O valor da metáfora
A
metáfora, como eu a entendo, é a cósmica tentativa de articular a verdade com o
verbo humano. Radica numa espécie de consciência do défice da linguagem normal,
e na concomitante necessidade (urgência até) de criar modos de dizer o que,
existindo, não se explica facilmente, normalmente. Um dia, em viagem de
automóvel, à conversa com a minha filha, percebi isto muito bem.
Ela
tinha, então, quatro anos. Íamos buscar a minha mulher, que trabalhava a
quarenta quilómetros da nossa residência. Para entreter a monotonia das rectas,
eu ia falando, contando histórias, questionando-a. A miúda respondia com a
simplicidade (de modos e de vocabulário) que a sua pouca idade explica. A certa
altura, perguntei-lhe se gostava de mim.
Ela
respondeu: «Gosto.»
Perguntei-lhe
se também gostava da mãe. Ela disse: «Também.»
Levantei
a fasquia da dificuldade e perguntei-lhe se gostava mais da mãe ou do pai. A
miúda levou mais tempo a responder, mas desenrascou-se bem: «Gosto dos dois.»
Prossegui
a entrevista, complexificando a conversa, já talvez adivinhando a sua
desistência iminente: «Quanto é que gostas de mim?»
Ela,
cada vez mais embaraçada, foi ainda capaz de se exprimir: «Muito.»
Temi
pela minha filha, tão à beira de um esgotamento lexical, mas arrisquei ainda: «Muito,
quanto?»
Caiu
então um mui espaçado silêncio sobre a noite. A menina decerto sentia a
resposta, mas não havia (em seu pobre vocabulário de infante) palavras para
dizer o que inteiramente sentia.
E
nós passávamos enfim por Cantanhede, a caminho da vila de Febres, quando ela, interrompendo
silêncio e breu, apontou para o maior edifício à vista e exclamou: «Gosto de ti
aquela casa toda!»
Entendeis?
A minha filha tinha descoberto a metáfora e oferecera-ma.
ADENDA
Inicio, com honra e gosto, uma colaboração com O Ribatejo. Chego aqui pela mão do Daniel Abrunheiro, cronista
deste jornal, meu amigo e, na minha opinião, o mais importante poeta do século
XXI. Agradeço ao senhor Director de O
Ribatejo a confiança em mim depositada e faço questão de saudar os
(desprevenidos) leitores, apresentando-me de modo sucinto: nasci em Coimbra há
52 anos, sou professor, vivo em Ribeira de Pena (Trás-os-Montes). Ando desde
menino à porrada com o Tempo. Sofro exageradamente de saudades: do mar, do 25
de Abril, da minha rua coimbrinha com árvores, do futuro, da gente que
traiçoeiramente me tem falecido. Hei-de, aliás, falar-vos disto neste espaço,
em escritos – se os houver – a haver. Já agora: descobri a expressão “Zona de
Perecíveis” numa placa de certo hipermercado em Vila Real, no meio de legumes e
frutos muito fresco-coloridos. Cheirava intensamente a morangos em promoção.
Achei logo que o nome naquela placa seria o indicado para um espaço de crónica
jornalística ou para um livro de poemas. Ou seja, digo eu, para falarmos, à
sombra da expressão, da nossa mortalidade imortal. Agora já sabem: se passarem
por esta zona, encontramo-nos.
Ribeira de Pena, 28 de Julho de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: Esa crónica, a primeira que envio para o semanário O RIBATEJO, parte de uma anterior que publiquei em "Muito Mar" no ano de 2010.]