Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 4 de abril de 2020

Vilela, Amigo Grande


Há uns vinte e três anos, quando cheguei a Ribeira de Pena, trazia de Coimbra as saudades de família e amigos. Um Amigo antigo, para me consolar, disse-me: “Deixa lá. Fazes novos amigos num instante.” Mas eu bem sabia que não se fazem amigos num instante. Um Amigo leva tempo a fazer. E mesmo quando falamos de amizades feitas no serviço militar, na faculdade, na emigração, que devêm tão grandes como as maiores, é porque o tempo da sua fermentação é aí distinto do tempo calendário. Dias, então, são meses. Meses são anos. Anos, vidas. 
Em Ribeira de Pena, pude conhecer muita gente ao longo destes anos. Fiz novos Amigos (perdi até alguns). O Manuel Vilela foi o primeiro de todos. Uma amável epifania. Trabalhava comigo na Escola local e desde cedo me habituei a com ele trocar cumplicidades, angústias, sonhos. Falávamos de futebol (ele fingia que era do Salgueiros”, mas sofria escandalosamente pelo Benfica). Intercambiávamos histórias. Gostávamos ambos de fado de Coimbra (mesmo em versão karaoke). Ele apreciava o meu humor, eu deliciava-me com a sua alegria de viver e a sua prodigiosa memória. Ficámos fatalmente Amigos. 
Este meu Amigo foi à guerra. Cumpriu serviço militar, na década de 70 do século XX. Como se tratava de um bom contador de histórias, as suas memórias de África foram, para mim, uma magnífica possibilidade de viagem que não poderia desperdiçar. Fiz dessas histórias - contadas no Ali-Babá, no Voice, no Cantinho do Churrasco, no Convívio, na Pastelaria Silva, ao balcão da sala de professores - material literário para um romance (“O Livro dos Negócios, das Adivinhas e dos Provérbios” – Ribeira de Pena, Ed. Casa de Santa Marinha, 2000). O Manuel Vilela autorizou-me essa vindima e o vinho que viesse. Depois, gostou do meu livro, necessariamente distinto da matéria-prima que o ajudou a nascer. 
Conheci, à boleia do meu Amigo, a sua família – com relevo para a maravilhosa Dona Tininha (sua esposa) e o meu Amigo Vasques (meu ex-aluno, seu sobrinho). Ouvi-o, há muito pouco tempo, lamentar o passamento de uma irmã e dei-lhe então uma espécie de abraço. Depois, fomos novamente até à pastelaria Confiança trocar confidências. 
O meu querido Amigo partiu hoje. A minha mulher, a minha filha e eu fomos atropelados quase ao mesmo tempo pela notícia. Para sempre fica Ribeira de Pena, em nós, mais incompleta que nunca. Jamais o esquecerei. Mas até as saudades são uma garantia filha-da-puta de que a dor nunca mais passa. 

Coimbra, 03 de Abril de 2020. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[O texto teve por base um texto escrito neste blogue, em Março de 2009, numa época em que éramos – eu e ele – imortais.]