O Natal como Júlio Dinis
Dou por mim a cruzar a ideia de Natal com Júlio Dinis.
Quando ouço colegas e amigos fazendo planos para “ir à terra” passar a
consoada, ocorre-me que a minha aldeia natal é a mesma do José das Dornas, da Morgadinha
dos canaviais ou do Tomé da Póvoa. E aquele jantar de família, a 24 de
Dezembro, apesar das tantas ausências, é um regresso provisório ao mundo simples
e grato que Júlio Dinis inventou.
Comecei a ler este escritor aí pelos dez, onze anos. O primeiro
romance que devorei foi As Pupilas do
Senhor Reitor. Logo a seguir, veio Uma
Família Inglesa (que revisitei no ensino secundário por esta obra fazer, à
época, parte do cânone escolar). Depois, A
Morgadinha dos Canaviais. Finalmente, Os
Fidalgos da Casa Mourisca.
O que me encantou, desde muito cedo, foi a clareza e
elegância da prosa, claro, mas também a espantosa qualidade dos vívidos
diálogos e a tão perfeita arte de bem contar uma história. Uma história bem
engendrada funda-se numa intriga, mas tem de, para ser literariamente
relevante, compreender mais do que isso: é preciso que nela compareçam, de
forma natural, elementos representativos da vida, da sociedade, da humanidade
em movimento. Dessa circunstância depende a profundidade da adesão leitora, que
decorre muito da verosimilhança do contexto, da ilusão de vida verdadeira em
cada cena narrada, da concomitância do tempo narrativo com o tempo da própria
existência física. Num grande romance percebe-se o tempo a passar, a vida a
acontecer.
Os críticos de Dinis acusam-no de haver criado narrativas
demasiado simples, na forma e no conteúdo. E a isto acrescentam que os romances
são retoricamente ingénuos, porque – imagine-se – há neles a percepção de que
os “bons” são sempre premiados e os “maus”, ou os “menos bons”, são sempre castigados.
Eu gosto de pensar que a principal característica de Júlio
Dinis é a de, à maneira dos melhores clássicos, ele ter percebido que um
romance pertence ao modo narrativo,
logo que a eficácia e brilho da obra dependem, sobretudo, da arte de bem
contar. A escrita serve (humildemente) a história – ou, no máximo, é
consubstancial à história.
Em boa parte, é essa humildade do escritor que torna amável a literatura dinisiana. “Amável”
significa aqui, antes de mais, literatura susceptível de ser amada.
Quanto ao resto (isso de a realidade não ser assim tão
simples e bela como a que encontramos nas narrativas dinisianas), busco a
resposta na saudosa – e genial – Maria Lúcia Lepecky, citando-a de cor: que
culpa tem Júlio Dinis que a História, ao contrário das histórias do autor d’As Pupilas, se esqueça de acontecer?
Ribeira de Pena, 21 de Dezembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 25-12-2015.]