Alhandra 24 de Abril de 2018.
Caro Amigo,
Andava há anos para lhe escrever. Soube, por conhecidos e familiares, da sua estima e da sua admiração por Soeiro Pereira Gomes, o autor de Esteiros. Comoveram-me alguns textos, lidos em jornais, blogues e trabalhos académicos, que dedicou à obra desse tão talentoso e tão honesto escritor. Eu sou neto do Gaitinhas, veja bem. Do Gaitinhas, sim, um desses meninos a quem roubaram, sem remédio, essa condição. Ouvi muitas vezes o meu avô, por aqui, nos arredores de Paris, recordar o Guedelhas, o Gineto, o Maquineta e Sagui, seus camaradas de sonhos e de tristezas.
Escrevo-lhe por ser véspera do glorioso dia 25 de Abril. Em 1974, já o senhor Soeiro Pereira Gomes estava morto há mais de vinte anos e o meu avô tinha meio século de idade. Sofria de uma doença nos pulmões, não sei se lhe disseram – e dessa doença também morreria, aliás, alguns anos antes, a minha bisavó, sua mãe, vítima da pobreza em geral e de tuberculose e solidão em particular. Ainda rapaz, o meu avô emigrou para França, à procura do pai. Nunca o encontrou, apesar de por muito tempo o ter procurado. No dia do seu casamento (com uma concierge madeirense, que trabalhava no prédio onde vivia o patrão de ambos), lá soube que o pai morrera há alguns anos, num estaleiro próximo.
O meu avô Gaitinhas teve uma filha. (“Ainda bem que não foi um rapaz”, costumava ele dizer, ”para evitar chatices com a tropa.”) A filha do meu avô teve dois filhos – o meu irmão António, que foi para a Bélgica trabalhar na televisão, como cameraman, e eu próprio, que herdei de meu pai (também português) uma empresa pequenina de construção civil. Brevemente, o meu genro (um francês de Saint-Galmier) tomará esse lugar, e eu poderei enfim ir viver para Portugal. A minha mulher é espanhola, nada e criada até aos seus doze anos na Galiza, e não se opõe a esta minha vontade.
Eu nasci em França, caro amigo, mas escolhi ser português por tanto ouvir o avô falar do País. Ele, a quem o regime fascista roubou a infância, o pai e a mãe, o futuro, amou sempre Portugal, fiel como um cão. Conversava connosco em Português, cantava em Português, celebrava a Liberdade, a Democracia e a Igualdade em Português.
No dia 26 de Abril de 1974, vi-o chorar, à hora do almoço, junto ao rádio, confirmando a chegada do futuro ao seu (nosso) País. Em sua casa, a “Grândola, Vila Morena”, do Zeca, era tão solene como o hino nacional. E a cançoneta “Somos livres”, da actriz Ermelinda Duarte, valia por todos os programas políticos que diariamente eram divulgados por jornais, rádio e televisão. “Não voltaremos atrás”, cantávamos eu e ele em coro.
O meu avô teve muita pena de não poder celebrar a liberdade com o amigo Soeiro Pereira Gomes, tão cedo falecido. Mas ainda abraçou algumas das personagens de Esteiros. Lembro-me de o ouvir dizer a um deles: “Mesmo que isto já não seja para nós, há-de ser bom para os vindouros, pá!”
Eu, à época, era um vindouro. Agora, em viagem para velho, sabe-me bem confirmar o vaticínio do Gaitinhas. E comungar a gratidão que ele publicamente manifestava por quem fez a revolução.
Bem sei que o nosso País continua inevitavelmente imperfeito, mas já não é normal que as crianças sejam mão-de-obra adulta à força; que a miséria seja uma sorte fatal e hereditária; que o destino de todos seja determinado pela tirania de uns poucos.
Não é como neto do Gaitinhas que lhe agradeço o interesse por Esteiros, caro Amigo. É como português, amante da Liberdade. A ideia de, pela leitura, manter vivo Soeiro Pereira Gomes é, na essência, algo muito parecido com a celebração viva e grata da revolução de 1974. A escritora Agustina fala (salvo erro, na Sibila) de “memória do amor”. Eu fico-me pela memória do meu avô Gaitinhas, que vem a dar ao mesmo.
Um abraço!
VL
[Nota: Esta carta, embora fictícia, está longe de ser mentira. Quem não acreditar, como diria o cronista há 45 anos, a propósito de tudo, é fascista.]
Vila Real, 22 de Abril de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 26-04-2018. A imagem, já utilizada neste blogue, é da autoria do meu Amigo Manuel Vilela, que a fabricou, a pedido, para um libreto relativo ao espectáculo teatral A Noite de 24 de Abril. (Nota: esta peça, levada já por diversas vezes à cena, com interpretação de alunos ou docentes, é uma adaptação minha da obra A Noite, do grande José Saramago.]