Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (66)



Uma colher de prosa
Em parceria com a CPCJ (Comissão de Protecção de Crianças e Jovens) de Cabeceiras de Basto, a minha Escola assinalou, em finais de Novembro, a importância de prevenir e atacar as agressões sobre mulheres. Coincidiu o facto de, na leitura matutina do JN (edição de 25-11, página 22), ter ficado a saber que “a GNR de Braga actuou em mais de mil crimes de violência doméstica nos primeiros dez meses do corrente ano”.
Deixei que o assunto tomasse conta de parte da minha aula de Português, comovido com o interesse dos alunos do meu 7.º ano de escolaridade. Disse-lhes que se trata de um flagelo (expliquei-lhes o que é um flagelo); que só há pouco tempo passou a tratar-se trata de um crime público (o Z.M. perguntou-me: “Mesmo que a polícia soubesse, o gajo não ia para a prisão?”); que a melhor – a única – maneira de reagir à primeira agressão do namorado ou do marido é deixá-lo de vez; que é pior se o agressor tiver oportunidade de agredir novamente, porque se passará a sentir dono da vítima, capaz de matar para proteger, no futuro, a sua “propriedade”; que tenho uma Filha e que já lhe disse o que agora lhes dizia a eles (“É como se nós também fôssemos seus filhos”, disse a T.C., e ninguém se riu).
Depois, o V.L. disse que também havia homens agredidos pelas mulheres e que alguns até tinham vergonha de se queixar. Entre gargalhadas, o S.M. disse que nunca bateria numa mulher, mas que também não a deixaria “molhar a sopa” nele. A T.C., que é uma inteligência admirável, disse que os homens, nestes casos, estavam “entre a espada e a parede”, pois não podiam bater nelas por ser uma cobardia, nem podiam queixar-se à polícia para evitar o ridículo.
O C.C. achou que esse problema, comparado com o das mulheres, era “uma gota no oceano”, já que a maioria das agressões caía sobre as desgraçadas das namoradas ou das esposas.
Eu tinha de falar dos graus dos adjectivos e procurei rematar o debate, sublinhando a necessidade de rapazes e raparigas estarem alerta para as ameaças de que faláramos. Relembrei-lhes a importância (vital) da “tolerância zero” para com os agressores. Acordei-os para a indignidade daquela frase antiga – “entre marido e mulher, não metas a colher”.
A T.C. ainda se saiu com esta: “Se a pessoa tolera, depois já não pode fazer nada.” Eu contrapus: é sempre tempo de (re)agir, de fugir da companhia de uma besta violenta. Ela retorquiu-me (com a evidente concordância de muitos dos seus colegas): “Mas depois pode haver filhos e a mulher já aguenta tudo por causa deles…”
Eu não desisti de uma conclusão optimista e insisti: os filhos não são felizes num contexto de constantes ameaças e agressões à Mãe. E obriguei-os (digamos assim) a prometer-me que, agora e sempre, se recusariam à escravatura da resignação e do medo. Lancei-lhes uma pergunta (quase retórica): “De acordo?” 
Obtive algumas (raras) respostas murmuradas: “De acordo.”
Mas o que se ouvia mais, nessa hora epilogal, era o mutismo muito circunspecto daquelas meninas e daqueles meninos. Que histórias domésticas (interrogo-me) haverá por detrás desse silêncio? Que dramas? 

Vila Real, 04 de Dezembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 08-12-2016.]

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