Há um mês foi publicada no The New York Times uma crónica de Haruki Murakami, traduzida para o inglês por Jay Rubin, e enquadrada na Agenda Global 2011. O texto é agora traduzido pelo MURAKAMI PT, com as suas imperfeições naturais, mas com a equipa do blog segura de que fez a sua melhor tentativa possível ao traduzir as palavras. Esperemos que fiquem bem com esta mensagem do autor japonês, que serve perfeitamente de mensagem de ano novo, para que todos entremos em 2011 com optimismo e determinação.
Quais foram os acontecimentos que demarcaram o espírito do século XXI do do XX? De uma perspectiva global, foram, primeiro que tudo, a destruição do Muro de Berlim e o consequente rápido fim da Guerra Fria; e em segundo, a destruição das torres do World Trade Center no 11 de Setembro de 2001. O primeiro acto de destruição foi cheio de esperanças brilhantes, enquanto que o segundo foi uma devastadora tragédia. A convicção global no primeiro acontecimento de que “o mundo será melhor do que nunca” foi totalmente deitada por terra pelo desastre do 11 de Setembro.
Estes dois actos de destruição, que ocorreram nos diferentes lados do virar do milénio, com contextos tão diferentes em cada um deles, parecem ter-se juntado num único par que transformou fortemente a nossa mentalidade.
Ao longo dos últimos 30 anos, escrevi ficção em variadas formas, desde contos a romances longos. A história é desde sempre um dos mais fundamentais conceitos humanos. Apesar de cada história ser única, funciona como parte integrante de algo que pode ser partilhado e trocado com os outros. Essa é uma das coisas que dá às histórias o seu significado. As histórias mudam de forma livre à medida que vão inspirando o ar de cada nova era. Tendo como princípio serem mediadoras de transmissão cultural, as histórias variam drasticamente quanto ao modo de apresentação que usam. Como estilistas da moda, nós escritores vestimos histórias, à medida que elas mudam de forma no dia-a-dia, em palavras vestidas à sua medida.
Visto de uma perspectiva de tal forma profissional, parece que a interface entre nós e as histórias que encontramos enfrentam uma mudança maior do que nunca no período anterior ao mundo começar a traçar o princípio de um milénio. Se esta mudança é positiva ou menos bem aceite, isso não estou em posição de julgar. Tudo o que posso dizer é que provavelmente nunca voltaremos ao ponto de onde começámos.
Falando por mim, uma das razões por que sinto isto tão fortemente é o facto da ficção que escrevo estar ela mesma em perceptível transformação. As histórias dentro de mim vão mudando de forma à medida que inalam novas atmosferas. Eu consigo sentir claramente esse movimento a acontecer dentro do meu corpo. Além disso, ao mesmo tempo, existe uma mudança substancial na maneira como os leitores recebem a ficção que escrevo.
Tem havido uma mudança especialmente particular na postura dos leitores europeus e americanos. Até agora, os meus livros eram vistos em termos do século XX, entrando nas suas mentalidades através de portas denominadas como “post-modernismo”, ou “realismo mágico”, ou “orientalismo”; mas desde o momento em que as pessoas deram as boas-vindas ao novo século, gradualmente começaram a remover do seu dicionário mental os “ismos” e a aceitar os mundos das minhas histórias mais perto daquilo que realmente são. Tenho uma forte percepção desta mudança sempre que visito a Europa e a América. Parece-me que as pessoas estão a aceitar as minhas histórias tal como são – caóticas muitas das vezes, perdendo a lógica em variados momentos, e nas quais a composição da realidade é rearranjada. Ao invés de analisarem o caos de que são compostas as minhas histórias, parecem ter começado a conceber um novo interesse na tarefa de descobrir como se encaixarem nelas.
Em contraste, a maioria dos leitores em países asiáticos nunca sentiram necessidade da catalogação de teorias literárias quando liam as minhas obras. A maioria dos asiáticos que decidiram ler os meus livros, aparentemente aceitaram as histórias que escrevi como relativamente “naturais” desse ponto de vista exterior. Primeiro veio a aceitação, e depois (se necessário) vem a análise. Na maioria dos casos no ocidente, apesar de tudo, com alguma variação, a análise lógica chegou antes da aceitação. Tais diferenças entre o Ocidente e o Oriente, no entanto, parecem estar a desaparecer no decorrer dos anos, devido à influência que vão dando um ao outro.
Se eu tivesse de nomear um separador no processo pelo qual o mundo tem estado a passar nos últimos anos, chamá-lo-ia de “realinhamento”. Depois do fim da Guerra Fria começou um realinhamento a nível político e económico. Pouco há para ser dito acerca do realinhamento da área das tecnologias de informação, com o incrível e global estabelecimento de novos sistemas. Vivendo no centro destes processos, obviamente, seria impossível à literatura tomar uma posição em tal realinhamento e impedir tal mudança no sistema.
Uma das dificuldade que surgem neste processo de realinhamento é a perda – ainda que apenas temporária – de eixos coordenados através dos quais se formam normas de evolução. Estes eixos estiveram cá até agora, funcionando como bases sustentáveis na medição do valor das coisas. Estavam sentados na ponta da mesa como os “chefes de família” dos valores, decidindo o que era aceitável e o que não era. Agora acordamos e descobrimos que não apenas o chefe da mesa como a própria mesa desapareceu. À nossa volta, parece que as coisas foram – ou estão a ser – engolidas pelo caos.
Quando eu oiço a palavra “caos”, automaticamente me lembro das imagens do 11 de Setembro – aquelas cenas chocantes que foram mostradas um milhão de vezes na televisão: os dois aviões chocando contra as paredes de vidro das Torres Gémeas, as torres desabando sem avisar, imagens que continuam a ser inacreditáveis mesmo depois de um milhão e uma visualizações. O enredo que foi sucedido com miraculosa perfeição – uma perfeição que atingiu um nível próximo do surreal. Se o puder dizer sem ter medo de ser mal entendido, as cenas até pareciam ser qualquer coisa feita a computador para um filme de Hollywood.
Frequentemente imaginamos como teria sido se o 11 de Setembro nunca tivesse ocorrido – ou pelo menos se o plano não tivesse sucedido de forma tão perfeita. Se assim fosse, o mundo teria sido muito diferente do que é hoje. A América podia ter um presidente diferente (possibilidade muito grande), e a guerra no Iraque e no Afeganistão poderiam nunca ter ocorrido (possibilidade ainda maior).
Vamos chamar ao mundo que verdadeiramente temos agora a Realidade A, e ao mundo que poderíamos ter tido se o 11 de Setembro nunca tivesse acontecido a Realidade B. Não podemos deixar de reparar que o mundo da Realidade B parece mais realístico e racional do que o mundo da Realidade A. Para pôr o caso em termos diferentes, estamos a viver num mundo que tem um nível ainda menor de realidade do que o mundo irreal. O que podemos chamar a isto senão “caos”?
Que tipo de significado pode ter a ficção numa época como esta? Que propósitos pode ela servir? Numa altura em que a realidade é insuficientemente real, quanta realidade pode uma história ficcional ter?
Sem dúvida, este é o problema que nós escritores agora enfrentamos, a questão que nos foi dada. No momento em que as nossas mentes atravessaram o princípio do novo século, também nós atravessámos o início de uma nova realidade. Não tivemos escolha senão em atravessar, e, como podemos confirmar, as nossas histórias são obrigadas a mudar a sua estrutura. Os romances e as histórias que escrevemos tornar-se-ão sem dúvida cada vez mais diferentes em carácter e sentimento das que existiam antes, tal como a ficção do século XX é nítida e claramente diferenciada da do século XIX.
O objectivo principal de uma história não é julgar o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que é mau. Mais importante para nós é determinar se, dentro de nós, os elementos variáveis e os valores tradicionais estão a mover-se em frente em harmonia uns com os outros, para determinar se as nossas histórias individuais e as histórias comuns aos outros estão juntas neste caminho.
Por outras palavras, o papel de uma história é manter o carácter de ponte espiritual que foi construída entre o passado e o futuro. Novas normas e valores emergem naturalmente deste processo. Para isso acontecer, temos primeiro de respirar profundamente o ar da realidade, o ar das coisas tal como elas são, e temos de aceitar sem preconceito a maneira como as histórias estão a mudar dentro de nós. Temos de cunhar novas palavras em consonância com o respirar dessa mudança.
Nesse sentido, ao mesmo tempo que a ficção (histórias) ultrapassa um severo teste, surge uma oportunidade sem precedentes. Claro que à ficção sempre foi delegada uma responsabilidade e questões com que lidar em cada época, mas sem dúvida que a responsabilidade e as questões são especialmente importantes agora. As histórias têm a função que só elas podem tomar, e que é “tornar tudo numa história”. Transformar as coisas e os acontecimentos à nossa volta na metáfora do formato das histórias, e sugerir a verdadeira natureza das situações no dinamismo dessa substituição: essa é a função mais importante da ficção.
No meu último romance, 1Q84, eu mostro não o futuro próximo como George Orwell, mas o contrário – o passado próximo – de 1984. E se tivesse havido um 1984 diferente, não o 1984 original que conhecemos, mas outro, um 1984 transformado? E se fôssemos subitamente atirados para esse mundo? Isso seria, claro, um passo na direcção de uma nova realidade.
No intervalo entre a Realidade A e a Realidade B, na inversão das realidades, quando longe podemos nós preservar os nossos valores adquiridos e, ao mesmo tempo, a que novos valores poderíamos nós aceitar e seguir com eles? Este é um dos temas do trabalho. Passei três anos a escrever esta história, tempo através do qual passei este mundo hipotético por mim próprio enquanto simulação. O caos ainda lá está – em medidas estrondosas.
Mas depois de uma boa dose de tentativa e erro, tenho a forte sensação que finalmente estou a conseguir metê-lo nos termos de uma história. Talvez a solução comece por lentamente aceitar o caos não como algo que “Não devia estar aqui”, rejeitado fundamentalmente logo de princípio, mas como algo que “é realmente um facto”.
Talvez seja demasiado optimístico. Mas como contador de histórias, como um esperança piloto da mente e do espírito, não consigo deixar de pensar desta forma – que também o mundo, após uma boa quantidade de tentativa e erro, chegará a uma nova convicção que está a chegar, que o mundo irá descobrir algumas pistas que sugerem a solução, porque, finalmente, tanto o mundo como a história já passaram pelo começo de muitos séculos e por muitas metas para sobreviver até ao dia presente.
Data: November 29, 2010
Fonte: The New York Times
Por: Haruki Murakami
Em: http://www.nytimes.com/2010/12/02/opinion/global/02iht-GA06-Murakami.html?pagewanted=1&_r=2