O
meu colega Paulo Pinto emprestou-me o livro O
Mistério das Coisas Erradas, de Fátima Marinho. Conheço a autora desde que ambos
fizemos, há dois anos, parte do júri do Concurso Literário de Conto Infantil da
Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto. Ouvira já, antes, referências
elogiosas à escrita desta “cabeceirense” (adoptiva). Reencontrei-a no contexto
de uma avaliação externa a que o Agrupamento de Escolas foi sujeito e em que
Fátima Marinho participou como elemento da equipa inspectiva. Em todas as
ocasiões, senti nela uma espécie de força feita de serenidade e lucidez
invulgares. A sua escrita confirmou amplamente essa sugestão.
O
livro O Mistério das Coisas Erradas é,
do ponto de vista genológico, um conjunto de contos, pontuado epigraficamente
por poemas. Contudo, os próprios segmentos narrativos incluem, sobretudo no
final, apontamentos (comentários) de cariz profundamente poético, um pouco à
semelhança do que encontramos, por exemplo, no final de capítulos dos romances
saramaguianos.
A
autora serve-se do barro da sua experiência enquanto professora para, de modo
formoso e simples, nos relatar histórias de meninos e meninas que, devido às
suas características específicas, saem do reduto confortável da “normalidade”.
Para além de apontamentos humanos de altíssimo interesse, há nestas histórias
margem para uma reflexão rigorosa e bela acerca da condição humana. Aprendemos
(como a autora aprendeu/aprende) que é um erro e uma injustiça desistirmos de
quem é diferente; que todos os seres são, a seu modo, versões da realização da
Vida, igualmente dignas de atenção e de apreço; que um verdadeiro professor
nunca deixa de aprender, incluindo com os seus (putativos) aprendentes; que a
todo o momento podemos dar e receber, numa espécie de democracia ética e
estética que não vem nos livros.
No
capítulo “Com que calças andará o meru pequenote”, a professora/narradora (entre
outras medidas) estimula uma criança, vítima de agressões diárias, a resistir e
a sobreviver, até que o tempo o liberte do jugo de adultos indignos. O tempo,
como sabemos, joga a favor de quem tem tempo.
Em “Cinco
escudos”, a narradora percebe que uma criança fez uma promessa a Deus por si, isto
é, pela sua professora. A criança,
depois, irá querer saber se Deus satisfez o seu pedido, porque dessa
circunstância resultará (ou não) o seu pagamento. Escreve Fátima Marinho: “A
ternura vinda de mãos, supostamente, adversas à lentidão do afago espanta-nos […].”
No
capítulo III, “O Mistério das Coisas Erradas” (que dá título ao volume), uma
menina com trissomia 21, inicialmente vítima de incompreensão e desafecto e,
depois, salva pelo amor de um familiar, aprende (ou intui), no usufruto da vida
à medida do que a vida lhe oferece, que ”o mistério das coisas erradas é que
também elas estão certas”.
Em “A
fraqueza às vezes cresce e fica forte”, um menino cuja “deficiência” o
condenara a nunca saber ler, segundo a cínica ciência dos rótulos, consegue
salvar-se desse fado e lê.
Em “O
Que São Mouras Encantadas?”, uma aluna apercebe-se da singularidade da
professora e esta descoberta será ponto de partida para a narradora explicar à
aluna que em todos os seres há, de facto, uma singularidade própria. E que
todas as singularidades se podem irmanar, por exemplo, no gesto cósmico de olhar
e namorar o mar.
Em “segredos”,
uma criança sobrevive à brutalidade de vários abusos do pai (sobre si e sobre a
mãe e irmãos) - e, depois, com o amor resiliente dos melhores seres humanos,
perdoa.
Em “Ter
asas e voar”, uma menina inspira-se no encanto da professora por colares de
pedras e, querendo dizer o quanto ama a docente, recolhe duas pedras no caminho
e guarda-as para lhas oferecer. A narradora guardou estas pedras e, sempre que
necessário, interroga-as, nelas buscando a resposta para avulsas agruras do
quotidiano. História(s) de amor, portanto.
No
capítulo VIII, “Mas Será Que a Minha Colega Sabe?”, um rapaz convive com a sua “deficiência”,
vencendo todas as limitações com denodo e dignidade. Evolui na vida escolar,
para espanto de pessimistas encartados, e namora. O seu maior desejo: que a
namorada nunca o visse como “deficiente”.
Em “Simplesmente
Maria”, uma aluna quer morrer por sentir que ninguém gosta verdadeiramente de
si. A professora/narradora explica-lhe, pacientemente, que em todos nós há
momentos de desânimo, mas que, para além do “poço” momentâneo em que caímos, se
encontra sempre a possibilidade de “flores na relva” e de “sol”. O contrário de
morrer (ou de querer morrer) pode ser, como se vê, não estarmos sós.
No
capítulo “Pastor, Pastorzinho, Porque Vais Sozinho?” (um dos meus preferidos), um
menino, contra todas as probabilidades, aprende a ler e, desde esse momento,
nunca mais está sozinho. Costumo dizer isto mesmo aos meus alunos sobre o
encanto e o poder da leitura.
No
capítulo “Juro Que Não Hei-de Ser Infeliz”, a personagem Dolores vence as suas
limitações e singra na vida profissionalmente. Encontra, depois, um namorado,
que é estrangeiro e lhe escreve em francês. A professora/narradora traduz os
textos, mas a Dolores quer também ouvir en
français as manifestações do amado: “-Só quero ouvir o som das palavras com
que ele pensa em mim!” Escreve Fátima Marinho: “Interrogo-me se Confúcio, Dante
ou Camões alguma vez terão pensado acerca do som das palavras de quem neles
pensava. Na parte que me cabe, foi com a Dolores que aprendi a deter-me na
ternura do som das palavras de quem pensa em mim.”
No
capítulo “Para Onde Vai a Água?”, fala-se do Paulo, um menino que usava
recorrentemente calão e maus modos na relação com colegas e professores, para
além de se deslocar quase sempre em corrida de mãos abertas, como se voasse.
Percebe-se que na criança, para além de cómodas explicações científicas sobre “deficiência”,
colidem duas dimensões – a chã realidade da pobreza e da falta de afecto e a
ânsia (secreta, mal percebida) de outros mundos para onde um ser humano possa (pudesse)
voar.
No último
capítulo, “Somos Filhos da Madrugada”, um aluno com (como se diz) “necessidades
educativas especiais” aprende a gostar de música, revelando mesmo, em
determinada altura, uma desconcertante cumplicidade com José Afonso (“o Zeca”).
À música - como à arte, em geral - também se pode chegar simplesmente pelo
coração.
Nota
final: gostei mesmo muito deste livrinho.
Termino
este apontamento com uma ideia que Fátima Marinho formosamente enuncia (e que,
num outro plano, já encontrara em George Steiner): a de que a realidade é um processo, algo em constante devir, pelo
que são frequentemente precipitados e erróneos os rótulos que os homens lançam
sobre o que não sabem ou não compreendem bem. No poema que introduz (como
epígrafe) o capítulo “O Que São Mouras Encantadas?”, lemos:
“Talvez
o mar saiba
Que
vida é um pedaço de silêncio
Guardado
numa janela sem horizonte
Uma
fonte perto da estrada
Uma
caminhada
Ou
simplesmente o vento
Onde
correm os espíritos dos mortos
E a
contradição de estarmos por aqui
Sem
sabermos o segredo que nos trouxe…
Talvez
as Mouras Encantadas existam por aí
E
sejam elas a razão pela qual os pássaros voam
As
flores rompem a terra áspera
As
flores esperam que a felicidade espreite
Talvez
amanhã…
Que
hoje não estamos prontos para ser felizes.”
Também
eu penso que a felicidade é isso mesmo: uma possibilidade, muitas vezes feita
de simples instantes, que chega só quando estamos (verdadeiramente) prontos.
Ribeira
de Pena, 26 de Abril de 2014.
Joaquim
Jorge Carvalho