Todas as fotografias foram tiradas na Cerimónia de Entrega do Prémio Internacional da Catalunha, 9 de Junho de 2011. Texto traduzido pela equipa do MURAKAMI PT do catalão, presente no site oficial da Generalitat de Catalunya.
Haruki Murakami, 9 de Junho de 2011:'Bona nit!' Se eu fosse o Mick Jagger ou a Lady Gaga diria 'Bona nit, Barcelona!'. Mas como não sou, digo só 'Bona nit!'.
A última vez que estive em Barcelona foi na Primavera de há dois anos atrás. Num dos eventos públicos que realizei, surpreendi-me com a quantidade de leitores que vieram para verem ser assinados os seus livros. Formou-se uma longa fila, e passei mais de uma hora e meia a assinar. Só demorou todo esse tempo porque muitos leitores quiseram cumprimentar-me. Estive ali um bom bocado…
Já fiz sessões de autógrafos em muitas cidades de todo o mundo, mas a única em que os leitores quiseram beijar-me foi aqui em Barcelona. Esta foi apenas uma das muitas situações que me fizeram perceber que Barcelona é uma cidade verdadeiramente maravilhosa. Estou muito feliz por regressar a um tão belo local, com uma história e uma cultura tão avançada.
Infelizmente, não venho hoje falar-vos de beijos, e sim de algo um pouco mais sério. Como todos sabem, a 11 de Março, às 2 horas e 46 minutos, a região japonesa de Tohoku foi vítima de um grave terramoto. Teve uma tal magnitude que fez com que a velocidade de rotação da Terra acelerasse ligeiramente, e o dia prolongou-se por mais 1,8 mil enésimos de segundo.
O terramoto provocou muita destruição, mas o tsunami que se seguiu deixou uma ainda mais terrível marca. Em alguns locais, o tsunami alcançou os 39 metros de altura. 39 metros significa que é impossível para uma pessoa salvar-se, ainda que esta se encontre no 9º andar de um edifício. Todos os que se encontravam perto da costa não conseguiram fugir, e é calculado que aproximadamente 24.000 tenham morrido. Destes, cerca de 9.000 ainda estão desaparecidos. Estas pessoas foram arrastadas pelo tsunami, e os seus corpos não foram até agora encontrados. A grande maioria deve estar enterrada no fundo do mar.
A maioria dos sobreviventes perderam família e amigos, perderam casa e os seus pertences, perderam a restante comunidade, e perderam tudo o que constitui a base das suas vidas. Algumas cidades foram completamente varridas do mapa. Estou certo de que muita gente perdeu até a vontade de viver.
Aparentemente, os japoneses estão acostumados a enfrentar numerosas catástrofes naturais. Entre o final do Verão e o princípio do Outono, uma grande parte do território japonês torna-se alvo de furacões, que todos os anos causam muitos estragos e ceifam vidas. Em todas as zonas do país é registada uma actividade vulcânica significativa. E depois, é claro, há os terramotos. O arquipélago japonês é o extremo oriental do continente asiático, e está perigosamente situado sobre quatro placas tectónicas. Na verdade, é como se vivêssemos num ninho de terramotos.
Com os furacões, podemos saber em que período do dia ele vai chegar, e os locais onde é previsto passar; pelo contrário, os sismos não nos dão qualquer previsão. A única coisa que sabemos é que, com certeza, o último terramoto que sentimos não será o último, isto num futuro próximo: talvez já amanhã haja outro. Muitos especialistas prevêem que nos próximos vinte a trinta anos vão haver, em grande número, terramotos de magnitude 8 na região de Tóquio. E ninguém sabe muito bem o grau de destruição que seria alcançado se o epicentro de um terramoto se localizasse perto de uma metrópole com tanta densidade populacional como Tóquio.
Apesar disso, neste momento em Tóquio existem treze milhões de pessoas a continuarem a sua vida “normal”. Continuam a ir para o emprego em carruagens de metro sobrelotadas, e a trabalharem em altos arranha-céus. Não tenho notícias de que a população de Tóquio tenha diminuído desde o último terramoto.
«Como pode isto ser possível?», devem-se estar a perguntar. Como podem viver tantas pessoas numa cidade onde sabem que podem acontecer coisas tão horríveis? Como justificar esta falta de medo? Na língua japonesa temos uma palavra – “mujô” – que designa o facto de nada ser permanente, não existe nada que dure para sempre. Todas as coisas que existem no mundo se extinguem, tudo se transforma constantemente. Não há um equilíbrio eterno, nada é imutável porque não se pode confiar nelas para sempre. Esta é uma maneira de ver o mundo que provém do Budismo, que apesar de num contexto ligeiramente diferente do conceito religioso “mujô”, está presente na psicologia mental dos japoneses, que herdaram de forma quase intacta da antiguidade a mentalidade que têm como pessoas.
Poderíamos dizer que esta ideia do «tudo tem um fim» implica uma certa resignação com o mundo, isto é, nada do que o homem faça poderá opor-se ao curso da natureza. Contudo, os japoneses conseguiram encontrar uma forma bela de encarar esta resignação.
Se olharem com atenção para a natureza, por exemplo, na Primavera admiram as ‘sakura’, no verão os pirilampos, e no Outono as folhas amarelas dos bosques. Dia a dia, observam tudo com paixão, a cada momento, como uma rotina, quase como se fosse um axioma. Quando chega o tempo respectivo, os locais mais famosos para se verem as flores de ‘sakura’, ou os pirilampos, ou as folhas outonais, enchem-se de gente, e torna-se quase impossível de fazer reserva num hotel.
Porquê?
Porque a beleza das ‘sakura’, dos pirilampos, e das folhas do Outono, desaparece ao fim de um tempo. Os japoneses percorrem inúmeros quilómetros para poderem ver o esplendor da efemeridade destes fenómenos. Mas não se limitam apenas a observar essa beleza, pois também se aliviam ao descobrir como se espalham as flores das ‘sakura’, a luz ténue dos pirilampos, ou como se apagam as cores vivas das árvores. Na verdade, encontram a paz quando a beleza já atingiu o clímax, e começa a desaparecer…
Não sei se as catástrofes naturais têm alguma influência nesta nossa maneira de pensar. Porém, o que é certo é que, ao longo da história, os japoneses têm conseguido superar todos os desastres de que têm sido vítimas, aceitando-os como factos de certa maneira inevitáveis, e, unidos uns com os outros, sobrepondo-se a eles. Portanto, é bem possível que estas experiências anteriores tenham marcado a nossa sensibilidade.
Perante este último grande sismo, todos os japoneses foram tremendamente afectados; ainda que estejamos acostumados a terramotos, estremecemos ante a enormidade dos danos causados. Sentimo-nos impotentes, e sofremos pelo futuro do nosso país.
Contudo, acredito que recuperaremos a moral e nos levantaremos para começar a reconstrução. Neste sentido, estou muito preocupado. Somos um povo que recuperou muitas vezes ao longo da história. Não podemos ficar afectados para sempre. Temos de reconstruir as casas destruídas, reparar as estradas que se danificaram.
Bem vistas as coisas, estamos instalados neste planeta por nossa conta e risco. O planeta não nos pediu que vivêssemos. Por isso não nos podemos queixar que ele tenha tremido um pouco. O facto de tremer de vez em quando é uma das propriedades da Terra, de forma que, quer gostemos quer não gostemos, não temos outro remédio que não conviver com esta natureza.
Mas hoje quero falar de coisas que, ao invés dos edifícios e das estradas, não se podem renovar facilmente. Por exemplo, da ética e do modelo. Nem uma coisa nem a outra são objectos que tenham uma forma definitiva. Uma vez danificadas, custa muito voltar a transformá-las no que eram. Isso é assim porque não são coisas que se possam fazer no imediato, assim que se tenha reunido uma série de máquinas, mão-de-obra, e as matérias-primas necessárias.
Refiro-me, concretamente, à central nuclear de Fukushima.
Como deverão saber, pelo menos três dos seis reactores afectados pelo terramoto e pelo tsunami na região de Fukushima ainda não conseguiram ser reparados, e continuam a emitir radiação na zona. Ocorreu a fusão de um reactor, o que provocou a contaminação nas terras em redor, e, ao que parece, verteu para o mar de águas residuais uma alta concentração de radioactividade.
Cem mil pessoas viram-se obrigadas a deslocar-se da zona próxima da central nuclear. Os campos, os prados, as fábricas, as zonas comerciais, e os portos ficaram subitamente desertos e abandonados. É muito possível que as pessoas que tiveram de fugir da zona não consigam voltar a viver. E, custa-me imenso dizê-lo, parece que os danos não afectaram somente o Japão, mas também alguns países vizinhos.
A causa desta situação trágica é evidente. Esta desgraça só aconteceu porque as pessoas que construíram a central nuclear não tiveram em conta que poderia haver um tsunami grande. Alguns especialistas avisaram que, nesta região, já se tinha dado um tsunami desta magnitude, e pediram que se revissem os planos de segurança; mas a companhia que geria a central não os tomou a sério. A ideia de investir uma grande quantidade de dinheiro por um tsunami que pode passar, ou não, uma vez em vários séculos, não era muito atractiva para uma companhia que aspira a ser rentável.
Por outro lado, parece que o Governo, que deveria ter controlado estritamente as medidas de segurança da central, baixou a guarda para levar adiante a sua política nuclear.
É nosso dever averiguar o que se passou, e, no caso de se ter cometido algum erro, fazer dele público. Por culpa destes erros, mais de cem mil pessoas viram-se obrigadas a abandonar esta região e a mudar radicalmente o seu estilo de vida. Que aborrecimento. É natural.
Por algum motivo, nós japoneses somos um povo que não nos aborrecemos demasiado. Sabemos ter paciência, mas não expressamos muito esse sentimento. Neste sentido, somos muito diferentes dos nossos amigos barceloneses. Mas, neste caso, acho que mesmo os cidadãos japoneses se aborreceram, se cansaram.
Deveríamos deitar as culpas a nós mesmos, por termos permitido, ou tolerado, a existência deste sistema corrompido. Porque o que se passou é um problema que afecta profundamente a nossa ética e o nosso modelo.
Como sabem, os japoneses são o único povo que sofreram a experiência de uma bomba atómica. Em Agosto de 1945, as cidades de Hiroshima e Nagasaki foram alvo de bombas atómicas lançadas pelos bombardeiros do exército norte-americano – o que provocou mais de duzentos mil mortos. A maioria das vítimas eram civis. Agora não vamos começar a discutir se foi uma acção justa ou não.
O que quero dizer é que, para além dos duzentos mil que morreram logo que se deram as explosões, muitos dos sobreviventes morreram ao fim de um certo tempo, depois de muitos sofrimentos provocados pela radiação. Através do sofrimento destas vítimas, nós japoneses conhecemos o poder de destruição de uma bomba atómica, assim como a gravidade das feridas que a radiação provoca ao mundo e ao corpo humano.
No caminho que o Japão tem percorrido desde a Segunda Guerra Mundial, existiram dois ideais centrais: o primeiro foi a recuperação económica, e o segundo a renúncia à guerra, isto é, o compromisso de que, aconteça o que acontecer, não recorreremos ao uso da força militar. Estes dois novos objectivos que acompanharam a nação ajudaram-na a converter-te num país rico, na aspiração pela paz.
Na placa do monumento das vítimas de Hiroshima estão inscritas as seguintes palavras: «Descansem em paz, pois o erro não se repetirá».
São palavras maravilhosas. Somos, ao mesmo tempo, as vítimas e os culpados. Este é o significado que está implícito nestas palavras. Perante uma força tão abrasadora como a nuclear, somos ao mesmo tempo vítimas e culpados. Na medida em que todos estamos debaixo da ameaça dessa força, tomos somos vítimas, mas também na medida em que permitimos que acontecesse o que veio a desencadear a sua utilização, também somos culpados.
Hoje, 66 anos depois do lançamento das bombas atómicas, o motor número um da central nuclear de Fukushima está há três meses a libertar radiação e a contaminar a terra, o mar, e o ar à sua volta. Contudo, não há ninguém que saiba como o parar. Esta é a segunda grande desgraça nuclear que nós japoneses sofremos na nossa história, só que desta vez ninguém nos lançou nenhuma bomba atómica. Fomos nós próprios que a provocámos, cometemos um erro com as nossas mãos, fizemos mal ao nosso país, destruímos a nossa própria vida.
Porque é que isto aconteceu? Onde está o medo da energia nuclear que tínhamos mostrado desde o final da Segunda Guerra Mundial? O que é que danificou e corrompeu a sociedade rica e pacífica que tentámos construir ao longo de todos estes anos?
O motivo é bastante delicado. A ‘eficiência’.
As companhias eléctricas asseguram que os reactores nucleares são o sistema de produção de electricidade mais eficiente. Isto é, são o sistema que dá mais vantagens. Pela sua parte, sobretudo desde a primeira crise de petróleo, o Governo japonês abdicou da estabilidade de abastecimento de petróleo, e adoptou a produção de energia nuclear como uma política nacional. As companhias eléctricas gastaram grandes quantidades de dinheiro em publicidade, compraram os meios de comunicação, e fizeram com que os cidadãos acreditarem que a produção de energia nuclear era absolutamente segura. Então, quando nos demos conta, aproximadamente 30% da produção eléctrica no Japão dependia da produção de energia nuclear. Sem que os cidadãos se apercebessem, o arquipélago japonês, pequeno e com abundantes terramotos, tinha-se convertido no terceiro país do mundo com mais centrais nucleares.
E, chegados a este ponto, não há volta a dar. É um acto consumado. Mesmo entre os cidadãos se prolonga a sensação de que não há outro remédio a não ser depender da energia nuclear. No Japão faz muito calor, e não pôr a trabalhar o ar condicionado no Verão é quase uma tortura. Às pessoas que põem a dúvida a energia nuclear se cola a etiqueta de “sonhadores pouco realistas”.
E,, agora, encontramo-nos como nos encontramos. Os reactores nucleares, que em teoria eram tão eficientes, provocaram uma situação dramática, como se alguém tivesse aberto a porta do inferno. E esta é a realidade.
A realidade dos que estão a favor da energia nuclear, e que pediram a quem está contra que tivessem em conta a realidade, não era a realidade, mas somente uma “conveniência” superficial. O que faziam era dizer “realidade” no lugar de “conveniência”, para mudar a lógica sem que ninguém se desse conta.
Isto levou consigo não só o derrube do mito do “poder tecnológico” do qual o Japão se orgulhou durante tantos anos, mas também representou a queda da ética e do modelo dos japoneses, que permitimos que nos embrulhassem nesta farsa. Agora, criticamos a companhia eléctrica e o Governo. É justo, e necessário, que o façamos. Mas também devemos deitar as culpas a nós mesmos. Somos vítimas e culpados ao mesmo tempo. É uma questão para reflectirmos seriamente. Senão, pode ser que o erro se repita qualquer dia.
«Descansem em paz, pois o erro não se repetirá». Temos que voltar a gravar estas palavras no coração. O físico Robert Oppenheimer foi uma das pessoas mais intervenientes na criação da bomba atómica durante a Segunda Guerra Mundial, e quando se apercebeu do desastre que a bomba tinha provocado em Hiroshima e Nagasaki ficou muito afectado. Pediu uma audiência com o presidente Truman e disse-lhe:
- Presidente, tenho as mãos manchadas de sangue.
O presidente Truman tirou do bolso um pano branco bem limpo e disse-lhe:
- Limpe-as com o meu lenço.
Nem é preciso dizer que no mundo não há lenço suficientemente limpo para limpar tanto sangue.
Nós, japoneses, deveríamos continuar a dizer não à energia nuclear. Esta é a minha opinião.
Deveríamos dedicar o poder tecnológico, o conhecimento e capital social que temos como país, na busca de forma de energia efectiva que pudesse substituir a nuclear. Ainda que todo o mundo se ria, e diga que os japoneses são malucos por não usarem a energia nuclear, que é a mais eficiente, devíamos seguir firmes, nesta renúncia à energia nuclear resultante do medo que adquirimos na experiência das bombas atómicas. A procura de uma forma de energia que não utilizasse a energia nuclear deveria ter sido o motivo principal do caminho que o Japão percorreu desde a guerra.
Esta teria sido a maneira de assumir uma responsabilidade colectiva perante as numerosas vítimas de Hiroshima e Nagasaki. No Japão havia uma ética, um modelo, e uma mensagem social fortes como esta. Era uma grande oportunidade para os japoneses terem feito uma contribuição real para o mundo. Só que, entusiasmados com o rápido crescimento económico, deixamo-nos guiar pelo critério fácil da “eficiência”, e perdemos de vista este caminho tão importante.
Tal como disse antes, por mais graves e trágicos que sejam os danos causados pelas catástrofes naturais, nós japoneses somos capazes de superá-los. Ainda que o acto de nos sobrepormos a eles exija que as pessoas tenham um espírito mais forte e mais profundo. De uma maneira ou de outra, vamos prosseguir.
A reconstrução dos edifícios e das estradas é um trabalho da responsabilidade dos especialistas. Mas a regeneração da ética e do modelo é uma tarefa que recai sobre nos todos. O sentimento natural de chorar os mortos, de apoiar as pessoas que sofrem pelo desastre, e de não esquecer a dor e as feridas que sofremos, vão ajudar-nos a empreender esta tarefa. Será uma tarefa modesta e silenciosa, que irá requerer muita perseverança. Uma tarefa que temos que fazer reunindo todas as forças, como as pessoas de uma aldeia se reúnem de manhã cedo, na Primavera, para irem para o campo lavrar a terra e plantar as sementes. Cada um da maneira que possa, mas com um único coração.
Nesta grande tarefa colectiva, há uma parte que recai sobre os especialistas das palavras, isto é, sobre os que ganham a vida a escrever. Nós temos que ligar a nova ética e o novo modelo a novas palavras. E temos que fazer com que nasçam e cresçam histórias cheias de vida. Devem ser histórias que possamos partilhar. Devem ser histórias que, como canções nas plantações, tenham ritmo e animem as pessoas. Durante muitos anos reconstruímos um Japão assolado pela guerra. Agora temos que voltar a este ponto de partida.
Tal como disse no princípio, vivemos num mundo de mudança e transição, marcado pelo conceito de “mujô”, que nos diz que qualquer estilo de vida muda e acaba por desaparecer. Que o Homem é impotente perante a força enorme da natureza. A consciência desta transitoriedade é uma das ideias básicas da cultura japonesa. Ao mesmo tempo, e apesar de respeitarmos as coisas que desapareceram e estarmos conscientes de que vivemos num mundo frágil em que tudo pode desaparecer a qualquer instante, nós japoneses também temos uma mentalidade positiva que nos impulsiona a viver com alegria.
As minhas obras são muito bem recebidas na Catalunha, e estou orgulhoso por me ter sido atribuído um prémio tão importante como este. Vivemos em lugares que estão muito distantes, e falamos línguas diferentes. A cultura em que nos baseamos também é diferente. Contudo, todos somos cidadãos do mundo, e temos os mesmos problemas, as mesmas tristezas e alegrias. Justamente por isso é possível que umas quantas histórias escritas por um escritor japonês tenham sido traduzidas para o catalão e lidas pelas pessoas daqui. Fico muito contente por partilhar uma mesma história com vocês. O trabalho dos escritores é sonhar. Mas ainda temos um trabalho mais importante: partilhar os nossos sonhos com os outros. É impossível ser-se escritor sem ter esta sensação de querer partilhar o que se escreve.
Sei que, ao longo da história, os catalães superaram muitas dificuldades, e que em certas épocas sofreram alguma crueldade, mas que apesar disso sobreviveram firmemente e conservaram uma cultura muito rica. Estou certo que há muitas coisas que podemos partilhar. Penso que seria fantástico se tanto vocês como nós, tanto na Catalunha como no Japão, pudéssemos ser uns “sonhadores pouco realistas”, e pudéssemos formar uma “comunidade espiritual” aberta, que superasse fronteiras e culturas. Penso que poderia ser um bom ponto de partida para a regeneração, depois dos vários desastres e dos ataques terroristas terrivelmente trágicos que temos vivido estes últimos anos.
Não devemos ter medo de sonhar. Não podemos deixar-nos engatar pelas causas dos desastres, que se apresentam com o nome de “eficácia” e “conveniência”. Devemos ser “sonhadores pouco realistas”, avançando em passo firme. Os humanos morrem e desaparecem. Mas a humanidade perdura. É algo que se prolonga indefinidamente. Acima de tudo, temos de crer na força da humanidade.
Por último, queria oferecer a quantia monetária deste prémio às vítimas do terramoto e do acidente na central nuclear de Fukushima. Estou profundamente agradecido ao povo catalão e à Generalitat de Catalunya que me ofereceram esta oportunidade. Gostaria ainda de expressar a minha mais profunda solidariedade para com as vítimas do terramoto de Lorca.