
«O título do livro pensara nele enquanto olhava fixamente para a montra de uma pastelaria cheia de porquinhos de maçapão. Há já algum tempo que eu andava interessada na questão do canibalismo simbólico.Na altura, eram os bolos de casamento, encimados pelos seus noivos de açúcar, que muito em particular me fascinavam», Margaret Atwood
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
domingo, 13 de fevereiro de 2011
Dias de tempestade
Faz hoje uma semana que o meu avô paterno morreu, no hospital. Faz amanhã uma semana que o meu avô foi a enterrar. Nem eu, nem a minha mãe fomos ao funeral. Havia que cuidar dos vivos.
Enquanto decorriam as cerimónias fúnebres, a minha mãe estava a fazer quimioterapia e eu a acompanhá-la. Aí está um novo ciclo de tratamento. Até agora, a minha mãe já fez 44 sessões de quimioterapia. Quarenta e quatro. Entre as 9h00 e as 18h30 estivemos no hospital de dia. Durante aquelas horas foi entrando dentro de mim o olhar desesperado de uma outra doente oncológica. Cancro do pulmão. Enquanto fazia quimio, a senhora, de cabelo curto, recém-nascido, falou das noites mal dormidas, do sofrimento. Mas não precisava de dizer nada. Os olhos mostravam o que as palavras nunca teriam coragem de expressar: medo da morte, cansaço de lutar. Olhos que choram para dentro.
Este novo ciclo de quimio, está a ser o mais duro até agora. Cansaço extremo, vómitos, diarreia, mal-estar, cólicas, sonolência. Ontem tivemos de ir para a urgência. Enquanto a minha mãe estava a soro, na maca, procurei temporariamente descanso numa cadeira. Calhou sentar-me à porta do consultório de psiquiatria. Sai um homem de uma consulta e senta-se ao meu lado. Mete conversa. Pergunta-me se estou para a consulta de psiquiatria. Digo-lhe que não, que sou acompanhante de uma doente. Ele explica-me que se fosse doente psiquiátrica que mais valia bater à porta para falar com a doutora, que ela está de saída da urgência. Depois, começou a contar que sofria de depressão há dez anos. Nas mãos um saco plástico cheiinho de embalagens de medicamentos. Disse-me que percebia que «o copinho de leite» tivesse feito o que fez. Só com o desenrolar da conversa é que percebi que «o copinho de leite» a que se referia era o Renato Seabra.
«Sempre fui um homem calmo. Estou casado há 25 anos e por isso estás a ver que tenho um ambiente familiar estável. E, no outro dia, dei comigo com as mãos no pescoço da minha mulher, a esganá-la. E eu não me lembro de nada, devo ter tido algum lapso», desabafou ele comigo, uma desconhecida. O acto de violência não ficou pela mulher. Mais tarde, violentou a filha, no rosto. Sem encontrar justificação, nem ter memória do episódio. Ficou estupefacto quando viu sangue espalhado pelo chão e hematomas no rosto da filha.
O desespero nem sempre sobe ao olhar. Os olhos deste homem, de 49 anos, eram baços, vazios. A angústia colou-se toda às palavras. Aquele homem sabe que já se perdeu da vida e tem medo dele próprio, daí ter procurado ajuda médica. Não é a morte dele que o inquieta, é a possibilidade de, fora de si, tirar a vida ao Outro. Lucidamente, confessou-me: «Eu preferia ser internado a um dia ir parar a uma prisão».