O estereótipo divide os escritores em dois grupos: os boémios, na linha de Hemingway e F. Scott Fitz-gerald; e os solitários, casos de J.D. Salinger ou Cormac McCarthy. Não vivendo em reclusão total como o autor de À Espera no Centeio, Haruki Murakami, 62 anos, encaixa-se melhor na segunda categoria, como assume em Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo: "Não considero que passar uma ou duas horas por dia a correr, sem trocar palavra com ninguém, e outras quatro ou cinco horas sozinho à secretária, seja aborrecido. Preferia mil vezes ler livros ou ouvir música do que estar na companhia de alguém." Mas os colaboradores garantem que o isolamento não o torna intratável.
Maria João Lourenço, a tradutora de Murakami em Portugal, até lhe gaba o carácter comunicativo: "Lembro-me bem da primeira carta que me escreveu, muito simpática. Agora, contacto-o por e-mail. Nesta última tradução, respondeu a uma dúvida minha dizendo para fazermos como acharmos que fica melhor na nossa língua. É muito pouco burocrático."
Fiel a uma rotina espartana, o romancista acorda antes das cinco da manhã, trabalha cinco horas, corre ou nada à tarde, lê e ouve música depois do jantar para relaxar, deita-se às dez da noite. "É o padrão que tenho seguido até hoje." E foi graças a esse padrão militar que conseguiu escrever uma trilogia de 1200 páginas em três anos: 1Q84, o best-seller que antes de o ser já o era. Nunca nenhum livro de Murakami gerou tanta expectativa. Num mês, 1Q84 vendeu um milhão de exemplares no Japão. Em França, foram publicadas 70 mil cópias e em menos de uma semana estava nas lojas uma nova edição.
Terça-feira, o lançamento em Inglaterra obrigou a uma actividade anormal no mercado. "A última vez que fizemos isto foi com o Harry Potter", garantiu um livreiro ao site da BBC sobre o horário alargado até à meia-noite. Portugal terá de esperar pelo dia 7 de Novembro (de terça-feira a oito dias) para ler o primeiro volume de 1Q84.
Excepção feita a leitores especiais. "É uma obra muito bem articulada, que levanta questões importantes. Um romance intrigante, com muitas linhas narrativas que se cruzam, talvez o mais actual dele", adianta Maria João Lourenço, que neste caso dividiu a tradução com Maria João da Rocha Afonso.
Passado em Tóquio, 1Q84 (em japonês, nove pronuncia-se Q, remetendo-nos para 1984, de George Orwell) é mais uma aventura ao estilo de Murakami, com surrealismo q.b. e muitas interrogações. Tantas que a própria editora chegou a duvidar se a falta de esclarecimentos poderia ser interpretada como "preguiça". Segundo o The Guardian, o escritor respondeu com ironia: "Para ser bem-sucedido a escrever uma história, o autor fá-lo de uma maneira tão interessante que leva o leitor até ao último ponto final, o que poderá levar a que o classifiquem como preguiçoso."
Preguiça é um defeito difícil de colar a um homem que corre todos os dias, que completou dezenas de maratonas, que participou em várias provas de triatlo, que fez uma ultramaratona de 100 km - esteve 11h42 a correr.
No entanto, a vida de Murakami nem sempre foi tão regrada e saudável. Antes de acabar o curso de Teatro, abriu um clube de jazz em Tóquio: "Trabalhava de manhã até às tantas da noite, antes de cair para o lado de cansaço." E tudo piorou aos 27 anos. Dividiu a gestão do bar com o primeiro e o segundo romances, Hear the Wind Sing e Pinball, 1973 (nunca editados em Portugal). O escritor só entrava em acção de madrugada, depois de o empresário fechar as contas e as portas do clube. Ao terceiro livro, trespassou o bar: "Gostaria de ter liberdade para escrever durante dois anos", disse a Yoko, a mulher com quem está casado desde os 23 anos. "Se a coisa der para o torto, podemos abrir outro barzinho algures."
Busca do Carneiro Selvagem foi um sucesso e o agora escritor profissional mudou os hábitos: deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer o número de livros vendidos. Em 1987, publicou Norwegian Wood, que vendeu 10 milhões de cópias e apresentou ao Japão a sua nova estrela literária. Crónica do Pássaro de Corda, Kafka à Beira-Mar e Sputnik, Meu Amor reforçaram o estatuto e levaram-no até às 42 línguas em que Murakami já foi traduzido até hoje.
Crónico candidato ao Nobel, o japonês é uma receita de sucesso em todo o mundo. Só nos EUA já vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares. "Não faço ideia de quanto ganho por ano. É lamentável, mas o meu contabilista e a minha mulher é que tratam disso", explicou ao The Guardian. Em Portugal, Murakami vendeu mais de 160 mil exemplares. Kafka à Beira-Mar, com 13 edições e 40 mil exemplares, é o título mais procurado. E não lhe faltam seguidores portugueses, existindo até um blogue dedicado ao escritor (murakami-pt.blogspot.com) com 16 mil visitas anuais.
Além de romancista, Murakami também é tradutor. Passou para japonês livros de F. Scott Fitzgerald, Truman Capote e toda a obra de Raymond Carver, seu amigo e mentor. Não tem filhos e vive entre o Japão, os Estados Unidos e o Havai. Esteja onde estiver, as corridas são sagradas: "Continuo a fazer exercício para melhorar a minha condição física, com o firme propósito de continuar a escrever livros." Quem disse que correr era um passatempo?