, dar-lhe a suprema ventura.
A velha observou sempre a mesma conduta. Silenciosa, séria, reservada, deixava a propósito transparecer uma alma cheia de paz e de bons sentimentos. O conde acostumara-se àquele rosto singularmente pálido e enrugado, e aquela aparência de espectro, e atribuía tudo à má saúde da sua hospeda e ao gosto que ela tinha por sombrios passatempos. Com efeito os criados contaram-lhe que a baronesa dava passeios noturnos pelo parque, para os lados do cemitério.
Sentiu-se envergonhado por se ter deixado arrastar, no começo, pelas prevenções do pai, e o tio velho despendeu em vão a inesgotável facúndia, exortando-o a renunciar ao sentimento que o dominava e a relações que um dia poderiam desgraçá-lo. Convencido de que Aurélia o amava, pediu-a em casamento. É fácil de imaginar o quanto a baronesa ficou encantada com esta proposta, que a arrancava à miséria e lhe assegurava uma existência feliz. A palidez desaparecera do rosto de Aurélia anuviado por uma expressão de invencível pesar, e as delícias do amor deram-lhe aos olhos suave brilho e às faces frescura e colorido.
Um acontecimento funesto retardou, porém, o cumprimento dos desejos do conde. Na manhã do dia da boda, encontraram a baronesa estendida e sem movimento no parque, a pouca distância do cemitério, com o rosto contra o chão. O conde acabava de levantar-se e pusera-se à janela, pensando com embriaguez na felicidade que ia gozar, quando trouxeram a baronesa para o castelo. Pensou que se tratava dum ataque cataléptico, como era costume, mas todos os meios empregados para a chamar à vida foram inúteis. Estava morta!
Aurélia não se entregou a violenta angústia. Parecia consternada e atônita por causa deste imprevisto golpe do destino, mas não verteu uma única lágrima.
O conde, temendo melindrá-la, observou-lhe, com precaução e delicadeza infinitas, que era necessário pôr de parte as conveniências e apressar o mais possível o casamento não obstante a morte da baronesa, afim de evitar maiores transtornos. Ao ouvi-lo, Aurélia deitou-lhe os braços ao pescoço e, derramando muitas lágrimas, exclamou:
- Sim, pela minha salvação, consinto!
O conde atribuiu esta exaltação à desconsoladora idéia de que, órfã e sem asilo, Aurélia não tinha para onde ir e que o decoro lhe não permitia ficar no castelo. Teve o cuidado de colocar junto de Aurélia, até ao dia fixado para a cerimónia, uma aia, matrona respeitável.
No entanto Aurélia estava numa agitação singular, proveniente mais da angústia cruciante que a perseguia incessantemente, do que do desgosto causado pela morte da mãe.
Um dia, quando conversava amorosamente com o conde, ergueu-se de súbito, pálida, num mortal terror, e banhada em lágrimas refugiou-se-lhe nos braços como se quisesse fugir a um perseguidor invisível. Exclamou: - Não, nunca, nunca!
Depois do casamento, que não foi perturbado por nenhum contratempo, é que a perturbação e a ansiedade de Aurélia pareceram dissiparem-se.
Como bem se compreende, o conde suspeitou de que no coração de sua esposa existisse alguma causa desconhecida, que a atormentava. Contudo, foi bastante delicado para não a interrogar enquanto a viu aflita, mas depois, com grandes rodeios, perguntou-lhe o que produzira aquela extraordinária disposição de espírito. Aurélia significou-lhe que ia com vivo prazer patentear o coração ao esposo da sua alma. O conde, surpreendido, soube que a perturbação de Aurélia provinha do procedimento criminoso da mãe.
- Há nada mais horrível, perguntou ela, do que vermo-nos obrigados a aborrecer, e odiar a nossa própria mãe?
Provaram estas palavras que o pai e o tio do conde não se haviam enganado, e que a baronesa captara este último por meio de requintada hipocrisia. O castelão nem tentou ocultar que a morte da baronesa lhe parecia mercê da Providência, mas Aurélia declarou-lhe que fora precisamente a morte da mãe que a enchera de pressentimentos sombrios, e que o receio de que não podera ainda triunfar, lhe dizia que a mãe havia de ressuscitar algum dia, para vir precipitá-la num abismo, depois de arrancá-la dos braços do seu amado esposo.
E falou das recordações que tinha conservado da sua infância. Eram estas.
Um dia, ao acordar, achou a casa em completa desordem. Abriam-se e fechavam-se as portas com estrondo, ouviam-se gritos soltados por vozes desconhecidas. Quando o sossego se restabeleceu, a ama de Aurélia pegou-lhe ao colo e levou-a para uma vasta sala onde estava muita gente. Sobre uma grande mesa, no meio da casa, viu estendido um homem, que brincava sempre muito com ela e lhe dava bolos, e a quem a pequena chamava papá. Estendeu-lhe os braços para o beijar, mas aqueles lábios, que tinha conhecido quentes e cheios de vida, estavam gelados. Desatou a chorar sem saber porquê. Dali a ama levou-a para uma casa desconhecida, onde ficou por muitos dias. Passado tempo a mãe foi busca-la de carruagem e levou-a para a capital.
Completava Aurélia dezasseis anos, quando se apresentou em casa da baronesa um homem a quem ela recebeu com alegria e familiaridade, como antigo conhecimento. Multiplicaram-se as visitas e dentro em pouco operou-se considerável mudança na vida da baronesa. Em vez de morar numa água-furtada, de vestir pobremente, de passar mal, foi habitar uma casa esplêndida no melhor bairro da cidade, passou a ter fatos magníficos, e mesa lauta, sendo seu inseparável comensal o desconhecido, e, finalmente, não faltava a nenhum divertimento público.
Só Aurélia não participava da melhoria, que, segundo era fácil de conhecer, provinha do desconhecido. Não vestia melhor do que dantes e estava sempre fechada no quarto, ao passo que a mãe ia às festas com o tal homem.
Este, apesar de já ter ultrapassado os quarenta anos, parecia muito mais novo. Bonito de semblante e esbelto de figura, nem por isso deixava de repugnar a Aurélia, porque às vezes era ordinário e desastrado de maneiras, contradizendo assim as pretensões que tinha a homem amável e afidalgado. Por este tempo, começou a deitar à rapariguinha certos olhares, que lhe infundiam inexplicável horror.
Até então a mãe nunca lhe falara a respeito dele. Limitara-se a dizer-lhe o seu nome e que o barão era um parente afastado, possuidor de colossal fortuna. Outra vez, gabou-lhe os dotes físicos e perguntou à filha que tal o achava, e, como esta não ocultasse a repugnância que tinha por ele, acoimou-a de tola e dardejou-lhe um olhar de meter medo, mas passou depois a tratá-la com agrado, deu-lhe bons vestidos, e levou-a aos divertimentos. O intitulado barão manifestava tanta solicitude e um tal desejo de agradar a Aurélia, que se lhe tornou verdadeiramente insuportável, tanto mais que ela um dia presenciou, cheia de mágoa, uma cena escandalosa, que lhe tirou todas as dúvidas acerca das relações da mãe com o barão. Este, meio ébrio, apertou-a nos braços, mostrando-lhe claramente as suas intenções abomináveis. O desespero deu forças à donzela, que repeliu o miserável com vigor, fazendo-o cair para trás, e correu a fechar-se no quarto.
A baronesa declarou à filha, com frieza e terminantemente, que se deixasse de esquisitices fora de propósito, pois era o titular quem fazia todas as despesas da casa. Como não estava para recair na miséria de outros tempos, aconselhou-a a ceder à vontade do barão, o qual, em caso de recusa, já ameaçara deixá-las. Longe de se impressionar com as lágrimas e queixumes de Aurélia, a velha recebeu-os às gargalhadas e com zombaria provocante. Gabou-lhe impudicamente uma ligação, que lhe ofereceria todas as voluptuosidades mundanas, servindo-se de termos tão abomináveis e desbragados que Aurélia ficou aterrorizada.
Julgando-se perdida, só viu recurso na fuga imediata. Achou meio de apanhar a chave da porta da rua, e à meia noite, depois de fazer uma trouxa com as coisas mais indispensáveis, encaminhou-se para a antecâmara, que se achava debilmente alumiada. Julgava que a mãe estaria dormindo e ia já para sair, quando alguém subiu precipitadamente a escada e empurrou a porta. Soltos os cabelos grisalhos e vestida com uma camisola suja, que deixava a descoberto os braços e o peito, a baronesa entrou na antecâmara e foi cair aos pés de Aurélia. O suposto barão perseguia-a, armado com um bordão nodoso, e bradando:
- Espera, filha maldita de Satanás, bruxa do inferno, espera que já vou dar-te a refeição de núpcias!
E, arrastando-a pelos cabelos para o meio da casa, começou a maltratá-la cruelmente, espancando-a com o bordão.
A baronesa desatou a gritar desapoderadamente, e Aurélia, quase desfalecida, abriu a vidraça e clamou por socorro. Por acaso ia passando uma patrulha policial e acudiu logo.
- Prendam-no! - bradou aos soldados a baronesa, louca de aflição e de raiva. Prendam-no! Olhem-lhe para o ombro, que está a descoberto! É Urian! Assim que ela pronunciou este nome, o sargento comandante da patrulha soltou um grito e disse:
- Olá! Apanhei-te finalmente!
Os guardas agarraram o desconhecido e levaram-no, a despeito da resistência que empregava para desenvencilhar-se.
Não obstante a violência do que se tinha passado, a baronesa percebeu o que a filha estivera prestes a fazer. Agarrou-a brutalmente por um braço, empurrou-a para o quarto e fechou a porta à chave, sem dizer palavra.
No dia seguinte saiu e só voltou tarde de noite. Entretanto Aurélia, ali encerrada não viu nem ouviu pessoa alguma, e padeceu as torturas da fome e da sede. Nos dias seguintes não recebeu muito melhor tratamento. A mãe deitava-lhe por vezes uns olhos cintilantes de cólera e parecia meditar qualquer projeto sinistro. Afinal recebeu, certa noite, uma carta que pareceu alegrá-la, e disse a Aurélia:
- Foste tu, criatura disparatada, a causa de tudo isto, mas agora, felizmente, tudo vai bem e Deus queira que evites o terrível castigo, que o demónio te reservava.
Dali por diante tornou-se mais complacente, e Aurélia, que desde que Urian se fora já não pensava em fugir, passou a gozar de mais ampla liberdade. Passado tempo, estando sozinha, sentada no seu quarto, ouviu um grande barulho na rua.
A criada de quarto entrou precipitadamente e disse-lhe que a polícia levava preso o filho do carrasco de **. O facínora, acusado do crime de roubo à mão armada, fôra, tempos antes marcado a ferro em brasa e era levado para a cadeia quando conseguiu fugir à escolta. Desta vez não lograria escapar, certamente.
Aurélia teve um sinistro pressentimento e correu à janela. Adivinhara. Era o suposto barão que ia passando algemado e amarrado a uma carroça. Transferiam-no para outra prisão, a fim de cumprir a pena a que o tinham condenado. Ao ser alvejada pelo furioso olhar que o malvado ergueu para ela, ao mesmo tempo que lhe fazia um gesto de ameaça, Aurélia sentiu-se esmorecer e foi cair numa poltrona.
A baronesa ficava muito tempo fora de casa e deixava a filha ao abandono, pensando tristemente nas desventuras que ainda lhe estariam iminentes. A criada de quarto entrara para o serviço depois da cena noturna, e, sabendo que o ladrão tivera relações íntimas com a ama, disse um dia a Aurélia que lastimava sinceramente a senhora baronesa, por ter sido enganada tão indignamente por aquele infame. Aurélia bem sabia o que havia de pensar a este respeito. Parecia-lhe impossível que os guardas, que tinham prendido Urian em casa da baronesa, não ficassem cientes das verdadeiras relações que existiam entre ambos, pois que ela lhes dissera o nome do criminoso e indicara o sinal infamante que ele tinha no ombro. Segundo dizia a criada nas suas palavras ambíguas, falava-se muito àquele respeito. Andava de boca em boca a atoarda de que a justiça fizera uma severa sindicância e que ameaçara a baronesa com a prisão, porque o filho do carrasco tinha revelado casos verdadeiramente extraordinários.
A pobre Aurélia era obrigada a reconhecer a depravação da mãe, visto que, depois daquele terrível acontecimento ela continuava ainda a residir na capital.
A baronesa viu-se enfim reduzida à necessidade de sair de uma cidade onde estava exposta a infames suspeitas, aliás muito bem fundadas, e de fugir para lugar distante. Durante esta viagem é que tinha ido ter ao castelo do conde.
Aurélia considerava-se sumamente venturosa e ao abrigo de receios, mas qual não foi o seu espanto quando, num dia em que manifestava à mãe a alegria que o céu lhe concedera, esta, com os olhos cintilantes, exclamou desabridamente:
- Foste a causa da minha desgraça, criatura abjecta e maldita; mas ainda que a morte me leve repentinamente, a vingança virá surpreender-te no meio da tua imaginária felicidade. É nestes acessos nervosos, cuja origem remonta ao teu nascimento, que os artifícios de Satanás...
A mulher do conde calou-se de repente, e, abraçando-se ao marido, pediu-lhe que a dispensasse de repetir as palavras que a mãe pronunciara numa crise de furor insensato. Sentia o coração esfacelar-se, ao recordar as medonhas ameaças daquela possessa do demónio, ameaças que excediam todos os horrores imagináveis. O conde consolou a esposa o melhor que pôde, sem contudo esquivar-se a ter medo.
Quando sossegou um pouco mais, não deixou de reconhecer que os crimes da baronesa, apesar de ela já ter falecido, haviam lançado uma sombra funesta numa existência que ele futurará cheia de felicidade.
Passado pouco tempo, Aurélia foi mudando sensivelmente. A palidez do rosto e o olhar extinto pareciam indicar doença, mas ao mesmo tempo os seus modos extraordinários e inquietos faziam suspeitar novo mistério. Afastava-se de todos, até do marido; fechava-se no quarto ou buscava os sítios mais solitários do parque; quando aparecia, trazia os olhos vermelhos de chorar, o rosto desfigurado, denunciando o pesar que a devorava.
Em vão o conde se esforçou por indagar as causas que punham a mulher naquele estado. Aurélia caiu em profundo abatimento, de que saiu tão somente depois de consultar uma celebridade médica.
O homem de ciência foi de parecer que a grande irritabilidade nervosa da condessa e os seus incômodos de saúde podiam fazer conceber a esperança de que ia ter fruto aquele casamento venturoso. Um dia, durante o jantar, aludiu ao estado de Aurélia. Esta, a princípio, não deu atenção à conversa do doutor com o conde, mas aplicou depois o ouvido, quando ouviu falar nos singulares caprichos que as mulheres tinham quando grávidas, e a que não podiam resistir sem prejuízo da sua saúde e até da saúde do filho. Fez então ao médico perguntas sobre perguntas, e este não se cansou de lhe citar muitos fatos, alguns altamente burlescos.
- Contudo, acrescentou ele, há também exemplos de desejos desregrados, que levaram diversas mulheres a ações verdadeiramente horríveis. Por exemplo, a mulher dum ferreiro sentia irresistível desejo de comer carne do marido, fez esforços baldados para se dominar, mas um dia em que o viu entrar em casa embriagado, atirou-se a ele com uma faca, e feriu-o tão cruelmente, que o desgraçado expirou poucas horas depois.
Mal o doutor acabava de pronunciar estas palavras, a condessa desmaiou, e as convulsões que se seguiram ao desmaio acalmaram-se com grande dificuldade. O médico reconheceu que andara mal contando semelhante aventura na presença duma senhora tão impressionável.
Pareceu, todavia, que esta crise tivera salutar influência no estado da condessa, dando-lhe algum sossego, mas pouco depois caía ela novamente num acesso de profunda melancolia.
Brilhavam-lhe os olhos com estranho fulgor e o rosto cobria-se-lhe de palidez mortal, sempre crescente. O conde tornou a inquietar-se com a saúde da esposa. Havia no seu estado uma coisa inexplicável: não tomava o mínimo alimento, manifestando invencível horror por todas as iguarias, especialmente pela carne. Quando se servia qualquer prato desta substância, era obrigada a levantar-se da mesa, dando evidentes sinais de nojo.
Foi improfícua toda a ciência do médico, porque Aurélia não quis nunca tocar em remédios, apesar das súplicas do marido.
Passaram-se semanas e meses sem que a condessa tomasse alimento algum. O mistério continuava impenetrável e o médico era de opinião que havia ali qualquer coisa que frustrava o saber humano. Afinal despediu-se, apresentando um vago pretexto, mas o conde percebeu claramente que o estado da esposa parecera muito perigoso e enigmático ao hábil clínico e que ele não quisera tratar por mais tempo duma inexplicável doença, que reputava absolutamente impossível de curar.
Imaginem-se as desagradáveis disposições em que estaria o infeliz. A desgraça, porém, ainda havia de ir mais longe. Um criado velho aproveitou um momento, em que o encontrou sozinho, para o avisar de que a condessa saía todas as noites do castelo e recolhia de madrugada. O conde estremeceu e lembrou-se de que, havia tempos, ao soar a meia noite, se apossava dele uma extraordinária sonolência. Atribuiu-a a qualquer narcótico, que a condessa lhe ministrasse sem ele dar por isso, para poder sair clandestinamente do quarto de cama, que tinham em comum infringindo o estabelecido na sua classe. Aguilhoado pelas mais terríveis suspeitas, Hipólito recordou-se da sogra e do espírito mau de que ela estivera possuída, e que talvez houvesse passado para a filha. Lembrou-se também do filho do carrasco e suspeitou de qualquer ligação adúltera.
A noite seguinte ia desvendar-lhe o mistério abominável, causa única do estado singular de Aurélia.
Tinha ela por hábito ir deitar-se depois de fazer o chá, que só o conde bebia. Teve este o cuidado de não o tomar naquela noite, meteu-se na cama, leu como de costume, e não sentiu a sonolência habitual. Ainda assim, deixou cair a cabeça no travesseiro e fingiu que dormia profundamente. A condessa levantou-se então, sem fazer o mínimo ruído, aproximou uma luz do rosto do marido, examinou-o por momentos, e saiu devagarinho do quarto. Todo a tremer, o conde ergueu-se, embuçou-se numa capa e seguiu a mulher cautelosamente. Esta já ia longe, mas como fazia luar, avistava-se distintamente o seu vestido branco. Atravessou o parque e dirigiu-se para o cemitério, desaparecendo por trás do muro. Hipólito segui-a, quase de corrida; achou aberta a porta e entrou.
Viu à claridade do luar um espectáculo medonho.
A curta distância, aparições hediondas acocoravam-se no chão, formando círculo. Eram velhas seminuas, de cabelos desgrenhados, dilacerando com os dentes, como feras, o cadáver dum homem.
E Aurélia estava no meio delas!... Com que pungente angústia e profundo horror o desgraçado fugiu àquela cena infernal! Correu ao acaso pelas alas do parque, e só caiu em si quando, de madrugada, se encontrou em frente da porta do castelo. Subiu rápida e maquinalmente a escadaria, atravessou as salas e entrou no quarto de cama. A condessa parecia dormir serenamente. Tanto não fora sonho ela sair do castelo, que estava ainda húmida do orvalho a capa. Ainda assim tentou persuadir-se de que tinha sido joguete duma alucinação.
Sem esperar que a esposa despertasse, foi dar um passeio a cavalo. A beleza da manhã, os aromas dos bosques, o gorjeio das aves fizeram-lhe esquecer os fantasmas noturnos.
Voltou mais tranqüilo ao castelo e sentou-se à mesa com a mulher. Quando, porém, serviam um prato de carne cosida e a condessa quis retirar-se mostrando repugnância, o conde reconheceu a realidade dos fatos de que fora testemunha, e exclamou com violência:
- Ah! Mulher abominável e diabólica! Bem sei de que provém a tua aversão pelo comer dos homens. É nas sepulturas que te vais banquetear! Mal ouviu estas palavras, Aurélia atirou-se a ele rugindo, e mordeu-o no peito, com a fúria duma hiena. O marido repeliu violentamente a possessa, que expirou no meio de atrozes convulsões. Veio a enlouquecer o desgraçado.
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