6/30/2009
Ando
6/22/2009
O atum
(aviso à navegação: este texto foi escrito em Novembro de 2008, pelo que algumas passagens já se encontram desactualizadas)
Se há coisa com que a maior parte dos seres humanos tem dificuldade em lidar é com a rejeição. Não importa se a rejeição é real ou não, o que importa é que se sente rejeitado. E como se sente rejeitado, reaje, quer essa reacção seja enfiar-se para um canto remoendo todos os complexos da sua vida presente passada e futura, ou espernear alto e bom som mostrando o seu (res)sentimento e expondo assim um dos aspectos mais frágeis mas mais democráticos da condição que todos partilhamos.
E se se sente rejeitado, é porque somos todos protagonistas do nosso próprio filme. Por mais modestos e discretos que possamos ser, o mundo gira à nossa volta, porque somos o centro do nosso mundo. Nada mais óbvio. E quem disser o contrário é porque mente. Agora mesmo, entre os meus inúmeros e incontáveis, haverá certamente (mas é que de certezinha absoluta) quem esteja neste preciso instante a pensar: "Isto é comigo". Não importa o motivo. A verdade é que isto não é contigo. Não, não é. A verdade é que nem me lembrei de ti: outra questão melindrosa para a maior parte de nós. Para alguns será ainda pior. Não existir face ao outro. Os brasucas dizem, com alguma piada: "Falem mal, mas falem de mim!" Outra vez o protagonista a falar. Ser rejeitado implica que os outros combinaram todos qualquer coisa e que deliberadamente me deixaram de fora. Outra coisa é terem-se pura e simplesmente esquecido de mim. Mas não era da sensação de ser ignorado que queria falar aqui hoje. Vinha, sim, falar de rejeição. Algo próximo, sim. Por vezes coincidente até. Mas não igual. Porque na rejeição existe uma carga negativa, enquanto que a sensação de ser ignorado implica uma carga neutra. Digamos que no último caso seríamos um neutrão - o que não deixa de ser uma coisa com algum poder, uma vez que em tempos até fabricaram uma bomba com eles, a bomba de neutrões. Enquanto que no primeiro seríamos um electrão - e como toda a gente sabe não existe nada mais insignificante que um electrão*, deslocando-se aleatoriamente em torno de um núcleo, que invariavelmente é aquela gaja loira, alta e vistosa, que não tem um neurónio em contacto com outro dentro do cérebro e que afirma a pés juntos que a Rússia é visivel a olho nu a partir do Alasca ou wathever. Ela é que é a presidente da junta. Nós somos um simples electrão. Sermos rejeitados, ou acharmos que fomos, o que no nosso próprio filme, que vemos e revemos sentados sozinhos no sofá da sala enquanto toda a gente dorme - ou, pior ainda, enquanto toda a gente vê o outro filme, aquele dos óscares de que todos falam mas que ninguém nos convidou para ver - o que no nosso próprio filme vai dar no mesmo, é, provavelmente, das piores coisinhas que podem acontecer-nos, para além, claro, de sermos apanhados pelo vizinho de cima a pôr o lixo no contentor de pantufas e t-shirt rota. Aquela sensação de termos sido postos de parte. De não termos, para outra pessoa, a importância que esta tem para nós. De termos sido desvalorizados, tipo taxa euribor depois de uma injecção de capital. Existe em cada um de nós um adolescente borbulhento, de cabelo oleoso e óculos de fundo de garrafa. Um Adrian Mole, sentindo-se como "um atum nadando num mar de descontentamento", como tão bem exprimia este anti-herói daqueles de nós que tiveram 13 anos nos anos oitenta (sim, escusam de me lembrar que isso é uma espécie em vias de extinção, até porque 30% estão presos por tráfico e consumo de estupefacientes, um terço anda às voltas a tentar determinar a sua sexualidade, outro ainda não saíu de casa dos pais e os que sobram estão no governo sendo ainda que cerca de 10% reúnem todas as condições acima descritas mas, como diria a Teresa Guilherme, isso agora não interessa nada menina, e aliás para falar verdade já não sei bem aquilo que interessa agora mas também verdade seja que não estou sozinha, sou eu, a bancada parlamentar do PS, o Nuno Santos, o José Manuel Fernandes, o ... ah, espera! Falávamos de rejeição e não de inconsequência, portanto os meninos terão de ficar para outra posta, ok? Sei que me perdoarão e não se sentirão puto rejeitados até porque nem se lembram que eu existo mas, não sei porquê, estou-me rigorosamente a cagar, o que não deixa de ser estranho porque tenho grandes dificuldade em lidar com a sensação de ser ignorada o que, como já expliquei anteriormente, é parecido, mas não igual a ser rejeitado, mas adiante, que o tempo ruge, como dizia o outro, e estes senhores têm de se ir embora, isto se a esta hora não foram já).
E se se sente rejeitado é provavelmente porque não presta. e aqui entra em jogo a outra variável da equação: a insegurança/culpa. Porque, afinal de contas vai tudo dar no mesmo. Ou sou rejeitado porque intrinsecamente não valho nada, ou sou rejeitado porque fiz algo de terrível, embora não me consiga agora assim de repente lembrar o que foi e mais tarde ou mais cedo toda a gente vai descobrir e nunca mais voltarei a sentir-me acolhido, acarinhado e aceite pelos meus pares que por esta hora, diga-se de passagem, já passaram a ímpares e estão todos algures a rir-se de mim nas minhas costas enquanto eu me mortifico sozinho, para todo o sempre isolado e desgraçado, enfrentando os meus fantasmas e e ruminando as minhas culpas com imensa pena de mim próprio.
Imaginemos aquela clássica situação em que gostamos de alguém mas não sabemos se somos correspondidos. Até podemos ter todos os motivos e mais um, reais e palpáveis, para acreditar que o somos. Mas se por algum motivo, a outra pessoa faz alguma coisa que não seja declarar-se a nós de forma inequívoca pedindo-nos em casamento de joelhos no chão e aliança de brilhantes em riste, se porventura a pessoa, por timidez ou desconforto, por obrigação profissional ou qualquer outra contingência da vida, não está LÁ NO MOMENTO ESPERADO, não olha para nós quando imaginávamos que o poderia fazer, não telefona ou não responde imediatamente ao nosso espirituoso sms, ou nos dá um qualquer feedback que para nós soa a inadequado e pimba! Lá está a puta da insegurança a atacar e o nosso atum a vir ao de cima. Vês! Vês! eu bem te dizia! Quem nasceu para atum nunca chegará a tubarão. Ele/ela odeia-te. Não se está mesmo a ver???
A questão é simples: somos atuns, remetidos para uma reles lata de conserva que poderá ficar eternamente esquecida numa prateleira do minipreço até que o repositor se lembre e se aperceba de que a validade foi ultrapassada há meses e nos coloque no sítio onde afinal pertencemos, i.e. o contentor do lixo pois, afinal, se todos os outros peixes do oceano estão numa festa para a qual não fomos convidados é evidentemente porque merecemos a nossa condição de peixe fora do cardume. A metáfora da festa, aliás, é da maior utilidade para ajudar a compreender a diferença entre ser ignorado e ser rejeitado: ignorado é o peixe convidado para a festa mas que passa a festa toda sem se divertir porque não se aproxima de ninguém e, como simplesmente não existe, ninguém dá pela sua presença. Rejeitado, é o atum que deliberadamente não foi convidado para a festa, que sabe que a festa está a decorrer e que fica toda a noite a carpir as suas mágoas, quiçá a encher-se de drogas ou de pornografia, o que na verdade vai dar no mesmo, mas afinal, a vida não passa de uma eterna pescadinha de rabo na boca, o que mesmo assim é melhor do que ser atum, pois a esse falta-lhe a elasticidade necessária e em última análise, até ser sardinha teria vantagens já que essas, ao menos, sempre são ricas em ómega 3, o que lhes vai permitindo mais não seja por agora ser consideradas um dos peixes mais in que há. Terão também elas, tal como o atum, tempo para regressarem à prateleira de espécie chinfrim, para não dizer altamente parola, mas isso ficará para outras postas, passe a redundância da figura de estilo, por esta altura já promovida a alegoria.
Regressando ao peixe frio (já que a vaca ficaria aqui, espero que concordem, inúmeros e incontáveis, totalmente inadequada) - a questão da insegurança e da culpabilidade - , a conclusão resume-se com alguma brevidade - sim, eu sei que vocês não acreditam, inúmeros e incontáveis que porventura possam ter chegado até aqui, o que, admito, é tão provável como eu agora receber um telefonema a dizer que herdei um milhão de euros. A conclusão, dizia eu, é a seguinte:Um. Fui rejeitado. É inegável. Aliás, foi uma atitude concertada, consciente e propositada.Dois. Se o fui, é porque o mereço.Três. Mereço-o porquea) não presto por natureza: sou feio, burro, velho de mais, novo de mais, loiro de mais, loiro de menos, não tenho dinheiro, não tenho um moleskine, não fui ver a Madonna, não sabia que a Madonna se tinha divorciado, não vi o Portugal-Suécia nem o Portugal-Albânia, não tenho Ipod, nunca fui a Nova Iorque, não sei falar alemão, não tenho cão, não caço com gato, não sei fazer tricot, não sei bordar o nome dos meus filhos nas fraldas de pano, não aspiro o carro desde março de 2006.b) não presto porque fiz qualquer coisa de muito, muito grave mas não consigo absolutamente lembrar-me do que foi. Mas de certeza que fiz, mesmo que tenha sido inconscientemente. Na verdade eu até consigo imaginar uma série de coisas que possam estar por detrás disto mas não posso de maneira alguma arriscar perguntar se foi isto ou aquilo porque, e estas são cumulativas: primeiro nunca ninguém irá admitir ter-me rejeitado in the first place, mas mesmo que tal pudesse acontecer eu não iria correr o risco de fornecer a quem me está a rejeitar mais um motivo para o fazer, uma vez que existe sempre a possibilidade de o motivo ser outro que não aquele que eu estou a pensar. E agora estou condenado à perene rejeição. Afinal, é como dizem os árabes (ou serão os chineses?):
"Bate-lhes, bate-lhes, porque mesmo que não saibas porque lhes estás a bater, eles (elas) sabem sempre porque estão a levar"...
* este raciocínio é uma total contradição em termos mas mais importante do que fazer sentido é exprimir-nos num determinado momento, e fazê-lo com convicção, mesmo que estejamos a dizer o maior disparate do mundo. Afinal de contas, se ela pode, porque não hei-de eu poder? E se isso lhe dá audiências, quanto mais não seja no youtube talvez mas dê na vida. A vida, afinal, não passa de uma eterna pescadinha de rabo na boca. Quais atum?!
6/18/2009
Sonho de uma tarde de Verão
Ali estava ele a olhar para mim e a sorrir, como se já me estivesse a observar há algum tempo. Senti-me apanhada, frágil, despida. Perguntou-me como estava. Menti que estava tudo bem. Não foi na conversa. E tornou a perguntar, mergulhando o olhar no meu, cutucando as lágrimas que imediatamente saltaram, lestas, obedientes. Admiti o que já sabias. Disse-te a verdade, mas só em parte. Para quê alongar-me sobre o resto? O que não se diz é o que importa, claro. Mas talvez não o queiras saber. Às vezes penso que o sabes tão bem como eu e que tudo o que eu penso, os nós internos dos meus neurónios às turras com as hormonas e os sinais que leio no mundo e me vão dizendo coisas que quero interpretar a meu favor (?) corresponde ao que se passa aí desse lado, nessa cabeça de homem tão crescida dentro de um coração de menino. Adivinho-te transparente, tão igual a mim que optas por evitar o prolongar do instante, por receio do dia em que o silêncio nos embaraçar os sentidos. Logo a seguir admoesto os meus devaneios insensatos e repito a mim própria que devia dar mais uso ao comando que zappa as minhas fantasias. Puff! E sai uma comédia romântica com final feliz.
Pelo sim pelo não, absorvi-te o abraço. Meti-o no carro e levei-o comigo. Mergulhei-o nas ondas cálidas, alimentei-o de luz, de areia fresca e de búzios. Daqueles raros, espirais compridas e rosadas. Intermináveis e belíssimas, como a tarde. Um dia assim só pode ser uma dádiva dos deuses. Agradeci à vida. Abençoei o Sol. Beijei o oceano. Fundi-me com os elementos. Colhi as suas carícias. Entreguei-me. Renasci.
À saída da praia, o António Sérgio presenteou-me com Lloyd Cole, Jimmy Hendrix, Prince, GNR, Clash. Um duo português que não conhecia sagrou o blues como hino universal dos ocasos de verão. No meu coração Billie Holliday arrastava o Tejo, languidamente: "Summer time, and living is easy, fishs are jumping, and the cotton is high...".
Mas agora que acordei, é Sérgio Godinho que me canta baixinho ao ouvido: "Às vezes o amor..."
6/16/2009
Será que algum dia
6/04/2009
Já começa a cheirar mal
Isto a propósito de alguns comentários no artigo do Público que hoje destaca a reportagem publicada no francês Le Monde na qual os recibos do nosso descontentamento foram designados como "gangrena". Como disse mais acima já não há pachorra para este paleio do "é dificil despedir". Difícil de despedir é esta corja de empresários e o governo que lhes dá cobertura. Difícil de despedir é esta mentalidade tacanha, mesquinha e redutora. Dificil de despedir é esta gente que acha que há pessoas de primeira e outras de segunda. Porque defender a precariedade é defender a desigualdade.
Quanto a mim, despeçam-nos a todos já!
6/01/2009
Vem aí mais uma capicua histórica
5/29/2009
Quem diria?..
MÃE DEDICADA, AMOROSA E COMPANHEIRA
A mãe com o signo lunar em Touro é uma supermãe! Cuida daquilo que ama com uma dedicação total, procurando demonstrar seu amor com gestos práticos. Tem uma personalidade doadora e nutridora. É uma mãe muito apegada aos seus filhos e sempre utiliza a razão para tentar resolver questões emocionais. Alguém com quem você pode sempre contar. Na alegria e na tristeza, lá está ela, cuidando de seus filhos da melhor forma possível.
5/25/2009
5/21/2009
Vous avez dit bizarre? ou O Misterioso Caso do Apagão (a saga continua)
O "apagão" no desemprego registado no IEFP – a nunca explicada eliminação sistemática de desempregados nos ficheiros do IEFP por Eugénio Rosa
Ide. Ide lá ver e não vos deixais assustar pelo fundo algo agressivo da página, pois a agressividade é outra e nunca é demais tomarmos consciência do que se passa...
5/20/2009
Julgais que o Help Desk é um conceito dos nossos dias?
À falta de tempo e disponibilidade mental para postas à minha moda (jogos de cama completos, como diria uma companheira de andanças blogosférica), aqui vos deixo uma pérola do humor norueguês (dois minutos e meio)
5/14/2009
De pequenino se torce o... menino
"Mãe, quando as raparigas lá da escola deixam cair um livro ou assim, eu vou lá e apanho. E elas dizem: 'Obrigada, és um querido!'.... Fico todo contente..."
5/11/2009
Não me apetece
5/05/2009
O grito do Ipiranga
Por uma vez, poupo-vos aos pormenores da história e vou directa aos finalmente:
CJ: Ah é? Então, por favor, dê-me outra comunicação de cliente. Ou melhor, dê-me o livro de reclamações.
Senhora do banco que por ironia do destino até era até há umas horas a vigésima oitava - ou coisa que o valha - gestora da minha conta e que por um mero acaso daqueles totalmente inexplicáveis eu até nem sequer conhecia: Mas, posso perguntar-lhe o que pretende?
CJ: Pretendo cortar relações convosco mas vocês não deixam e portanto vou informar o Banco de Portugal.
Senhora do banco que por ironia do destino até era até há umas horas a vigésima oitava - ou coisa que o valha - gestora da minha conta e que por um mero acaso daqueles totalmente inexplicáveis eu até nem sequer conhecia: Mas se quiser eu também posso devolver-lhe já a totalidade do seu dinheiro.
CJ: Pois, mas não me apetece dar-vos nem mais um cêntimo.
Senhora do banco que por ironia do destino até era até há umas horas a vigésima oitava - ou coisa que o valha - gestora da minha conta e que por um mero acaso daqueles totalmente inexplicáveis eu até nem sequer conhecia: Se quiser eu nem sequer lhe cobro a comissão de encerramento da conta [Quanta gentileza! Tudo isto para poupar maçadas à entidade máxima!.. Chega a ser comovente!]...
CJ: Ah é? Dá-me o dinheiro todo até ao último cêntimo? É para já.
E a vossa Calamity saiu do estabelecimento bancário carregadinha de notas que, chegando a casa, enfiou de seguida debaixo do colchão sentindo-se rica e sobretudo, LIVRE! Claro que a liberdade e a riqueza só durarão até amanhã, data em que abrirei nova conta noutro estabelecimento bancário que tratará de me extorquir durante a próxima temporada. Mas estas horas de abundância monetária e a maravilhosa sensação de ter feito a coisa certa já ninguém mas tira!
4/30/2009
Não se sentem já que a leitura hoje é ali ao lado
Já andava há algum tempo para a terminar, mas esta manhã, fui 'intimada' a fazê-lo. O registo é totalmente diferente, mas era inevitável que este delicioso naco de vida me remetesse para a série das sopeiras. O segundo capítulo já está disponível. Podeis lê-lo no curral. É um bom pretexto para vos convidar de novo a visitá-lo...
(O anónimo - ou seria anónima? - que esperou longos meses para me vir taxar outra vez de reaccionária é, obviamente, bem-vindo. Aliás, fiz questão de lhe dedicar a posta. E já agora, e porque vem mais do que a propósito, estão todos convocados para o Mayday, amanhã.)
4/28/2009
É grave, Senhor Doutor?
O facto de estar a escrever esta posta é provavelmente a evidência cabal da pertinência da conclusão que os meus inúmeros e incontáveis irão tirar após concluírem a leitura da mesma - se é que tal coisa irá mesmo acontecer - , conclusão essa que posso desde já adiantar, poupando-vos assim à maçada de estabelecerem (mais) este duro, porém, estou certa, definitivo diagnóstico a meu respeito: já tem havido internamentos compulsivos em psiquiatria com motivos bem mais frágeis.
Se contudo os meus inúmeros e incontáveis insistem, por teimosia ou curiosidade, em prosseguir a leitura, só me resta, pois, partilhar convosco o que me traz aqui hoje e orar para que o vosso julgamento sobre o meu caso seja justo, porém brando.
O cenário é um consultório médico em prédio dos anos quarenta, de casas amplas, guichet a meio do corredor, porta pesada de madeira à qual foi adaptado um mecanismo automático sonoro, telefone(s) insistente(s), sala de espera ladeada de sofás e cadeiras, mesa redonda e austera ao centro repleta de revistas.Devem ser umas 16h15. Quatro pessoas distribuem-se por três assentos, todos os lados ocupados menos um, onde pontifica o pequeno ecrã em pleno ataque de hiperactividade estéril de segunda à tarde. Quatro pessoas: um homem de meia idade dando o flanco direito à TV; uma senhora rondando a mesma faixa etária sensivelmente à sua frente; enfrentando a caixinha barulhenta as restantes duas pessoas: um rapaz na casa dos vinte (digo eu, que ando cada vez pior nisto de atribuir idades à pessoas) e uma senhora na casa dos restantes ocupantes da sala. Entro, murmuro o boa tarde da praxe, vou direita à mesa das revistas, escolho uma daquelas que só consigo ler nestas ocasiões - para as cuscas, esclareço que se tratava da Máxima, na qual logrei tresler um texto sobre mentiras e sexo após o qual fiquei exactamente na mesma - e sento-me ao lado da senhora só, ficando o supra-citado televisor do meu lado esquerdo. Começo a ler. Ou melhor, começo a tentar ler. Não é fácil. O(s) telefone(s) toca(m) sem parar. A campaínha da porta também vai dando sinal de vida, que isto ou há moralidade ou comem todos. A Praça da Alegria intervalou e os compromissos comerciais estão apostados em rebentar com o volume do aparelho. Mas tudo isto até é suportável. Afinal, trabalhei tanto tempo em redacções. Com televisões ligadas em quatro canais a fazerem concursos de decibéis. Com a colega do cor-de-rosa a resolver questões difíceis (e quão difíceis, deus meu!) em altas vozes (e quão altas, deus meu!) e um ou dois chefes aos berros com um ou dois subordinados e telefones em trance psicadélico e a coisa até que se vai ultrapassando, umas vezes melhor outras pior, é certo, mas, digam-me os inúmeros e incontáveis, haverá ruído mais irritante, mais insuportavelmente desgastante do sistema nervoso central, periférico e latente (pronto, eu sei que tal coisa só deve existir na minha imaginação delirante, mas é só um efeito de estilo, uma mania de adjectivar ad nauseam), do que um bip bip repetitivo e insinuante??? Eu cá acho que não. Sim, é certo que o meu feitio sagitariano cruzado de neurótico herdado do meu querido pai me confere esta característica particularmente irritadiça que os inúmeros e incontáveis tão bem conhecem. Mas dentro da categoria dos barulhinhos especialmente irritantes, existem dois - assim de repente - que me fazem ir aos arames a uma velocidade próxima dos 300 mil km por segundo (para os mais distraídos trata-se da velocidade da luz e não precisam de me agradecer: afinal, todos temos de cumprir a nossa missão e a minha é ajudar a educar as massas. Ah, e antes que alguém se precipite a taxar-me de esta e mais aquela, vou já esclarecendo que não fui eu que disse, foi o teste de numerologia cujo link irei à procura se conseguir terminar a posta a tempo de não ser despedida). Portanto, dois, se bem se lembram: um é aquele plim plom! estridente e que fica a ecoar por meias-horas inteiras, e que ainda por cima nunca vem só, vem sempre repetido, assim: plim plom!, plim plom!, estridente e que fica a ecoar por meias-horas inteiras a tal ponto que uma pessoa já nem sabe se está ainda a ouvir o plim plom! ou se já se trata do próprio eco, que normalmente existe nas retrosarias, lojas de brindes e outras pérolas do comércio tradicional em vias de extinção nas quais para cúmulo os únicos artigos interessantes costumam estar pendurados precisamente ao lado do detector de presenças - pois é disso que falo, sabem, o tal plim plom! e poupo-vos ao resto da descrição -, o que tem habitualmente como resultado que fujo dali ao fim de oito a dez toques antes que desate a gritar furiosamente e o dono da loja - que normalmente é um velhinho adorável - me mande internar sem me deixar terminar de escrever a posta. O outro - estão a acompanhar-me? - é um bip bip repetitivo e insinuante cuja origem podemos até não estar a detectar mas que tem fortíssimas probabilidades de provir do telemóvel que o rapaz na casa dos vinte (digo eu, que ando cada vez pior nisto de atribuir idades à pessoas) dedilha entusiasmadamente enquanto a senhora a seu lado ronca suavemente, de cabeça levemente inclinada para trás e sem pestanejar.
(Para quem possa eventualmente ter ido à casa de banho ou atendido um telefone entretanto, esclareço que já saí da redacção e da loja de lavoures e estou de regresso à sala de espera do consultório médico)
Olho para ele franzindo o sobrolho (pelo menos, penso que franzo, que não tenho ali nenhum espelho à mão). O tipo não se manca e continua a teclar como se não houvesse amanhã. Um a um, percorro com o olhar os outros ocupantes da sala. Ninguém parece estar a reparar no barulhinho exasperante que escapa - agora estou certa disso - da maquininha insuportável do rapaz na casa dos vinte (digo eu, que ando cada vez pior nisto de atribuir idades à pessoas) que talvez não tenha exactamente a idade que eu penso mas que tem certamente idade para ter juízo. Bip bip. Ah, se fosse meu filho... Tento concentrar-me na leitura do fascinante artigo. Bip bip. Sabiam que três em cada quatro pessoas mente a respeito do número de parceiros sexuais? Em boa verdade vos digo, tenho praí uns... Bip bip. OK, pronto. Falamos nisso noutra altura. Bip bip. Até porque estou prestes a iniciar uma espiral de violência. Aviso já que sou particularmente atreita a ataques de nervos Ainda para mais nesta altura do mês. Bip bip. E vou bem lançada. Já estou a bufar. Como é possível que ninguém diga nada? Será que? Bip bip. Começo a virar ruidosamente as páginas da revista. Nada. O senhor da frente - o tal do flanco direito - olha para mim enquanto fixo significativamente o rapaz na casa dos vinte (digo eu, que ando cada vez pior nisto de atribuir idades à pessoas). Não parece estar a ouvir o bip bip que cada vez penetra mais fundo nos meus tímpanos, nos meus dentes, nas minhas unhas, na espinal-medula... Bip bip. A senhora - que, pensando bem até é capaz de ser mãe dele - continua a ressonar serenamente, cabeça tombada - um tudo nada embora - sem que dela emane o mínimo sinal de incómodo. Ao meu lado, a outra personagem de meia-idade (reparo agora que, quando digo de meia-idade, me estou a referir a uma pessoa entre os 50 e os 65) também não parece de perto nem de longe perturbada com o bip bip que me está progressiva mas insidiosamente a conduzir a um ponto de não-retorno. Digo? Não digo. Bip bip. Pronto. É demais. Vou respirar fundo, levantar-me, e perguntar, educada, mas firmemente, ao rapaz se não se importa de cortar o pio ao telefone. Basta tirar o som das teclas. Qualquer miúdo de 11 anos sabe isso. O meu sabe. Bip bip. Mas o paquiderme que habita as profundezas do meu ser tenta refrear os meus ânimos já deveras exaltados. Murmura (quase tão ruidosamente quanto o desesperante bip bip): "Tu acalma-te, Calamitosa. Tu tem tento na língua. Tu não te passes antes do tempo que tu perdes a razão e ós pois quem fica mal vista és tu. Tu observa lá cuidadosamente à tua volta a ver se mais nada estará a causar tão enervante bipar". Respiro fundo. O meu telefone toca. Levanto-me e vou atender lá fora. Quando regresso, o meu anterior lugar está ocupado. Sento-me do lado oposto. Pego noutra revista. Há alguma movimentação na sala enquanto o bip bip perdura como um interminável ruído de fundo. Duas raparigas novas entram e partilham o comprido banco comigo e com o senhor de meia-idade que afinal já terá ultrapassado a meia e que é chamado pela recepcionista. Quando volto a consciencializar-me do bip bip já passaram uns minutos. Levanto novamente os olhos e qual não é o meu espanto quando me apercebo que agora, quem tem o telemóvel infernal nas mãos é a senhora que outrora roncava discretamente e agora se ocupa a manejar a maquineta do demo sem lampejo de pudor!!! Não posso acreditar. Agora tenho a certeza. Trata-se definitivamente da mãe do rapaz na casa dos vinte (digo eu, que ando cada vez pior nisto de atribuir idades à pessoas). Como haveria de o rapaz ter qualquer sombra de boas-maneiras quando a própria progenitora se dedica à actividade frenética do teclanço barulhento sem qualquer contemplação??? O mundo está perdido. Ainda bem que não disse nada. Está-se mesmo a ver o género. A coisa teria certamente dado peixeirada. Bip bip. Ah, meus deuses, segurem-me, que eu vou-me a eles. Pego na terceira revista.
E é então que os acontecimentos se precipitam. O rapaz na casa dos vinte (digo eu, que ando cada vez pior nisto de atribuir idades à pessoas) já não se encontra na sala, a senhora que outrora roncava discretamente e seguidamente se ocupava a manejar a maquineta do demo deixou de jogar, não existe vivalma em toda a sala que possa estar a provocar o bip bip do meu descontentamento e no entanto ele continua. Bip Bip. É a minha vez de ser atendida. Entro na sala do médico. Sento-me, enquanto o senhor doutor foi lavar as mãos. A porta aberta dá para a entrada do consultório. Maquinetas em todo o lado. Dentro da sala, o ecógrafo. À entrada, o mecanismo que faz abrir a porta. Entre o corredor e a divisão onde me encontro, outro aparelhómetro. Todos eles piscam e todos eles são susceptíveis de estar a provocar o bip bip desde a minha chegada. Desde antes da minha chegada. E assim continuará após a minha partida. É assim todos os dias, provavelmente. Não há telemóvel, não há rapaz mal educado, não há mãe desnaturada, não há pacientes indiferentes. O que há é uma calamitosa louca, desvairada, e que um paquiderme pachorrento acabou de salvar de uma situação deveras embaraçosa. Quem disse que ter um elefante no lugar do grilo falante é uma tremenda maçada? Bip Bip.
4/26/2009
35 anos depois
A nova é: "25 de Abril já!"
4/24/2009
4/21/2009
O Estado e o estado a que isto chegou
De qualquer modo, e porque parece que, apesar daquela senhora gorda que se sentou em cima da malta e a quem chamam carinhosamente Crise, ainda andam aí alguns que têm manias (vícios, vá lá) semelhantes às minhas, aqui fica uma pista de reflexão. Coisa velhita e desactualizada...
Liberdade
Viemos com o peso do passado e da semente
Esperar tantos anos torna tudo mais urgente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
Vivemos tantos anos a falar pela calada
Só se pode querer tudo quando não se teve nada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão, habitação, saúde, educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir
Sérgio Godinho
(in 'À Queima-Roupa', 1974)
pensamos em conjunto?
4/20/2009
Para ti, Peixa
com um abraço do tamanho do céu estrelado...