domingo, 30 de outubro de 2011

Murakami - Um 'best-seller' obcecado



O estereótipo divide os escritores em dois grupos: os boémios, na linha de Hemingway e F. Scott Fitz-gerald; e os solitários, casos de J.D. Salinger ou Cormac McCarthy. Não vivendo em reclusão total como o autor de À Espera no Centeio, Haruki Murakami, 62 anos, encaixa-se melhor na segunda categoria, como assume em Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo: "Não considero que passar uma ou duas horas por dia a correr, sem trocar palavra com ninguém, e outras quatro ou cinco horas sozinho à secretária, seja aborrecido. Preferia mil vezes ler livros ou ouvir música do que estar na companhia de alguém." Mas os colaboradores garantem que o isolamento não o torna intratável. 

Maria João Lourenço, a tradutora de Murakami em Portugal, até lhe gaba o carácter comunicativo: "Lembro-me bem da primeira carta que me escreveu, muito simpática. Agora, contacto-o por e-mail. Nesta última tradução, respondeu a uma dúvida minha dizendo para fazermos como acharmos que fica melhor na nossa língua. É muito pouco burocrático." 

Fiel a uma rotina espartana, o romancista acorda antes das cinco da manhã, trabalha cinco horas, corre ou nada à tarde, lê e ouve música depois do jantar para relaxar, deita-se às dez da noite. "É o padrão que tenho seguido até hoje." E foi graças a esse padrão militar que conseguiu escrever uma trilogia de 1200 páginas em três anos: 1Q84, o best-seller que antes de o ser já o era. Nunca nenhum livro de Murakami gerou tanta expectativa. Num mês, 1Q84 vendeu um milhão de exemplares no Japão. Em França, foram publicadas 70 mil cópias e em menos de uma semana estava nas lojas uma nova edição. 

Terça-feira, o lançamento em Inglaterra obrigou a uma actividade anormal no mercado. "A última vez que fizemos isto foi com o Harry Potter", garantiu um livreiro ao site da BBC sobre o horário alargado até à meia-noite. Portugal terá de esperar pelo dia 7 de Novembro (de terça-feira a oito dias) para ler o primeiro volume de 1Q84

Excepção feita a leitores especiais. "É uma obra muito bem articulada, que levanta questões importantes. Um romance intrigante, com muitas linhas narrativas que se cruzam, talvez o mais actual dele", adianta Maria João Lourenço, que neste caso dividiu a tradução com Maria João da Rocha Afonso. 

Passado em Tóquio, 1Q84 (em japonês, nove pronuncia-se Q, remetendo-nos para 1984, de George Orwell) é mais uma aventura ao estilo de Murakami, com surrealismo q.b. e muitas interrogações. Tantas que a própria editora chegou a duvidar se a falta de esclarecimentos poderia ser interpretada como "preguiça". Segundo o The Guardian, o escritor respondeu com ironia: "Para ser bem-sucedido a escrever uma história, o autor fá-lo de uma maneira tão interessante que leva o leitor até ao último ponto final, o que poderá levar a que o classifiquem como preguiçoso." 

Preguiça é um defeito difícil de colar a um homem que corre todos os dias, que completou dezenas de maratonas, que participou em várias provas de triatlo, que fez uma ultramaratona de 100 km - esteve 11h42 a correr. 

No entanto, a vida de Murakami nem sempre foi tão regrada e saudável. Antes de acabar o curso de Teatro, abriu um clube de jazz em Tóquio: "Trabalhava de manhã até às tantas da noite, antes de cair para o lado de cansaço." E tudo piorou aos 27 anos. Dividiu a gestão do bar com o primeiro e o segundo romances, Hear the Wind Sing e Pinball, 1973 (nunca editados em Portugal). O escritor só entrava em acção de madrugada, depois de o empresário fechar as contas e as portas do clube. Ao terceiro livro, trespassou o bar: "Gostaria de ter liberdade para escrever durante dois anos", disse a Yoko, a mulher com quem está casado desde os 23 anos. "Se a coisa der para o torto, podemos abrir outro barzinho algures." 

Busca do Carneiro Selvagem foi um sucesso e o agora escritor profissional mudou os hábitos: deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer o número de livros vendidos. Em 1987, publicou Norwegian Wood, que vendeu 10 milhões de cópias e apresentou ao Japão a sua nova estrela literária. Crónica do Pássaro de Corda, Kafka à Beira-Mar e Sputnik, Meu Amor reforçaram o estatuto e levaram-no até às 42 línguas em que Murakami já foi traduzido até hoje. 

Crónico candidato ao Nobel, o japonês é uma receita de sucesso em todo o mundo. Só nos EUA já vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares. "Não faço ideia de quanto ganho por ano. É lamentável, mas o meu contabilista e a minha mulher é que tratam disso", explicou ao The Guardian. Em Portugal, Murakami vendeu mais de 160 mil exemplares. Kafka à Beira-Mar, com 13 edições e 40 mil exemplares, é o título mais procurado. E não lhe faltam seguidores portugueses, existindo até um blogue dedicado ao escritor (murakami-pt.blogspot.com) com 16 mil visitas anuais. 

Além de romancista, Murakami também é tradutor. Passou para japonês livros de F. Scott Fitzgerald, Truman Capote e toda a obra de Raymond Carver, seu amigo e mentor. Não tem filhos e vive entre o Japão, os Estados Unidos e o Havai. Esteja onde estiver, as corridas são sagradas: "Continuo a fazer exercício para melhorar a minha condição física, com o firme propósito de continuar a escrever livros." Quem disse que correr era um passatempo?


terça-feira, 25 de outubro de 2011

Entrevista ao The Guardian [Parte 2/2]



Segunda metade da entrevista publicada no THE GUARDIAN, que podem ler neste link. A tradução desta segunda metade do artigo foi redigida por André Pereira, um seguidor do blog que exerce a actividade de tradutor, e que se disponibilizou a traduzir esta segunda parte.


A sua esposa, Yoko Takahashi, é a sua primeira leitora. O romance que nasceu durante um jogo de basebol chama-se Hear The Wind Sing (sem edição portuguesa) e foi galardoado com um novo prémio para escritores no Japão. Durante uns tempos, Murakami continuou a gerir o seu bar enquanto escrevia e isso era essencial para o seu progresso, dizia: "Tinha o meu clube de Jazz e tinha dinheiro suficiente, portanto não tinha de escrever para me sustentar e isso é muito importante." Quando o livro Norwegian Wood vendeu mais de três milhões de cópias no Japão, Murakami sentiu que já não havia necessidade de continuar no bar, se bem que por vezes imagine uma vida paralela onde se vê ainda naquele contexto. Acredita que não seria menos feliz.

"Se acredito em vidas alternativas? Hum... Sim. Mesmo assim, acho muito estranho. Por vezes interrogo-me por que razão sou escritor. Não existe uma razão certa para que me tenha tornado um. Algo aconteceu e, pronto, tornei-me escritor. E agora sou um bem-sucedido. Quando viajo para os EUA ou para a Europa, as pessoas conhecem-me e é muito estranho. Há alguns anos fui a Barcelona e dei uma sessão de autógrafos. Sabe, vieram 1000 pessoas. As raparigas deram-me beijos. Fiquei surpreso. O que me aconteceu?"

Ele escreve intuitivamente sem quaisquer planos. A inspiração para o seu último livro veio quando estava no meio do trânsito em Tóquio. O que teria acontecido caso tivesse evitado o engarrafamento e seguido por um desvio? Iria a sua vida mudar? "É o ponto inicial. Eu tenho um pressentimento que irá ser um bom livro. Iria ser bastante ambicioso. Era tudo o que sabia. Escrevi o romance Kafka à Beira-Mar, talvez há cinco ou seis anos, e esperei pela chegada do novo livro; até que chegou. Chegou. Soube que iria ser um enorme projecto. Era um pressentimento."

Um livro como o 1Q84 pode, em simultâneo, assumir características elípticas graças ao brilhantismo de Murakami, mas também deixar o leitor algo insatisfeito. A artificialidade presente no livro pode ser desculpada pelo autor como se fosse um comentário à própria artificialidade e, por vezes, o tom vago pode ser algo negativo. "Desde aquela vez que viu duas luas no céu e uma crisálida a materializar-se na cama do seu pai no sanatório, nada surpreendia Tengo por aí além."

Tal como acontecia nos seus livros mais antigos, algumas das cenas mais ternas são superficiais ao enredo principal. Em Norwegian Wood, o livro que Murakami escreveu da forma mais convencional possível a fim de ser um sucesso comercial, focava-se no pai moribundo da personagem principal e da sua namorada. Já em 1Q84, são as cenas entre Tengo, o parceiro romântico de Aomame, e o seu pai moribundo que temos mais dificuldades em apreciar. A maioria das personagens de Murakami tiveram infâncias infelizes e não é uma coincidência, admite. Não aconteceu nada de drástico durante a sua infância. Ainda assim, diz, "senti-me um pouco maltratado. Talvez se devesse ao facto de os meus pais esperarem que o filho fosse de uma maneira, mas acabando por ser de outra." Ri-se. "Esperavam que tivesse boas notas na escola, mas não tinha. Não gostava de estudar durante muito tempo. Apenas queria fazer o que me apetecia. Sou muito consistente. Esperavam que fosse para uma boa escola e arranjasse um emprego na Mitsubishi ou algo do género, mas também não o fiz. Queria ser independente. Então abri um clube de jazz e casei enquanto ainda andava na universidade. Ficaram um pouco desapontados com isso."

E de que forma é que o demonstraram?

"Apenas estavam desiludidos comigo. É duro para uma criança lidar com essa desilusão. Eles são boas pessoas, mas mesmo assim fiquei magoado. Ainda me recordo dessa sensação. Queria ser um bom filho para os meus pais, mas não o consegui. Já eu não tenho filhos. Por vezes interrogo-me sobre o que aconteceria se tivesse tido filhos, mas não o consigo imaginar. Não fui muito feliz enquanto criança, portanto não tenho a certeza se seria feliz como pai. Não faço a mínima ideia."

Então, como é que arranjou a confiança para fazer o que queria? "Confiança enquanto adolescente? Porque sabia do que gostava. Gostava de ler, ouvir música e de gatos, estas três coisas. Mesmo sendo apenas uma criança, era feliz porque sabia do que gostava e essas três coisas mantiveram-se constantes desde a minha infância. Ainda hoje sei do que gosto. E isso é confiança. Se não sabes do que gostas, estás perdido."

A opinião de Murakami no Japão é requisitada para quase todos os assuntos uma vez que é um dos intelectuais mais reconhecidos do seu país. Por ser tão tímido e modesto, não aprecia aparições públicas, mas dirige-se a todas as pessoas através dos seus livros.

 Logo após o atentado com gás Sarin em 1995 numa estação de metro em Tóquio, escreveu Underground - a Mentalidade de Tóquio e a Mentalidade Japonesa, um conjunto de ensaios jornalísticos sobre o evento. Murakami sente-se na obrigação de representar o seu país como escritor japonês e aceita receber publicidade no estrangeiro, enquanto a recusa no seu próprio país. Apesar de ter traduzido vários romances ocidentais para a língua japonesa, incluindo as obras do seu autor favorito, Raymond Chandler, admite que traduzir a partir da própria língua para outro idioma já é mais difícil. Nunca traduziria os seus próprios livros, no entanto discute algumas dúvidas relacionadas com determinadas palavras com os seus tradutores.

Murakami encontrava-se em Honolulu no início deste ano quando o terramoto e tsunami se abateram sobre o Japão. Mudou o país, diz. "As pessoas perderam a sua confiança. Esforçámos-mos imenso após o final da guerra. Durante 60 anos, quanto mais ricos éramos, mais felizes nos tornávamos. Mas no final, não éramos felizes, por mais que trabalhássemos. E surgiu o terramoto, muitas pessoas tiveram de ser evacuadas, tiveram de abandonar as suas casas e cidades. Uma tragédia. E estávamos orgulhosos da nossa tecnologia, mas a nossa central nuclear acabou se tornar no nosso pesadelo. O que fez as pessoas começaram a pensar que tínhamos de mudar drasticamente de estilo de vida. Creio que foi um grande ponto de viragem para o Japão."

Compara o acontecimento com o atentado de 11 de Setembro, dizendo que também alterou a História do mundo. De um ponto de vista de um escritor, é um "evento milagroso", demasiado improvável para ser real. "Quando vejo aqueles vídeos dos dois aviões a despenharem-se contra as torres, parece-me um milagre. Não é politicamente correcto dizer que é bonito, mas tenho de admitir que existe uma certa beleza no acontecimento. É horrível, é uma tragédia, mas mesmo assim existe beleza. Parece demasiado perfeito. Nem posso acreditar que, de facto, aconteceu. Dou por mim a questionar-me que se os aviões não se tivessem despenhado contra as torres, o mundo seria tão diferente do que é agora."

As mudanças que estão afectar os japoneses devem-se em parte, diz Murakami, ao facto de terem perdido muito e de terem de questionar o que realmente interessa. As suas prioridades são simples, continua. Por exemplo, não faz ideia de quanto dinheiro tem. "Sabe, se formos rico, a melhor coisa é o facto de não termos de pensar no dinheiro. A melhor coisa que podemos comprar com ele é a liberdade e tempo. Não sei quanto ganho por ano. Não faço ideia. Também não sei quanto pago de impostos e nem quero pensar nisso."

Pausa durante algum momento.

“É lamentável, o meu contabilista e a minha mulher é que tratam disso. Não me deixam saber de nada. Apenas trabalho."

Ele deve mesmo confiar na sua mulher! "Estamos casados há 40 anos ou isso. Ela ainda é minha amiga. Conversamos, conversamos sempre. Ajuda-me imenso. Aconselha-me sobre os meus livros. Respeito a sua opinião. Por vezes discutimos.”

A sua opinião, por vezes, é dura. "Sim, por vezes é."

Talvez necessite disso.

"Talvez. Se o meu editor fizesse o mesmo, iria-me chatear." Murakami encolhe os ombros. "Posso deixar o meu editor, mas não posso deixar a minha mulher."

O seu pai faleceu há dois anos, mas a sua mãe ainda está viva. Murakami espera que os seus pais tenham ficado felizes com o seu sucesso enquanto escritor, mas no entanto permanece a dúvida. Murakami tem as suas distracções: É membro de um clube de corrida no Havai e é, de todos, o mais velho, afirma. Corre tanto quanto escreve, como quem diz, todos os dias. A consistência é tudo. "Gosto de ler livros. Gosto de ouvir música e de comprar álbuns. E gosto de gatos. De momento não tenho nenhum gato, mas se estiver a passear e vir um gato, então fico feliz."


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Artigo da Vanity Fair


Artigo da edição da Vanity Fair de Novembro, que pode ser lido na língua original aqui. Texto de Paul Theroux. Fotografia de Gasper Tringale. Traduzido pela equipa do MURAKAMI PT do inglês.


Um romance japonês de 932 páginas, passado em Tóquio, no qual as palavras «sushi» e «sake» nunca chegam a aparecer, mas recheado de referências a vinho francês, assim como a Proust, a Fay Dunaway, ao livro The Golden Bough, a Duke Ellington, a Macbeth, a Churchill, a Janácek, a Sonny e Cher, e, a partir do sugestivo título, a George Orwell? Bem-vindos ao mundo 1Q84 de Haruki Murakami, à primeira-vista um autêntico calhamaço, mas que acaba por se provar uma leitura agradável, seguindo uma linha simétrica e multifacetada, mais ou menos como um edifício de três andares do século XIX até onde é possível fazer a comparação (no Japão, entre 2009 e 2010, foi lançado em três volumes, todos eles com grande sucesso). Tendo-lhe sido colada a etiqueta de realismo-mágico, na verdade apresenta uma estrutura mais próxima da Dickensiana (Charles Dickens) ou Trollopiana (Anthony Trollope). Por coincidência, tal como Trollope, Murakami costuma levantar-se às quatro e meia da manhã, escrevendo até por volta do meio-dia – e depois disso, agora ao contrário de Trollope, treina os seus triatlos.

“Uma história de amor” não faz justiça ao padrão propulsivo deste enredo, às mortes e desaparecimentos nos mundos paralelos de duas personagens, Aomame («Ervilha») e Tengo. Estes dois não se encontram há vinte anos, mas cada um deles está presente na memória um do outro. Aomame tem feições suaves, é forte, indiferente aos homens parecidos com Sean Connery, e assim que um deles decide aquecer a sua vida ela revela-se como uma dedicada assassina. Tengo é um escritor tímido, envolvido na revisão de um romance escrito por uma rapariguinha. Estamos no ano de 1984, ou será antes um lapso temporal, 1Q84? 

Explícito, ainda que subtil e onírico, combinando agressividade com um certo capricho, e mais erótico do que o habitual em Murakami, esta é a tentativa mais incansável e magistral do autor no desejo e na busca pelo Todo.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Dia 25 chega aos EUA...


1Q84 nos EUA. Dia 25 de Outubro. Três breves vídeos que ilustram algumas das facetas desta edição americana; para mim, o design é dos mais bonitos entre as capas de Murakami.


O booktrailer oficial de 1Q84.


Folheando a edição americana.


O designer da capa revela-nos alguma da sua inspiração.


domingo, 16 de outubro de 2011

Entrevista ao The Guardian [Parte 1/2]


Primeira metade da entrevista publicada no THE GUARDIAN, que podem ler neste link. A tradução foi feita pela equipa do blog MURAKAMI PT.

O novo romance de Haruki Murakami, 1Q84, tem 1.000 páginas e é publicado em três volumes. O autor demorou três anos a escrevê-lo, mas é possível ler quase metade da obra no voo de 11 horas entre Nova Iorque e Honolulu (Hawaii). Murakami reage cabisbaixo a esta notícia – a relação entre o tempo de ler e o de escrever nunca é muito encorajadora para um escritor – e, no entanto, se alguma coisa consegue testar o poder que um romance tem em si, é lê-lo na zona de trás da classe económica num voo de longo curso. Durante aquelas 11 horas, desaparecemos completamente para dentro do mundo de Murakami. 

Estamos na suite presidencial do Hyatt, em Waikiki, observando uma praia de sonho recortada entre montanhas. Murakami, que aos 62 anos ainda aparenta ser um skater adolescente, divide o seu tempo entre as suas casas no Hawaii, Japão e uma terceira que ele localiza como sendo Logo Ali. É para aí que ele desaparece todas as manhãs enquanto escreve os seus livros, um lugar povoado do tipo de personagens que vieram a definir o estilo de Murakami: enigmáticas, inexpressivas, carregadas de emoções fortes reprimidas, e apresentando-as com um destacamento tal que, facto não comum para um escritor que vende milhões, lhe deram o estatuto de autor de culto. Antes de ter partido para o Hawaii, um amigo meu confessa-me que o seu entusiasmo por Murakami é parcialmente assente no desejo de querer ser como o tipo de pessoas que gostam dele. 

«Não me revejo como um artista,» confessa o autor mais do que uma vez ao longo da entrevista. «Sou apenas um tipo que escreve. E é isso.» 

Murakami tem a seu favor o passado como gerente de um clube de jazz na década dos seus vinte anos, e a igualmente interessante rotina de Homem de Ferro. Como recentemente revelou na sua memória Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo, levanta-se às quatro da manhã quase todos os dias, escreve até às nove, passa a tarde a treinar para maratonas e a passear por lojas de vinis antigas, e deita-se com a sua mulher às 9 da noite. O regime é quase tão famoso como os seus próprios livros, e parece ter o aspecto de uma limpeza correctiva à confusão que foram os seus vinte anos. Também é o tipo de disciplina necessária para desencantar 1.000 complexas páginas no espaço de três anos. 

Para Murakami, é tudo uma questão de força. «É físico. Se vais escrever continuamente durante três anos, todos os dias, é preciso estares forte. Claro que tens de estar forte mentalmente, também. Mas em primeiro lugar tens que estar forte fisicamente. Isso é muito importante. Precisas de estar fortalecido quer física, quer mentalmente.» 

O seu hábito de repetição, quer seja toque estilístico ou efeito secundário das traduções feitas do japonês, produzem o efeito de fazer com que tudo o que Murakami diz soe como infinitamente profundo. Já escreveu acerca da importância metafórica das suas corridas; para completar uma acção a cada dia define exemplos para a sua escrita. «Sim», diz ele. «Hmmmm.» Faz um longo som contemplativo. «Preciso de força porque tenho de abrir a porta.» Faz o gesto de abrir uma porta. «Todos os dias vou para o meu escritório, sento-me à secretária e ligo o computador. Nesse momento, tenho de abrir a porta. É uma porta grande, pesada. Tens de entrar na Outra Sala. Metaforicamente, claro. E tens de voltar novamente a este lado da sala. E tens de fechar a porta. Por isso, é precisa força física para abrir e fechar a porta. Se eu perder essa força, nunca mais poderei escrever um romance. Poderei escrever alguns contos, mas nunca um romance». 

Existe, então, uma parcela de medo que conduz a essas acções de todas as manhãs? 

«É apenas rotina,» diz ele, e ri-se alto e em bom som. «É mais ou menos aborrecido. É uma rotina. Mas rotina é tão importante.» 

Porque, sem ela, existe o caos? 

«É isso. Eu vou até ao meu subconsciente. Tenho de ir ter com esse caos. Mas o acto de ir e voltar é como uma rotina. Tens de ser prático. Cada vez que digo que se uma pessoa quer escrever um romance tem de ser prática, as pessoas aborrecem-se. Sentem-se desapontadas.» Ri-se novamente. Estão à espera de algo mais dinâmico, criativo, artístico. O que eu tenho a dizer é: tens de ser prático.» 

Uma pessoa que se levanta tão cedo consegue ter quase duas vidas. É uma opinião de Murakami, que uma única vida se divide em duas, tanto pelas mudanças radicais como pelas pausas entre a vida exterior e interior da própria divisão pessoal. No seu novo romance, a heroína, Aomame – “Ervilha” em japonês – começa por estar presa no trânsito, de forma realista, dentro de um táxi, numa auto-estrada expressway de Tóquio. Estamos em 1984, um piscar de olho a George Orwell. Para evitar atrasar-se, sai do táxi e desce pelas escadas de emergência até ao nível do chão, onde vai dar por si num mundo paralelo, que virá a chamar 1Q84. Como a maioria da ficção de Murakami, mistura uma narrativa realista com certos traços surreais – relógios que levitam, cães que explodem, umas entidades designadas de “Povo Pequeno” (Little People) que emergem de dentro da boca de uma cabra morta – que desafiam a sanidade do leitor e fazem-nos questionar se não passará tudo de nonsense, dúvida que o próprio autor incorpora no romance.
 «As pessoas são deixadas num amontoado de misteriosos pontos de interrogação,» diz um dos editores de 1Q84 para o escritor. «Os leitores são capazes de interpretar esta falta de esclarecimento como um sinal de ‘preguiça do autor’.» 

Ao que o autor responde, «Se um autor for bem-sucedido ao escrever uma história ‘fá-la de uma maneira tão excepcionalmente interessante’ que ‘leva o leitor consigo até ao último ponto final’, o que poderá levar a que se classifique o seu autor como ‘preguiçoso’.» No primeiro mês após o lançamento, 1Q84 vendeu 1 milhão de cópias no japão. 

Os próprios elementos que compõem o passado de Murakami estão envoltos em mistério, até para ele próprio. Não sabe dizer porque é que se tornou um escritor. Simplesmente ocorreu-lhe, de repente, enquanto assistia a um jogo de basebol, e sem que antes tivesse sentido qualquer inclinação para isso. Estava mesmo à entrada dos 30 anos, a tomar conta do bar de jazz – que chamou de Peter Cat, em homenagem ao seu gato. Estávamos em 1978. O seu período de rebelião tinha mais ou menos acabado. Tinha crescido nos anos 60, filho único de um professor universitário e de uma dona-de-casa, e, tal como o resto da sua geração, rejeitara o percurso que seria esperado que seguisse. Casou logo que saiu da universidade, e em vez de prosseguir com mais estudos, pediu um empréstimo para abrir o bar de jazz e, assim, corresponder ao seu amor pela música. Todos à sua volta, os seus amigos, também se rebelaram. Alguns suicidaram-se, uma coisa que Murakami refere frequentemente na sua escrita. «Eles partiram,» diz. «Foi uma época caótica, e ainda sinto a falta deles. Talvez por isso eu me sinta estranho por ter 63 anos, sinto-me como uma espécie de sobrevivente. Sempre que penso nele, sinto uma obrigação de estar vivo, tenho de estar fortemente vivo. Porque não quero desperdiçar anos da minha vida… devia ser o propósito mais importante – a vida. Por ter sobrevivido, tenho obrigações de viver completamente. Por isso, sempre que escrevo ficção, de vez em quando lembro-me dos que morreram. Os amigos.» 

Olhando para trás, ele vê quão precária era a sua situação. Estava afundado em dívidas, a trabalhar muitas horas por dia no bar com a sua mulher, olhando para um futuro incerto. «Em 1968 ou 69, qualquer coisa podia acontecer. Era entusiasmante, mas, ao mesmo tempo, muito arriscado. As apostas eram extremamente grandes. Se ganhássemos, podíamos arriscar maiores apostas; mas se perdêssemos, estávamos feitos.» 

Isso significa que o bar foi como um jogo de dados? 

«Aaaaargh,» diz Murakami. «O casamento é que foi esse jogo! Tinha 20 anos, ou 21. Não sabia nada sobre o mundo. Era estúpido. Inocente. Foi uma espécie de aposta nos dados. Com a minha mulher. Mas sobrevivi, isso é que importa.»

Continua na segunda metade, a ser brevemente publicada.


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

1Q84 em Portugal: 8 de Novembro!

Eis que foi hoje divulgada a capa da versão portuguesa de 1Q84! Alterando ligeiramente o grafismo a que nos tinha habituado nos livros anteriores do autor, mas mantendo como base as cores, o conceito, e a capa mole, a Casa das Letras presenteia-nos com um resultado cativante e peculiar. De relembrar que se trata apenas do primeiro volume da obra, que está dividida em três livros distintos.

A data de lançamento de 1Q84 em Portugal está marcada para 8 de Novembro.

Ao longo dos últimos meses os leitores portugueses de Haruki Murakami têm aguardado com alguma ansiedade pela publicação da obra em língua portuguesa. E agora, com esta divulgação da capa e da data de lançamento, parece que estamos finalmente com o 1Q84 à porta. Nas primeiras reacções que recolhemos junto deles, os leitores classificam esta capa de «bonita», «original e muito atractiva», e «muito familiar, são as cores a que me habituei em Murakami».

Enquanto aguardamos pela vinda à luz do dia de mais informações interessantes, como a sinopse, e outros dados específicos, podemos já consultar o artigo de pré-venda no site da FNAC, e ainda receber de oferta um outro livro de Haruki. O preço de capa é 18€.